Na terça-feira, dia 28 de outubro, ainda durante a madrugada, foi iniciada uma operação policial que acarretou, oficialmente, em 64 mortes no complexo do Alemão e da Penha, na cidade do Rio de Janeiro. Enquanto o Governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro aponta a operação como um sucesso, atividades presenciais – incluindo escola – são canceladas, moradores das comunidades recolhem corpos, o mundo vira os olhos para a nomeada cidade maravilhosa, em choque. Hoje, dia 31 de outubro, sabemos que esta operação foi a maior em 15 anos e a mais letal já realizada no estado. Um massacre, sem demagogias ou delongas.
É um difícil cenário para ser falado. Com narrativas atenuantes, polarizações políticas que vibram pelo sangue derramado e tentativas de contornar a situação, a contagem de mais de 120 pessoas mortas ultrapassa nos aterroriza. As imagens dos corpos dispostos no asfalto, de carros dos moradores trazendo mais e mais corpos, nada disso deveria ser existência em nosso mundo e país.
Eu não sou jornalista e não tenho condições – nem pretensões – de realizar qualquer tipo de cobertura deste horrível episódio brasileiro. Porém sei que não há como passar incólume por tudo o que vimos e ouvimos esta semana.
Eu vinha escrevendo, desde a semana passada, um texto sobre a Lei Anti-Oruam e as leis contra as ideologias de gênero. E durante esta semana, fiquei tentando digerir a violência que vivemos. Hoje resolvi traçar algumas relações, ainda que me arriscando pela emoção do momento, em parecer ora muito trivial, ora muito amarga. Mas o silêncio não é possível.
Epistemicídios, culturas e aceitação de massacres
Sueli Carneiro nos apresenta, no cenário brasileiro, a existência de um dispositivo de racialidade, que constrói, legitima e põe em prática uma série de funções sociais, vinculadas à raça. Dentro deste dispositivo, consta um elemento central e constitutivo do dispositivo de racialidade, que é o epistemicídio. Este termo, segundo Carneiro, pode ser definido como
um instrumento eficaz e duradouro de dominação étnica e racial pela negação da legitimidade do conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros, que passam a ser ignorados como sujeitos de conhecimento.
Aliado a isto, também penso ser pertinente retomar as noções de necropolítica de Achile Mbembe, quando ele aponta que
a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é a “condição para a aceitabilidade do fazer morrer”
Mbembe trabalha a ideia da necropolítica, desenvolvendo o conceito a partir da biopolítica, de Michel Foucault. A biopolítica seria o conjunto de estratégias, práticas e teóricas, de gestão da população, buscando aumentar e melhorar a vida da população.
E como uma estratégia política de melhorar a vida da população se vincula a uma política de morte?
Este é o desenvolvimento teórico do termo, que Foucault já aponta em seu trabalho, mas Mbembe aprofunda e atualiza de maneira absolutamente relevante para os tempos contemporâneos. O que Mbembe aponta é este lado em que a população, para ser gerida com saúde, educação e uma vida “melhor”, também tem como pressuposto o descarte de pessoas que não têm jeito, não fazem parte de um cenário social desejável. São, portanto, parte de uma estratégia política de morte.
Necropolítica e o combate à violência via massacres
Retomando o acontecimento desta semana, fica demasiadamente explícito o desejo de morte de uma população, a partir da caracterização e função social que ocupam. A idealização de que na favela só mora bandido e, portanto, as pessoas da favela como passíveis de serem legitimamente mortas pela mão do Estado. Uma vez que estamos combatendo tráfico, roubo, violência urbana, promovendo segurança pública, legitima-se discursivamente a morte de centenas de pessoas.
E, percebam, não é uma retórica aleatória que estou usando. Há pessoas efetivamente defendendo que estas mortes são de bandidos, que o massacre ocorrido é para o bem social, que este é o primeiro passo de muitos que deveriam ocorrer pelo Brasil. Repetindo o que já mencionei anteriormente, a operação foi um sucesso policial, segundo o Governador do Rio de Janeiro. Em reunião posterior, no dia 30 de Outubro, Castro foi parabenizado pela operação, por outros governadores brasileiros.

