Disciplinas diferentes? A escola militarizada e a ênfase em um dos lados da moeda

Texto de Willian Molina, Lavínia Schwantes e Pedro Leal

“Não pode correr, não pode fazer uma roda de amigos” – A disciplina dos “não pode”

Em um dos episódios do podcast “UOL Prime”, de setembro de 2024, um estudo nos chamou a atenção: as escolas cívico-militares no Brasil aumentaram em 245% nos últimos cinco anos! Agora, são cerca de 792 instituições com essa “pegada” militar e disciplinar.

Nas escolas cívico-militares, civis lideram as gestões, enquanto militares, como eles dizem, “supervisionam a disciplina”, resultando em um ambiente de regras rígidas e intenso controle comportamental. Os alunos e seus pais recebem manuais repletos de proibições e a fiscalização fica por conta de monitores. Eles, muitas vezes, são policiais e utilizam, por exemplo, aplicativos para pontuar o comportamento dos estudantes. Segundo a repórter Adriana Ferraz, entrevistada do podcast, a escola que ela visitou funciona mais ou menos como as regras de um quartel!

Esse modelo gera uma série de debates sobre suas consequências sociais e políticas. Nesse texto, a ideia é refletirmos sobre o poder disciplinar e outras formas de entender a disciplina, que permeia essas instituições, e, para isso, recorremos a Michel Foucault. 

Foucault (2013) escreveu sobre a potência do poder disciplinar surgido na modernidade e presente nas relações humanas, sociais e em instituições como escolas, hospitais e prisões. Ele aponta que as escolas são “centros” de controle social, repletas de regras, vigilância e classificações, como notas, que produzem alunos “dóceis” e “úteis”.

Quem não se lembra do professor de olho em tudo na sala de aula? Muitas vezes, até com um degrau mais alto na frente da sala para ter uma visão mais ampla da turma. Ou ainda, as janelas nas portas das salas? Elas ajudam a vigiar quem está dentro! Toda a disposição e dinâmica em sala faz com que os alunos concentrem-se no professor e no que este apresenta, e ao mesmo tempo, se auto-regulam, tentando não desviar das expectativas esperadas.

Porém, ser “dócil”, no contexto do autor citado, não significa ser submisso, abaixar a cabeça e deixar de questionar ou criticar. O que Foucault nos provoca a pensar é que a disciplina é importante para a convivência em uma sociedade moderna, que é disciplinada, que possui regras para funcionar. Ela produz efeitos na forma como nos comportamos e, sem que percebamos, acaba regulando nossas ações e maneiras de ser e estar no mundo. E isso, no fim das contas, é disciplina! Nessa visão o poder disciplinar não é algo bom ou ruim, Foucault nos diz que ele existe e está produzindo efeitos. Mas, qual será o entendimento de disciplina que as escolas militarizadas estão alinhadas?

Disciplina: Entre a punição, rigidez e o controle sutil dos corpos

As regras de uma escola militarizada, como mostramos mais acima (e você pode ouvir no episódio indicado!), envolvem dinâmicas muito específicas e estritamente restritivas, como exemplo, o estudante não pode correr, se juntar com os colegas para fazer uma roda de amigos, deve utilizar o uniforme limpo e sem estar amarrotado, manter uma postura ereta e firme, além de cumprir com rigorosidade os horários e fazer saudação à bandeira. Esse é o perfil de um aluno bem alinhado às tais regras. Quando atende isso com “maestria”, ele poderá elevar sua classificação e se tornar um xerife ou chefe de sala!

Nos parece que o funcionamento dessas escolas possuem como base três pilares principais: a rigidez (uniforme impecável e conduta restrita), a punição (para aqueles que não cumprirem as regras) e a competitividade (devido a pontuação e a classificação hierárquica dos mais e menos obedientes).

Fazendo um breve paralelo entre essa concepção de disciplina e aquela enunciada por Foucault, podemos notar diferenças, ou seja, os dois lados da moeda “disciplina”. De um lado, nas escolas militarizadas, uma disciplina imposta, intencionalmente visível, bem demarcada, pontual e registrada (nos manuais, nos aplicativos), ou seja, é obrigatória ao estudante, de forma unilateral, impositiva. De outro lado, a disciplina apresentada por Foucault é sutil, difusa, invisível e imperceptível, produzindo marcas subjetivas nos corpos. Ela se manifesta não de forma vertical, mas nas relações entre todos os sujeitos da escola.

Percebe a diferença? De forma resumida, podemos dizer que, diferentemente da disciplina dissertada por Foucault, o regime disciplinar militar é “palpável” e a punição, assim como o controle, é impositiva, visível e externa (o que há aproximações com o poder soberano, também discutido pelo autor). Na perspectiva foucaultiana, o poder disciplinar está diluído no corpo escolar, o monitoramento de cada um é internalizado e delicado, produzindo auto regulação e auto supervisão nos estudantes, professores e gestores. Nesse sentido, não precisamos, necessariamente, ter alguém (alguma figura de autoridade) impondo como devemos nos comportar ou agir, nós mesmos fazemos isso, e, sem notar, estamos nos auto disciplinando! É quase que um processo natural.

Ok! Entendemos que são concepções diferentes de disciplina! Mas qual a importância de se pensar sobre isso? Entramos, neste momento, no campo da reflexão filosófica e terminamos esse texto com algumas perguntas e apontamentos. 

Será que a disciplina rígida nas escolas militarizadas não prejudicaria a autoestima, a criatividade, a criticidade e a autonomia dos estudantes? Tendo o foco direto na obediência e no controle, esse modelo de educação limita ou expande a liberdade dos indivíduos? E ainda, não estaria a disciplina nesse contexto mais voltada a preparar os alunos para um mundo de hierarquias rígidas, obediência irrestrita  e subordinação? Em um ambiente tão homogêneo, onde todos devem se comportar de forma “igual”, que espaço sobra para a diversidade individual, seja na vestimenta, no estilo de cabelo, no desenvolvimento da capacidade crítica ou na maneira de se portar? E como isso afeta na socialização dos estudantes, um processo importante para o desenvolvimento humano, como destacam diversos pesquisadores da educação?

Entendemos, na perspectiva de Foucault, que a escola não liberta ou emancipa os sujeitos. A escola foi inventada para disciplinar os corpos. Entretanto, mesmo com a importância e necessidade de disciplina, regras e controle, pensamos que a escola deve ser um espaço aberto à diversidade, pluralidade, pensamentos, socialização, respeito às individualidades e livre de competitividades, hierarquias e classificações – coisa que não visualizamos no regime militar.

Saiba mais

Episódio do podcast sobre as escolas militarizadas: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2024/08/26/escolas-militarizadas-crescem-e-unem-governos-de-direita-e-esquerda.htm

Livro de Foucault sobre o disciplinamento da sociedade: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya, 2013.

Mais algumas reflexões sobre a escola no texto de Eduardo Saito

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