O bate-papo que dá sono

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Em cores falsas, T. brucei (azul) em meio a glóbulos vermelhos. [Imagem: microbewiki.kenyon.edu]

“Quem não se comunica, se trumbica”, já dizia o velho mestre Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Seja para se defender, marcar território ou encontrar um parceiro, todos os animais se comunicam. Até os microscópicos protozoários conversam — e o bate-papo de um deles pode causar uma doença fatal em seres humanos.

Com 3679 novos casos registrados em 2014 (segundo a Organização Mundial da Saúde) em 24 países sub-saarianos, a doença do sono é um dos males tropicais negligenciados pelo resto do mundo. A doença do sono é transmitida pela mosca tsetsé infectada com o protozoário Trypanosoma brucei gambiense (parente do T. cruzi, que causa o Mal de Chagas). O Tbg também pode infectar gado bovino, causando a doença conhecida como nagana, geralmente fatal.

Tecnicamente chamada de tripanossomíase africana nos humanos, a doença do sono tem duas fases. Na hemofílica, que começa de duas a três semanas após a picada, os sintomas são febres, dores nas articulações, coceiras e inchaço nos nodos linfáticos. Caso não haja tratamento, pode haver anemia e disfunções endócrinas, cardíacas ou renais.

A situação se agrava na fase neurológica, quando o tripanossoma alcança o sistema nervoso central, desorganizando o ciclo circadiano, levando a episódios de sonolência diurna e insônia (daí o nome). Complicações incluem tremores, confusão mental, fraqueza muscular, mudanças de comportamento, apatia e até paralisia de algum membro. Os danos da fase neurológica são irreversíveis e, na ausência de tratamento adequado, podem levar a óbito em meses (ou anos, dependendo do caso).

Trocando as bolinhas

Há dois anos, o professor de bioquímica e biologia molecular na Universidade da Georgia (UGA) Stephen Hajduk começou uma pesquisa sobre o T. brucei em suas horas vagas. Fazendo observações ao microscópio durante longos períodos, Hajduk notou uma coisa esquisita: pequenos grãozinhos eram expelidos pelo flagelo do protozoário. Mais detalhadamente, foi observada o formação de um nanotubo no flagelo que, depois de expelido, fragmentava-se em partículas ou grânulos.

Essa coisa é tão corriqueira que passou despercebida nos laboratórios por mais de um século. Essas coisinhas minúsculas são as vesículas extracelulares, que foram descritas pelos cientistas pela primeira vez em 1912 e redescobertas por Hajduk em 1978. E agora ele redescobriu de novo. A diferença é que agora Hajduk e seus colaboradores propõem uma função para os nanotubos e os grânulos: comunicação.

Em artigo publicado em 14 de janeiro na Cell, os pesquisadores da UGA afirmam que as vesículas extracelulares do T. brucei são seu meio de comunicação. Ao lançar suas bolinhas no ambiente, o protozoário pode se informar sobre a presença de outros protozoários, que absorvem essas pequenas estruturas. Ao Phys.org, Hajduk explicou que os T. brucei se comunicam para não se trumbicar: “eles realmente são capazes de sentir quando estão em certo nível na corrente sanguínea do mamífero e assim são capazes de reagir de alguma forma.” Jogar suas bolinhas por aí é o radar dos protozoários.

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Resumindo: 1. T. brucei produz nanotubos que formam vesículas extracelulares (EVs). 2. Carregando fatores de virulência, EVs são absorvidas por outros T. brucei e 3. Infectam as hemácias, levando a anemia.

Prenda-me se for capaz

O problema é que as hemácias também engolem umas vesículas extracelulares. E isso pode ser o bastante para que sejam sinalizadas como infectadas pelo sistema imunológico. Com uma membrana externa facilmente mutável, o T. brucei é bastante “liso” em termos imunológicos e por isso pode se reproduzir loucamente (e despercebido) durante as primeiras semanas da infecção.

No estudo recém-publicado, os cientistas notam que a atividade da vesícula extracelular contribui para a complexidade da doença do sono. Aquelas bolinhas podem também ser um meio de transferir fatores de resistência entre os parasitas. Um protozoário com um disfarce bem-sucedido, por exemplo, pode avisar o resto da colônia, que se tornaria mais resistente.

Outros efeitos colaterais com células do hospedeiro também são possíveis. Hajduk ressalta que mais pesquisas são necessárias, especialmente sobre os nanotubos, que poderiam ser usados — ou quem sabe hackeados — para diagnósticos não-invasivos ou mesmo para fins terapêuticos.

Referência

rb2_large_gray25SZEMPRUCH, Anthony J. et. al. Extracellular Vesicles from Trypanosoma brucei Mediate Virulence Factor Transfer and Cause Host Anemia [Vesículas extracelulares do Trypanosoma brucei mediam transferência de fator de virulência e causam anemia no hospedeiro], Cell. vol. 164, nºs 1-2, 14 de janeiro de 2016, pp. 246-257. doi:10.1016/j.cell.2015.11.051

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