A legitimação da violência se faz a partir exatamente da reafirmação contundente de que não há, entre os mortos, inocentes. O sucesso se firmando e sendo usado como manchetes é parte dessa construção que reitera continuamente que a violência foi combatida, em um cenário de guerra em que os sujeitos que lá habitam carregam e contam os corpos, como parte desse processo que desumaniza, descaracteriza toda e qualquer existência em nossa sociedade que não seja a da violência e risco social.
O cenário de sucesso se implementa através de múltiplas estratégias, que se vinculam ao conjunto de ações de morte. A morte efetiva de pessoas, mortes simbólicas dos papéis sociais que pessoas da favela exercem, morte da ideia de que são pessoas que habitam ali – que passam a ser criminosos. A paz social só pode ser alcançada, assim, por múltiplas mortes implementadas em ações de “sucesso“. A necropolítica executada a partir do descarte idealizado e efetivo de sujeitos, com operações planejadas e sucessos alcançados. A falência social com justificativa e aval do estado.
E em que isso se aproxima da lei Anti-Oruam?
Parece que estas coisas estão passando em larga distância. Mas desde uma perspectiva de epistemicídio e necropolítica, não. Não estão… Vamos falar um pouco sobre a Lei Anti-Oruam e, depois retomar as relações.
Está acontecendo, desde o início do ano de maneira mais específica, um debate sobre o funk, rap e hip hop e seus supostos riscos e apologias ao crime. Tem sido implementado, no país, uma série de leis que vem sendo chamadas de Lei Anti-Oruam. Estas leis têm como princípio impedir prefeituras (ou poder público) de contratar artistas que façam apologia ao crime ou ao uso de drogas.
Embora a Lei Anti-Oruam tenha sido pauta no início de 2025, recentemente ela voltou a ser pauta e vem avançando em projetos legislativos municipais brasileiros. No dia 16 de Outubro, a Agência Pública abordou o tema na reportagem “Lei ‘Anti-Oruam’ já foi aprovada em pelo menos três cidades paulistas, aponta relatório“. Estas leis, mais do que impedir que crimes aconteçam ou sejam exaltados, criminalizam uma prática cultural tipicamente periférica e negra.

E já falamos de cultura aqui neste blog algumas vezes. Quando debates sociais classificam e segmentam práticas culturais – como a Lei Anti-Oruam se propõe – temos também o estabelecimento de uma noção do que é válido e importante como cultura em um país e sociedade.
Eu queria falar com vocês como movimentos conservadores, que temos visto bem nos dias atuais, têm como parte de suas estratégias exatamente a criminalização de campos educacionais e culturais, comparando algumas questões da Lei Anti-Oruam com as leis contra Ideologia de Gênero que vimos pipocar anos atrás. Mas antes…
Vamos falar um pouco sobre o que é cultura?
Quando vemos essa relação de segmentação cultural, valores sociais e criminalização de práticas culturais, como falei antes. A noção de cultura defendida, neste ponto de vista, é que existem práticas que são válidas e outras não deveriam ser aceitas para nosso país e sociedade.
Essas leis que tem aparecido por todo o país também tem como princípio coibir uma idealização de “quem comete um ato ilícito” somente pelo tipo de prática social que está acontecendo. Aqui temos um vínculo explícito da supressão de um tipo de expressão cultural que, novamente, relaciona-se fortemente à cultura periférica e negra. Esta narrativa reforça a ideia de que estas práticas são perigosas e trazem um risco social, pela normalização da violência contra valores sociais. Dentre elas, uma pauta recorrente, é de que este segmento cultural estimula a violência contra a família e a infância, promovendo o crime contra a sociedade como um todo.
A cultura, longe de ser “o melhor já produzido” em uma sociedade, é prática construída dentro da sociedade, faz parte de sua identidade múltipla e, também, se relaciona à história das comunidades de um país. De músicas ao cinema, do futebol ao carnaval, de escolas à universidade, da ciência aos saberes periféricos, quilombolas e indígenas, a cultura se faz como cotidiano prático. E, junto a isto, como disputa de espaços e narrativas, na busca de nos construírmos como quem somos atualmente.
