IAgora? Chat GPT promovido a professor?

A imagem apresenta um perfil humano estilizado e colorido, representando um tema de tecnologia e aprendizado. No topo, há um texto em português que pergunta: “IA gora? Chat GPT promovido a professor?” Abaixo, pequenas figuras humanas estão alinhadas, olhando para o perfil maior. O perfil é composto por vários ícones que simbolizam livros, relógios, engrenagens e lâmpadas, indicando ideias e educação. O fundo é azul claro, e o estilo é moderno e abstrato, com cores vibrantes.
Texto de Ana de Medeiros Arnt e Gildo Girotto Junior

Recentemente foi noticiado que o Governo de São Paulo iria usar Inteligência Artificial para produzir conteúdos digitais, destinados às escolas estaduais paulistas. Esta notícia nos traz tantos elementos para pensar sobre a atual situação da educação brasileira na atualidade, que nos pareceu fundamental respirar fundo, buscar dados e autores que debatem a educação brasileira há anos, para iniciar este diálogo. Mas, começamos logo de cara afirmando: Não! As Inteligências Artificiais (IAs), ou Inteligências Artificiais Generativas (IAGs) não são capazes de produzir aulas com a qualidade que um professor poderia fazer. Se você discorda, conheça nossos argumentos. Se você concorda, some-se a nós.

O contexto da coisa toda: O que é o Chat GPT?

O Chat GPT, alvo da notícia, é um sistema de Inteligência Artificial Generativo. Tais sistemas são aqueles que teriam a capacidade de simularem habilidades humanas, como aprendizado, raciocínio e tomada de decisões por meio de aprendizagem de máquina. A aprendizagem de máquina é um campo da inteligência artificial que se concentra em desenvolver algoritmos e modelos que permitem aos computadores aprender a partir de dados e tomar decisões sem serem explicitamente programados. 

E o Chat GPT ou outras IAGS podem dar aulas?

Então, poderíamos nos perguntar: Se as IAGs têm a capacidade de aprender e “imitar” o comportamento humano, ela não seria capaz de “dar aulas” no lugar de um ser humano? Já respondemos a esta questão lá no início. Mas agora vamos argumentar sobre!

Há vários aspectos a se considerar e poderíamos escrever páginas e páginas. Mas vamos nos concentrar sucintamente em alguns deles. O primeiro é obviamente o aspecto humano do processo de ensino e aprendizagem. O segundo é a origem dos dados, os algoritmos e a programação dos sistemas de IAGs e como consequência a habilidade técnica da máquina. O terceiro aspecto é a histórica relação de precarização do trabalho docente.

O processo de aprendizado e as relações entre pessoas

O processo de aprendizado envolve uma relação dialógica entre alunas(os) e professoras(es) permeada por um conjunto amplo de sujeitos como os pais ou responsáveis e coordenadoras(es). Os sujeitos que fazem parte deste contexto educacional estão inseridos em um ambiente com especificidades próprias e, individualmente, tem suas características particulares. Dessa forma, todos esses fatores são considerados quando um(a) professor(a) senta em sua cadeira e começa a planejar suas aulas. Estudantes diferentes não aprendem da mesma forma, porque possuem ritmos de aprendizagem distintos e particulares. Ao mesmo tempo, eles interagem com materiais de formas distintas e, portanto, a apresentação de diferentes recursos é fundamental. 

Além disso, durante a aula a interação diversificada exerce papel fundamental na atividade. Questões levantadas por alunos podem fazer com que a aula tome direções diferentes, retomando conceitos prévios, avançando para tópicos menos elementares dentre várias situações possíveis. Se você, leitor ou leitora, é professor(a), já deve ter se deparado com situações como “Professor, pode explicar de novo?”; “Professor, não tivemos esse conteúdo?”; “Professor, qual a importância desse tema?”. 

Esses dois primeiros parágrafos nos levam ao argumento de que os sistemas de IAG não são capazes de atuar considerando as características próprias de cada escola, de cada sala de aula e de cada estudante.

Ainda que estes sistemas possam reunir um conjunto de conteúdos (falho, muitas vezes como vamos falar na sequência), a produção de aulas utilizando IAGs seria uma ação de padronização do ensino considerando que todos os indivíduos são iguais – talvez pequenos robozinhos – e que também, todos os contextos são iguais. Isso vai contra tudo o que se compreende como educação de qualidade atual, como aquela que envolve avaliações diagnósticas, ensino por investigação, contextualização, interdisciplinaridade, etc, etc.

