O paradoxo do filme de terror

Cena de “A Bolha Assassina” (The Blob, 1988)

Charles está assistindo um filme de terror sobre uma terrível gosma verde. Ele se arrepia no seu assento enquanto a gosma espalha-se lenta porém inexoravelmente sobre a Terra, destruindo tudo em seu caminho. Logo uma cabeça gosmenta emerge da massa ondulante, com seus dois olhos maliciosos. Ganhando velocidade, a gosma revolve em uma nova rota, indo em direção aos espectadores. Charles dá um grito e agarra-se desesperadamente à sua cadeira. Mais tarde, ainda trêmulo, ele confessa que ficou ‘horrorizado’ com a gosma.

Esse cenário foi proposto pelo filósofo Kendall Walton, da Universidade de Michigan, para ressaltar quão paradoxal é nossa relação não apenas com os filmes de terror mas com a ficção em geral. Charles estava realmente assustado?

Num artigo agora clássico, publicado no Journal of Philosophy em 1978, Walton argumenta que não. Charles, diz o filósofo, pode ter sentido um medo intenso e até tremido quando o monstro se aproximou da câmera. Mas, ao mesmo tempo, ele sabia que não estava em perigo. Charles nunca apresentou uma reação visceral, como fugir do cinema ou chamar a polícia. Charles não era ameaçado pelo monstro mas mesmo assim ele sentiu-se assustado. Por quê?

Walton não tem resposta para essa questão, mas reconhece que o problema é de fundamental importância: “É crucialmente relacionado com a questão básica de como e por que a ficção é importante, do porquê nós a valorizamos, do motivo pelo qual não desprezamos romances, filmes e peças teatrais como ‘mera ficção’ indigna de atenção séria”.

Meu palpite é de que valorizamos a ficção por dois motivos. Primeiro, a ficção funciona como uma espécie de sonho consciente, nos permitindo experimentar certas situações de maneira segura, sem correr nenhum risco (isso explica os filmes de terror, por exemplo). Além disso, ao permitir que mergulhemos em outras vidas e vejamos o mundo por outros ângulos, a literatura e o cinema exercitam nossa empatia, que facilita a criação de laços sociais. Dessa forma, a ficção torna-se indispensável para que a vida em sociedade seja possível no mundo real.

Referência

rb2_large_gray25WALTON, Kendall L. Fearing Fictions [Temendo Ficções]. The Journal of Philosophy, vol. 75, n. 1, janeiro de 1978, pp. 5-27. DOI: 10.2307/2025831 [obs: o site do Journal of Philosophy está fora do ar, mas o artigo pode ser encontrado aqui]

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  • Roberto Takata

    Muita gente gosta também da sensação de ardência da capsaicina e de andar de montanha russa. E há os que gostam de se expor a situações de perigos mais reais: esportes radicais e lutar em guerra.

    Aí há duas explicações que pode complementar as suas:
    1) um certo vício em relação às sensações propiciadas pela exposição ao perigo (ou talvez à sensação de alívio que surge depois que se escapa ou se 'escapa' do perigo);
    2) a sensação de destemor por enfrentar ou 'enfrentar' os perigos.

    http://psycnet.apa.org/psycinfo/1959-08714-001
    http://learnmem.cshlp.org/content/16/5/279.short

    []s,

    Roberto Takata

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