Nossa história não se desvincula da produção cultural, nossos traços de colonialismo, escravidão, miséria e desigualdade social não está apartada de quem somos e de como vivemos, pensamos e construímos nosso país.
O epistemicídio se inclui dentro deste panorama.
É a partir de uma hierarquização do que pode ou não ser dito e da maneira como expressamos nossa vida, validando ou invalidando quem pode dizer, que o epistemicídio se coloca. Incluir gêneros musicais como criminosos é apontar que todo um conjunto de vivências sociais e produções que dizem respeito a populações específicas – como as comunidades periféricas e negras brasileiras – não devem existir e atuar ativamente para suprimi-las de nossa realidade.
Sueli Carneiro, mais uma vez, aponta a complexidade disto que é nomeado epistemicídio:
Para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, o epistemicídio implica um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo a de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e pelo rebaixamento da sua capacidade cognitiva; pela carência material e/ou pelo comprometimento da sua autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo.
O epistemicídio é a condição social que possibilita que as práticas sociais comuns a uma população, que produzem conhecimento, arte, esporte, trabalho, vida, se extingam. E isto não se delimita apenas às práticas sociais, mas aos próprios sujeitos que vivenciam estas práticas, haja vista que isto constitui suas identidades, linguagens, história, existência.
Isto é, o epistemicídio é uma reiterada ação de apagamento de tudo o que faz uma população – ou comunidades dentro de uma população – existir. Nossas identidades são formadas dentro de práticas culturais. Ao apagar isto, por meio da violência, de leis e normativas, de educação, da escrita da história e da produção do conhecimento legítimo, apagamos não apenas cultura, mas efetivamente pessoas.
Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento considerado legítimo ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado, sequestrando a própria capacidade de aprender. É uma forma de sequestro da razão em duplo sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que, em outros casos, lhe é imposta.
Sobre epistemicídios e massacres
Pode parecer distante estes dois eventos que estamos abordando neste texto. Vou retomar outro evento, tentando fundamentar mais esta relação. A tragédia de Paraisópolis, ocorrida em 1º de dezembro de 2019, que ocasionou a morte de 9 jovens da comunidade, em função de uma ação policial no Baile da 17.
Segundo consta, os policiais estavam em perseguição de suspeitos por roubo de motocicleta e os criminosos teriam usado as pessoas do baile como escudo humano. Por outro lado, esta tragédia que teve como decorrência o surgimento do projeto Os 9 que perdemos, também foi teve um debate social sobre a existência do baile em si e sua validade como cultura da comunidade. O relatório Pancadão: uma história de repressão aos bailes funk de rua na capital paulistana aponta, também, que a repressão aos bailes funks não é trivial ou casual.
No relatório consta, por exemplo, que a cobertura midiática sobre os pancadões não se vinculam às expressões culturais que ali acontecem. Pelo contrário, sobressaem as notícias dos “bailes como problemas públicos e produção de respostas estatais para o enfrentamento dos problemas”. Assim, as notícias aparecem em colunas de opinião e abordam regulamentação, cultura, ilegalismo e violência policial
Ainda sobre o relatório, consta a falta de dados sobre a violência nestes bailes – o que nos indica que a noção de que a violência existe e é parte deste cenário existe mais no imaginário social do que no levantamento robusto de dados em si. Tal como consta no Relatório:
Funk é música e é muito mais. E esse “muito mais” tem muita relação com tudo aquilo que
se cria e com toda a vida que se dinamiza nos bailes.
Assim, a discussão acerca do funk enquanto espaço de violência confronta diretamente a vivência plural da juventude periférica que a constrói, narra, produz. Se funk é mais do que música (e é), o que se suprime com a violência não é a música em si, é “tudo aquilo que se cria e com toda a vida que se dinamiza nos bailes” também.
Finalizando
Me parece difícil finalizar um texto em que foi permeado pela dor e sangue das ações estatais de nosso país.