“Mas e se fosse só para ensinar conteúdos mais técnicos?”.

Entendemos que esse processo poderia ocorrer, em partes. Todavia, EM HIPÓTESE ALGUMA, sem a mediação do professor. Primeiro, porque as IAGs funcionam com uma busca de um conjunto absurdo de informações disponíveis na rede, mas seu algoritmo ou sistema de busca e seleção não é fornecido a nós, como usuários, e talvez nem fosse decifrável. Nesse sentido, os conteúdos selecionados pela IAG viriam de fontes que não sabemos quais são, selecionados de uma forma que não sabemos como e organizado considerando uma lógica indisponível. Ou seja, o material produzido tem uma estrutura organizacional obscura e, possivelmente, aleatorizada.

Para se ter ideia, alguns estudos têm mostrado que as IAGs reforçam concepções alternativas e erros conceituais clássicos, preconceitos e questões problemáticas envolvendo o desenvolvimento científico. Possivelmente, isso ocorre pelo fato de que, na rede, esses erros e informações estão consolidadas e, como o abastecimento da IAG vem desta rede, os erros se reproduzem.

Além disso, o próprio “manual” do Chat GPT informa que não pode produzir “conteúdos sensíveis”. No caso das áreas que nós atuamos, a química e a biologia, existem inúmeros conteúdos que podem ser classificados como tais. Por quê? Por poderem ser usados para produção de armas químicas e biológicas, por tratarem de temáticas sobre uso de substâncias potencialmente perigosas, ou conteúdos considerados tabus, que se relacionam também às áreas das humanidades, como discussões de gênero e racismo.

E aí vocês podem perguntar: Não é só treinar as máquinas ou os IAGs?

Aqueles que defendem as IAGs costumam dizer exatamente isso: “mas nós podemos treinar a máquina, abastecendo com conteúdos confiáveis”. Neste caso, caímos no nosso primeiro ponto, de padronização do ensino considerando todos os contextos como iguais. Mas, além disso, mesmo com treinamentos, estudos têm mostrado que o ChatGPT, inclusive em sua versão paga, não é capaz de incorporar o uso de documentos oficiais, como a BNCC, sob a ótica de um ensino pautado na problematização, fornecendo planejamentos de ensino técnicos e pautados exclusivamente na reprodução de conteúdo.

Treinar uma máquina para executar determinadas tarefas não faz com que a máquina compreenda a diversidade de situações, individualidades e identidades que acontecem em sala de aula. Embora isto pareça óbvio de ser dito, é preciso uma ressalva. Isto é, não é incomum que docentes sejam vistos como profissionais “técnicos”, compreendendo isto como sinônimo de “ensinar conteúdos” de forma quase sem interlocução com a vida de seus alunos e a sociedade em que estamos inseridos.

Assim, quando falamos sobre formar um professor e treinar uma máquina como sinônimos, estamos colocando a ideia de técnica como um conjunto de protocolos que docentes deveriam seguir, sem qualquer questionamento. Isto é, como se o programar conteúdos dissesse respeito a apenas rastrear informações e agrupá-las.

Ser docente está longe disso… E vamos explorar estas ideias nos próximos textos, pois é necessário um tempo para aprofundar melhor estas questões.

Mas não dá pra usar as IAGs?

Sim! Não queremos, aqui, colocar de lado o uso de IAGs. O que não dá é para usá-las como produtoras de aulas. E é isso que o Governo de São Paulo não entende. Ou entende e faz da mesma maneira, como forma de desvalorizar o professor e economizar gastos com esse profissional, o que reproduz o histórico de desvalorização da educação das governanças passadas desse estado.

Há diferentes ações mostrando formas de uso das IAGs em sala de aula e, na maior parte delas, o professor é o mediador. Isto é, não temos a substituição do professor, essas ferramentas nos possibilitaram ter à disposição um novo recurso, uma nova tecnologia da informação e comunicação, como foi o computador, a internet, as simulações, os aplicativos de celulares, etc. Materiais didáticos e recursos não são GUIAS para o professor. Ou seja, não devem (e não foram produzidos para) ser lidos da primeira à última palavra, especialmente sem contexto ou debate. Todos estes materiais são recursos que ele consulta para produzir os caminhos de aprendizagem de forma contextualizada e considerando as características específicas de seus alunos.

