Em Dezembro de 1948, apareceu um homem morto na Praia de Somerton, em Adelaide, Austrália. Como vimos na primeira parte, as investigações iniciais não conseguiram identificá-lo nem determinar sua causa mortis. Pra piorar, a polícia australiana descobriu que sua morte pode estar ligada a um código aparentemente insolúvel. Até agora as tentativas de quebrar tal código não deram em nada. Mas e quanto ao corpo do Homem de Somerton? Seu código genético poderia trazer respostas?
A mais incomum peça de evidência no caso do Homem de Somerton é um pedacinho de papel encontrado num fundo falso de um bolso do finado. Nele, estavam impressas as palavras “Tamám shud” — “finalizado” ou “terminado” em Persa. Por isso, o mistério também é conhecido como “Caso Tamám Shud”.
O primeiro código: um livro rabiscado
Um jornalista da época, Frank Kennedy, não demorou a reconhecer que o papel era a última página arrancada de um livro chamado Rubáiyát, uma coletânea de poemas de Omar Khayyám, um matemático, astrônomo e poeta persa do século XI. Em Julho de 1949, poucas semanas após o fim do inquérito, um homem apareceu com o exemplar de uma edição neozelandesa de 1924, de onde as palavras haviam sido recortadas. Essa testemunha disse que, mais ou menos na mesma época em que o corpo havia sido encontrado, o livro havia sido jogado pela janela aberta de seu carro, que estava estacionado na rua.
Essa evidência indica que as circunstâncias finais da vida do Homem de Somerton são tão enigmáticas quanto sua morte. Na parte de trás do livro, foram encontradas cinco linhas de letras que formam o que parece ser um código. Muita gente já tentou decifrá-lo, mas ninguém ainda descobriu o que o código significa — nem mesmo se é um código de verdade.
Numa tentativa de encontrar respostas, Abbott começou justamente pelo “código”, atacando-o em diversas frentes. Primeiro, ele testou a hipótese de que as letras seriam apenas rabiscos aleatórios. Para isso, ele testou um grupo de estudantes que deveriam escrever as primeiras letras que lhe dessem na telha, tanto sóbrios quanto alcoolizados. Os resultados foram os mesmos: as letras no livro pareciam formar uma estrutura, já que não estavam distribuídas de modo estatisticamente aleatório.
Então, Abbott e seus alunos tentaram ver se as letras se encaixavam em qualquer tipo de cifra em uso durante a II Guerra Mundial. Dois dos alunos, Stephen Maxwell e Patrick Johnson eliminaram mais de 20 tipos de cifras e até ganharam um prêmio da Defence Science and Technology Organisation (DSTO) da Austrália. Excelente investigação, mas parcos resultados.
Para ver se as letras poderiam fazer parte da estrutura de alguma língua, Abbott e seus estudantes compararam-nas com a Declaração Universal dos Direitos Humanos — um documento longo e traduzido para praticamente todas as línguas do mundo. Usando um software automatizado, eles não encontraram aproximação com nenhuma linguagem. Entretanto, ao repetir o teste algumas vezes, limitando-o a considerar apenas a frequência das primeiras letras de cada palavra, o idioma inglês apareceu como o mais próximo.
Agora, o time de investigadores está nesse ponto, com duas linhas de investigação: 1) as letras são um tipo de código-chave que explora letras iniciais ou 2) as letras são apenas as iniciais de uma frase em inglês.
Para investigar a segunda hipótese, os pesquisadores construíram seu próprio mecanismo de busca, capaz de usar “curingas” — símbolos que representam qualquer letra, como *** — para pesquisar frases que começam com essas letras. Infelizmente, o Google não tem essa característica.
“Fazer um arrastão pela web com um PC leva uma eternidade”, explica Abbott. “O Google tem uma fazenda de servidores e eles indexam a rede, então suas buscas são feitas num índice da web já revisado.” O professor de engenharia dá o exemplo de como é difícil a investigação:
Nós fizemos um arrastão da web buscando apenas por frases que podem começar com as seguintes letras do código: MLIAB. Apenas para essa sentença curta, levamos 18 horas para chegar a um resultado. Deu a frase ‘my love is a butterfly’. Por mais interessante que possa ser encontrar algo romântico, não temos como fazer isso de novo.
Abbott procurou o Google para pedir permissão e poder acessar diretamente o web index do buscador. Sem resultados. Agora o plano é improvisar e usar dados publicamente disponíveis, como o N-gram do próprio Google — que coleciona inúmeras frases de até cinco termos. Embora essa abordagem não leve à reconstrução da mensagem original, pode dar uma noção geral da mensagem ao apresentar frases únicas que se encaixem na sequência de letras.