Busquei traçar alguns paralelos acerca desta cultura de violência, que busca suprimir vidas, música, arte que pulsam nos espaços sociais das comunidades. A construção de sujeitos como criminosos por essência, ou seja, por nascerem, existirem e ocuparem espaços de comunidades, é discurso corrente. Mas mais do que apenas falas que vemos serem exaltadas, elas efetivamente se transformam em ações necropolíticas. Produzem mortes reais e legitimadas pelo gatilho que está na mão do estado.
Pessoas não são números, não são contribuintes, não são criminosos. São, antes de mais nada, sujeitos nascidos e criados em uma sociedade. Sociedade esta que estipula papéis sociais e, depois, atua em cima disto que estipulou, categorizando, promovendo vida, saúde, educação; concomitante a isto, promove também morte, doença, violência, apagamento.
É fundamental, que dentro de um cenário de horror, compreendamos que o modo como falamos de massacres legitima ou atenua estas ações. Não é banal, não deveria ser passível de aceitação social a morte de mais de 120 pessoas que são, só por existirem onde existem, serem nomeadas como descartáveis.
Um estado que mata pela cor e lugar, é um estado que busca a necropolítica e o epistemicídio como racionalidade de governo. E este deveria ser um debate central em nossas vidas e lutas contemporâneas.
Para Saber Mais
Agência Assembleia de Notícias (2025) Amauri Ribeiro enaltece ação policial e atuação do governador do Rio de Janeiro no combate ao crime organizado, Agência Assembleia de Notícias da Assembleia Legislativa de Goiás.
Azevedo, Desirée de Lemos et al (2024) Pancadão: uma história da repressão aos bailes funk de rua na capital paulista
Bond, Letycia (2025) Chacina de Paraisópolis: PM diz não ter visto moto em imagens gravadas, Agência Brasil
Campos, Ana Cristina (2025a) Operação no Rio deixa dezenas de mortos e 56 presos, Agência Brasil.
___ (2025b) Castro: operação foi “sucesso” e policiais mortos foram únicas vítimas, Agência Brasil
Carneiro, Sueli (2023) Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, Rio de Janeiro: Zahar.
Custódio, Rafael (2025) Lei “Anti-Oruam” já foi aprovada em pelo menos três cidades paulistas aponta o relatório, Agência Pública
Gabrielli, Ligia (2024) Relatório da Unifesp analisa repressão aos bailes funk e seus impactos na juventude negra e periférica, Departamento de comunicação institucional, Unifesp
Machado, Leandro (2019) O que é o ‘Baile da 17’, pancadão em Paraisópolis onde 9 jovens morreram pisoteados, BBC Brasil
Mbembe, Achille (2018) Necropolítica, São Paulo: n-1 edições.
Novaes, Dennis (2019) Paraisópolis: barbárie de Estado contra a juventude funkeira, CEE Fiocruz.
Peixoto, Guilherme e Alves, Raoni (2025) Castro e governadores aliados anunciam ‘consórcio da paz’ em reunião no RJ após megaoperação, G1 Rio de Janeiro
Perez, Fabíola (2025) ‘Maior chacina da história mostra falência do RJ’, diz especialista Notícias UOL
Os 9 que perdemos (2019) Massacre de Paraisópolis: Baile da Dz7, Paraisópolis, São Paulo, Brasil.
Rio de Janeiro (2025) Governo do Estado comanda maior operação de segurança em 15 anos e reforça combate ao narcoterrorismo
Soares, Maria Julia Petronilho Peixoto Soares (2025) Projeto de Lei “Anti-Oruam” e o cerceamento da cultura brasileira, Blog O Avesso
Souza, Pamela Nascimento de (2022) Criminalização do funk e racismo estrutural: a narratividade discursiva nos portais R7 e G1 sobre a tragédia de Paraisópolis, TCC Jornalismo, UFSM.
Tokarnia, Mariana (2025) Operação no Rio é a maior em 15 anos e a mais letal do estado, Agência Brasil.
Zibordi, Marcos (2024) Documento histórico, relatório mostra criminalização dos pancadões em SP, Terra, 2 de Dezembro de 2024.
Faça um comentário