Nesse sentido, em diversas áreas, as IAGs estão sendo utilizadas para simular propostas para que os futuros profissionais avaliem e discutam criticamente.

Dando um exemplo específico.

Considerando a existência de um problema relacionado à falta de saneamento básico em um bairro. Pode-se apresentar todas as características do problema e pedir para que a IA gere uma “solução”. Pronto temos aqui um estudo de caso que pode ser solicitado pelo professor ou pelos próprios estudantes.

Em sala de aula este estudo pode ser discutido conjuntamente, avaliando-se a viabilidade da proposta, discutindo aspectos técnicos que serão então abordados pelo professor e reformulando a proposta ou a rejeitando. Percebem que neste ponto temos o uso da IAG como um recurso interessante, dentro de uma prática com uma proposta de metodologia ativa, buscando o engajamento dos estudantes e considerando o papel crucial do professor. Ou seja, algo muito diferente da proposta da secretaria de educação do estado de São Paulo.

Por fim…

Com este texto, não quisemos desconsiderar o uso de novas tecnologias, para incrementar a sala de aula, conteúdos escolares e novas possibilidades de acesso a essas tecnologias pelo espaço escolar.

Pelo contrário, buscamos apontar o quanto essa proposta não passa por isso… Ao que tudo indica, parece um modo de diminuir a relevância de docentes, seu conhecimento teórico e prático, sem que se resolva vários problemas típicos da educação. Como, por exemplo, a sobrecarga docente,  falta de investimentos e condições de trabalho para o planejamento de conteúdos, direcionados às relações sociais e culturais locais, aliado ao conhecimento técnico e científico e conhecimentos curriculares propostos na BNCC, falta de compreensão do que é necessário ao espaço escolar, às noções de aprendizagem e metodologias de ensino, dentre outras questões.

Assim, para finalizar, não acabamos por aqui este assunto. Haverão mais textos, para debatermos outros aspectos ainda desta proposta de política pública. Não se trata de algo simples de abordar em um só texto, tampouco se esgota em 2000 palavras.

Hoje foi só um início de nossa conversa.

Para Saber Mais

AlAfnan, M. A., Samira Dishari, Marina Jovic, & Koba Lomidze (2023). ChatGPT as an Educational Tool: Opportunities, Challenges, and Recommendations for Communication, Business Writing, and Composition Courses. Journal of Artificial Intelligence and Technology, 3(2), 60–68. 

Athaluri S, Manthena S, Kesapragada V, et al. (2023) Exploring the Boundaries of Reality: Investigating the Phenomenon of Artificial Intelligence Hallucination in Scientific Writing Through ChatGPT References. Cureus 15(4): e37432

Bruno S. Leite (2023) Inteligência Artificial e ensino de química: uma análise propedêutica do chat gpt na definição de conceitos químicos. Quimica Nova, V46, N9, 915-923.

FOLHA DE SÃO PAULO (2024) Governo de São Paulo iria usar Inteligência Artificial para produzir conteúdos digitais Folha de São Paulo

FREITAS, A (2024) Governo de SP avalia utilizar inteligência artificial para ‘aprimorar’ conteúdo digital nas escolas estaduais, G1 | São Paulo | 

Leon, AJ, Vidhani, D (2023) ChatGPT Needs a Chemistry Tutor Too J Chem Educ, 100, 10, 3859–3865

Talanquern, V (2023) Interview with the Chatbot: How Does It Reason? Interview with the Chatbot: How Does It Reason?. J Chem Educ, 100, 2821−2824

Yanfang Su, Yun Lin, Chun Lai  (2023) Collaborating with ChatGPT in argumentative writing classrooms. Assessing Writing, V57.

Outros Textos do PEmCie

Docência: uma contínua rotina sobre o impermanente

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Os autores

Ana de Medeiros Arnt Bióloga, Professora e Pesquisadora do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB/UNICAMP), é pesquisadora do PEmCie.

Gildo Girotto Junior é Químico, Professor e Pesquisador do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ/UNICAMP) é pesquisador do PEmCie.

Sobre Ana Arnt 56 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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