CARTOGRAFIAS PARA A RESISTÊNCIA: UMA APOSTA A PARTIR DA EDUCAÇÃO POPULAR

CARTOGRAFIAS PARA A RESISTÊNCIA: UMA APOSTA A PARTIR DA EDUCAÇÃO POPULAR

Por  Talita Gantus de Oliveira e Luna Alves Pereira

Pesquisadora/es do GT Educação e Sociedade participaram, entre os dias 19 e 22 de outubro de 2022, do IV Congresso de Ecologia Política realizado no Equador. Lá, puderam acompanhar a roda de conversa Cartografías para la resistencia: una apuesta desde la educación popular – Cartografias para a resistência: uma aposta desde a educação popular (em tradução livre).

Como abordado pelos expositores durante a atividade, a cartografia social trata-se de um processo participativo que envolve a leitura do território e a reflexão sobre como o habitamos. É importante que compreendamos que a cartografia social carrega em si uma ideia mais ampla do que a cartografia pura e simples – aquela com seus traçados, pontos cardeais e escalas, utilizada desde os primórdios das geociências com o intuito de domínio, apropriação e defesa de territórios.

Durante o empreendimento colonial e o desenvolvimento de sua episteme, a cartografia foi usada pela ciência e pelo que se chama Estado-Nação como ferramenta para estabelecer o controle social do território e do povo que ali habitava. Isto, com vistas a impor o imperialismo europeu sobre os outros continentes, espoliando suas riquezas naturais, bens comuns, epistemologias e modos de produção do espaço.

Nesse processo de elaboração cartográfica dos territórios usurpados e apropriados, a delimitação do território e de suas fronteiras se dá, dentre outras coisas, a partir da nomeação de elementos da paisagem (como rios e montanhas) por meio de uma perspectiva antropocêntrica. Afinal, a colonialidade é antropocentrada.

Alfredo Berno de Almeida, em seu artigo “Mapas e museus: uma nova cartografia social”, afirma que há um monopólio de classificações territoriais produzidas historicamente pela sociedade colonial, mediante recenseamentos, cadastros, planejamento territorial, inventários, códigos e mapas. É possível notar esse domínio não apenas pelo Estado, mas pelo capital por meio de empresas privadas.

Observa-se a hegemonia desse controle – em uma sociedade em que o poder político está atrelado ao poder econômico – nos territórios atingidos pelos desastres-crimes da Samarco, BHP e Vale, ambos em Minas Gerais, em que o reassentamento da população que passa pelo processo de reparação se dá a partir de uma cartografia para a realocação que é tecnocrática, verticalizada e arquitetada por técnicos contratados pela empresa responsável pela tragédia.

Nesse sentido, a cartografia social surge como um caminho e uma alternativa para a formação de organizações sociais que trabalham em defesa de seus territórios frente à ameaça de processos extrativistas. Durante a roda de conversa, os/as expositores ressaltaram a importância de se conhecer o território pelo olhar da própria comunidade, tendo em vista que é uma prática comum entre as concessões mineiras o desenvolvimento de outros mapas, por elas produzidos, que são apresentados às comunidades – muitas vezes ocultando informações importantes, como a disponibilidade de recursos hídricos, por exemplo. O conhecimento e a formação sobre o território é, portanto, parte do processo de luta contra o avanço extrativista.

Roda de conversa: Cartografías para la resistencia: una apuesta desde la educación popular. Flacso/Equador, 2022. Foto dos autores.
Roda de conversa: Cartografías para la resistencia: una apuesta desde la educación popular. Flacso/Equador, 2022. Foto dos autores.
Roda de conversa: Cartografías para la resistencia: una apuesta desde la educación popular. Flacso/Equador, 2022. Foto dos autores.
Roda de conversa: Cartografías para la resistencia: una apuesta desde la educación popular. Flacso/Equador, 2022. Foto dos autores.

Posto isso, na cartografia social, é fundamental o destaque nos mapas das fontes hídricas, nascentes e cursos fluviais que serão afetados pelas concessões mineiras; bem como as áreas de preservação (e/ou que devem ser preservadas) da fauna, flora e biodiversidade – humana e não-humana. Importante, também, que a cartografia caminhe paralelamente a um levantamento antropológico das comunidades que vivem nos territórios atingidos ou ameaçados, e de sua diversidade cultural. Esses levantamentos enriquecem os produtos cartográficos no que diz respeito à conscientização das afetações não apenas materiais, mas também simbólicas. Trazer os sentidos sobre o território para a cartografia (o som do vento, a pureza do ar – ou, o oposto, a toxicidade do ar em territórios minerados) – é uma forma de agregar saberes e sentidos ao mapa, deslocando-o do seu lugar colonial que transforma a cartografia em uma epistemologia mercadológica: conhecer e cartografar para dominar.

Por fim, é possível pensar o mapa a partir da perspectiva de corpo-território. Segundo Haesbaert, em seu artigo “Do corpo-território ao território-corpo (da terra): contribuições decoloniais”, afirma que “uma das especificidades da leitura que podemos denominar latino-americana sobre o território está ligada ao fato de que ela parte da esfera do vivido, das práticas ou, como enfatizava Milton Santos, do “uso” do território – mas um uso que se estende bem além do simples valor de uso, compreendendo também um expressivo valor simbólico.”

O corpo é o primeiro habitante do território. Sendo assim, é parte do processo de descolonização epistemológica da cartografia pensar o nosso próprio corpo como um mapa. Se nosso corpo está bem e saudável – física, espiritual e psiquicamente – é um reflexo de que o território que habitamos também esteja bem. Pensar-agir de maneira integrada, não apenas disciplinarmente, no que diz respeito à produção do saber, mas de modo que corpo e mente estejam indissociados, é um dos desafios de superação da armadilha colonial antropocêntrica. Compreender que o rio contaminado nos atravessa, porque o rio corre em nosso corpo, porque consumimos o que a Terra nos dá, é uma das tarefas da cartografia social. Afinal, tudo está ecologicamente conectado, somos atravessados por essas impurezas.

Para concluir, a oficina trouxe importantes reflexões para o nosso GT Educação & Sociedade, que se propõe a pensar uma pedagogia socioambiental a ser trabalhada em territórios atingidos por rompimentos ou pela presença de barragens – empreendimento que se insere no bojo da cadeia de exploração mineral. Desse modo, a cartografia social se situa como uma ferramenta que faz parte do processo pedagógico de emancipação e autonomia popular frente ao avanço do capital sobre corpos, mentes e territórios.

Embora a cartografia social seja uma técnica de (re)existência nos territórios ameaçados por projetos extrativistas, a verificação e representação dos cenários empiricamente observáveis remete, sobretudo, “a relações de pesquisa e de confiança mútua entre os investigadores e os agentes sociais estudados”, como nos lembra Alfredo Berno de Almeida, em seu artigo citado anteriormente. Posto isso, há um novo desafio que se coloca ao nosso Grupo: pensar e atuar sobre um território – enquanto um objeto de pesquisa – a partir de uma posição que nos situa geograficamente distantes, o que torna complexa a criação de vínculos comunitários. Contudo, afinal, esse é um dos grandes desafios colocados às/aos pesquisadores que se propõem a um fazer científico e a uma práxis engajadas com a transformação social para um outro mundo possível.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *