
“Bienvenido a la nueva era, a un mundo sin dolor
Sin amor, ni imaginación (…)
Oh-oh, en Satania estás
Tus pensamientos programados están
Oh-oh, aprieta el botón
Navega en mi mundo, deseos.com”
(Satania - Mägo de Oz, primeira faixa do álbum Finisterra)
Satania é um mundo virtual descrito na ópera rock Finisterra, álbum duplo da banda espanhola Mägo de Oz lançado em 2000. Na obra, o planeta é devastado pela terceira e última guerra mundial (la guerra del hambre) e como resultado, os poderosos criam Satania, um mundo “perfeito”, sem violência, sem revoluções e sem liberdade de pensamento. Um “paraíso artificial”, onde é proibido ler, sexo é feito virtualmente e para chorar é preciso comprar um programa em que se pode personalizar as lágrimas.
Ouvindo o álbum, passei a refletir sobre um tema que sempre volta à tona, os algoritmos de recomendação das redes sociais. A bem da verdade, mecanismos de dominação e violência como os descritos em Finisterra não são necessários e por vezes relações de poder sutis são mais eficientes.
Aqui talvez seja importante fazer esta distinção: Só existem relações de poder quando há liberdade. Se as possibilidades de resistência são anuladas resta apenas uma relação de dominação.
Governo das redes e disciplina algoritmica
Dentre as formas que as relações de poder tomam, está a governamentalidade, conceito definido por Foucault que descreve um poder focado na gestão de populações (e não de indivíduos) através de dados e análises estatísticas, de instituições e de outras tecnologias de governo.
Agora, com o perdão que Foucault pode me conceder de seu túmulo, podemos tensionar este termo ao pensar o ciberespaço como um lugar a ser governado, com suas próprias características e relações de poder.
Pense nas montanhas de dados que fornecemos todos os dias para as empresas que administram redes sociais. E baseados nisto (mas não somente nisto) elas nos dizem que conteúdos consumir, que influenciadores ouvir e que assuntos acompanhar.
Os algoritmos de recomendação são excelentes tecnologias disciplinadoras pois cumprem uma dupla função: Ao mesmo tempo que dizem o que podemos ouvir, determinam como e sobre o que devemos falar.
Saiu da linha? É punido, silenciado. Seguiu nossas diretrizes? Mais visibilidade, mais curtidas, mais possibilidades de pautar debates. Assim, vamos aos poucos silenciosamente absorvendo as regras, nos tornando corpos dóceis perante regras estabelecidas por empresas governantes das redes que muitas vezes nem sabemos os nomes (quando foi a última vez que você viu alguém questionando a ByteDance? Quando você pensa no LinkedIn, associa a Microsoft?).
Os Sujeitos do Ciberespaço
A disciplina imposta tornou-se tão eficaz que há profissionais especializados em atender aos algoritmos na maioria das empresas e instituições, os social media. Muitos deles juram dominar os algoritmos, mas ao menor sinal de mudança, há um alvoroço, e conseguimos perceber quem domina e quem é dominado. Mesmo negócios menores, sem um profissional dedicado às redes, tentam formas de viralizar seus conteúdos, o que pode transformar a saúde financeira deles da água para o vinho.
E, acredito que não preciso me alongar ao falar dos influenciadores digitais e produtores de conteúdo, outros profissionais derivados das relações vindas dos algoritmos que não propriamente vendem um produto ou serviço, mas que tem como papel fazer com que as pessoas passem mais tempo nas redes. Os produtores de conteúdo são vitais ao funcionamento das redes, diferente dos trabalhosos processos necessários para alguém se mudar para outra cidade, a rede vizinha está a uma aba de distância. Não há governo sem população.
Como alguém que trabalha e estuda comunicação, entendo a necessidade de atender os algoritmos. No ciberespaço, as redes sociais são os locais de “promoção” e por vezes a “praça” de vendas, dois dos “4Ps” do marketing (Sendo eles: Produto, Preço, Praça (local de venda) e Promoção (no sentido de promover)). Precisamos das redes, pois é onde as pessoas que queremos atingir estão, mas digamos que uma regulamentação das redes seria bem-vinda.
Se fazer uma crítica é tornar difíceis os gestos fáceis, faço a pergunta que ninguém quer fazer: Até quando aceitaremos viver em Satania?
“En Satania estás, es el fin del camino”
(Finisterra - Mägo de Oz, última faixa do álbum Finisterra)
Para saber mais
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? Crítica e Aufklärung. Trad. Gabriela Lafetá Borges e rev. Wanderson Flor do Nascimento. (Original: Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Sociéte françaíse de philosophie. Vol. 82, n 2, p.. 35-63, avr/juin 1990 (Conferência promovida em 27 de maio de 1978).
FOUCAULT, Michel. Então é importante pensar?. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. (Original: “Est-il donc important de penser?” Entrevista com Didier Eribon. Libération, n° 15, 30-31 maio de 1981, p. 21. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. IV, pp. 178-182).
REVEL, Judith (2005). Michel Foucault: Conceitos essenciais. Trad. Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlos Piovesani. São Carlos (SP): Claraluz.
Wiki Mägo de Oz – Finisterra (Album letra).
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