O segundo código: DNA
Se a análise criptográfica não der em nada, a identificação do Homem de Somerton ainda pode usar outro código: o DNA do corpo, que pode ser comparado ao código genético de milhões de outros indivíduos registrados em bancos de dados genealógicos.
Por enquanto, Derek Abbott e outros investigadores têm acesso apenas ao DNA de amostras capilares do Homem de Somerton — e ainda assim tais amostras foram seriamente danificadas pelo formaldeído usado no processo do embalsamamento. Seria melhor obter DNA de células dentárias, mas devido aos requisitos legais da Austrália do Sul, ainda não é possível exumar o corpo do homem desconhecido.
De qualquer forma, três tipos de DNA podem ser testados pelas técnicas atuais: DNA mitocondrial (mtDNA, herdado da mãe), YDNA (herdado do pai) e DNA autossômico (herdado de ambos os genitores). Para Abbott, o DNA autossômico seria o melhor pois “é herdado de ambos os lados da família e quando você o compara com um banco de dados genealógico, pode encontrar parentes recentes indo até o primo de quinto grau. Ao encontrar essa rede de primos, pode-se triangular a árvore genealógica e inferir os pais desconhecidos.”
O problema com o DNA autossômico é que sua concentração celular é muito menor que os níveis de mtDNA e YDNA. Quando se tem apenas uma amostra pequena de cabelo humano com mais de 60 anos e quimicamente danificada, extrair material genético suficiente é um problema difícil.
Enquanto isso não se resolve, os pesquisadores da Universidade de Adelaide executaram um teste simples de mtDNA como passo inicial. O grupo do Professor Jeremy Austin, do Australian Centre for Ancient DNA, descobriu que a mãe do Homem de Somerton pertence ao haplogrupo H do DNA mitocondrial (como cerca de 40% dos europeus). Mas isso não é uma grande novidade, dado que Mr. Somerton parece claramente caucasiano.
Entretanto, esse pequeno sucesso mostra que o DNA ainda presente nas células de Somerton é analisável e não foi inteiramente contaminado pelo processo de embalsamamento. Essa evidência pode levar à reabertura do caso e eventualmente a uma exumação do corpo.
Um possível neto
Antes que isso aconteça (se é que vai acontecer), os pesquisadores continuam analisando o DNA do cabelo do Homem de Somerton bem como de seus supostos parentes. Em 1949, os investigadores rastrearam o proprietário de um número de telefone anotado no exemplar do Rubáiyát pertencente ao Homem de Somerton. Era uma mulher, apelidada de Jestyn porque não queria ser identificada pela polícia. Jestyn vivia a poucos quarteirões do local onde o corpo desconhecido foi encontrado.
Em 1947, ainda solteira, Jestyn deu à luz um menino chamado Robin. Quando o Homem de Somerton apareceu morto na praia, Jestyn já estava casada com outro homem, que lhe assumiu o filho. É possível que Mr. Somerton tenha tentado encontrar Jestyn – seja para devolver o livro seja para ver o possível filho. O livro, como vimos, foi jogado pela janela de um carro estacionado a caminho da praia de Somerton.
Entrevistas com parentes de Robin indicaram que seu pai poderia ter sido Mr. Somerton. Embora Robin tenha falecido vítima de câncer de próstata e tenha sido cremado em 2009, os cientistas da Universidade de Adelaide encontraram uma maneira de reconstruir seu código genético. Robin tem pelo menos um descendente vivo e, subtraindo o DNA da esposa de Robin dessa amostra, obtém-se o chamado perfil autossômico do DNA de Robin.
Partindo desse hackeamento genético, novos testes foram feitos com o material encontrado e sugerem que Robin tem laços ancestrais com os EUA por via patrilinear. Vários dos primos distantes de Robin ainda vivem em território americano, principalmente no estado de Virgínia.
Os resultados até mesmo indicam que Robin teve um primo que era descendente de Isham Randolph, avô de Thomas Jefferson. Levando-se em conta os dados do Projeto Eurogenes K13, encontraram até uma pequena fração de DNA ameríndio no genoma de Robin. Juntando tudo isso com o fato de que Mr. Somerton foi encontado vestindo uma jaqueta e uma gravata americana, as evidências apontam para uma origem americana.
Ainda assim, o mistério está longe de terminar…
No próximo post veremos como Abbott lançou uma nova luz — laser — sobre o mistério de Somerton.
[Parte 3: Química, Fotografias e outras evidências]
Luiz Henrique
Cara que história maravilhosa. Parabéns pelo post