Relatos de atuação como peritos comunitários: seria a Natureza um sujeito de direitos?

Relatos de atuação como peritos comunitários: seria a Natureza um sujeito de direitos?

Por Talita Gantus de Oliveira

A crescente preocupação com os direitos humanos e o seu reconhecimento pelos Estados no âmbito internacional impulsionaram a promulgação de diversos tratados protecionistas desses direitos, como afirma D’Avila entre outros autores, em pesquisa de 2014 [1]. Esses documentos são resultados de esforços conjuntos entre nações que, através de acordos multilaterais, definem sistemas de proteção ao direito humano, de caráter global ou regional. Dentre os acordos mencionados, está a Convenção Interamericana de Direitos Humanos [2], a qual prevê a proteção de comunidades atingidas por crimes ecológicos.

Dentre os direitos humanos reconhecidos na Convenção Interamericana, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado encontra-se positivado em diversos momentos. Embora esse conjunto de leis e normativas traga possibilidades de disputas a favor da população mais oprimida socialmente e mais afetada pelos desastres socioecológicos, é importante apontar seus limites. Limites esses que impõem restrições aos avanços populares, como a defesa da propriedade privada – que, muitas vezes, decide judicialmente a favor das empresas do capital extrativista. Além disso, as organizações que postulam esses tratados, em grande medida, são reprodutoras da colonialidade, pois reiteram a organização geopolítica de Estados-Nação. 

Cabe destacar, ainda, que o Direito é o aparelho ideológico do Estado [3]. Como o Estado organiza e reproduz os interesses da classe dominante, a forma e o conteúdo dos Estados modernos capitalistas – que têm o lucro como bússola – atende aos interesses da classe capitalista, dos donos do dinheiro. Não são os poderosos, são o poder, e atuam extraindo mais-valia, lucro, juros e renda em cima da exploração da natureza e espoliação da população. Ainda que, como nos aponta Audre Lorde [4], tenhamos em mente que as ferramentas do senhor não derrubam a casa grande, é preciso, taticamente, fazer uso dos instrumentos políticos e jurídicos que temos disponíveis para coibirmos o avanço do capital sobre nossos corpos-territórios. 

É isso que nos ensinou a roda de conversa intitulada: “Experiências de peritos comunitários em direitos da natureza nas cortes do Equador” (Experiencias de peritos comunitarios en derechos de la naturaleza en las cortes del Ecuador). Essa roda de conversa fez parte da programação do IV Congresso Latinoamericano de Ecologia Política, realizado em Quito, Equador, entre os dias 19 e 22 de outubro de 2022. A atividade em questão foi organizada pela Rede de Peritos Comunitários em Direitos da Natureza (Red de Peritos Comunitarios en Derechos de la Naturaleza). Os peritos comunitários funcionam como uma espécie de defensoria que parte da própria comunidade, a partir de seus representantes, como agentes desse diálogo com a justiça, fazendo valer os direitos da natureza preconizados pela Constituição Equatoriana e gerando autonomia da comunidade nesse processo.

Roda de Conversa: Experiencias de peritos comunitarios en derechos de la naturaleza en las cortes del Ecuador. IV Congresso Latinoamericano de Ecologia Política, Quito, Equador, 19/10/2022.
Roda de Conversa: Experiencias de peritos comunitarios en derechos de la naturaleza en las cortes del Ecuador. IV Congresso Latinoamericano de Ecologia Política, Quito, Equador, 19/10/2022.

Direitos da Natureza, conceito trabalhado por Gudynas em livro homônimo [5], trata-se de um princípio que parte do reconhecimento da Natureza como um sujeito de direitos, deslocando a concepção antropocêntrica que ordena nossa estrutura social e suas representações ideológicas e materiais. Cria-se, a partir daí, uma “ética biocêntrica” que alimenta reformulações em todo o espectro coberto pelas políticas ambientais, desfocando de um olhar que toma o ser humano como principal e único afetado, para um olhar ampliado para todo o ecossistema. Essa ética dá ênfase ao fato de que o poder de agência social sobre o ecossistema natural demonstra claramente que é a sociedade e seu modo de se reproduzir que produz os impactos socioecológicos. Ou seja, o antropoceno [6] traz à tona que cabe ao pacto social responsabilizar a quem couber pela destruição ecológica em curso nos distintos territórios.

Nesse sentido, entende-se que a Natureza, destruída pelos seres humanos, precisa ser protegida pelos próprios seres humanos e deles mesmos – e de determinados modos de se existir em sociedade. Por isso, para que as condições de reprodução da vida, que requerem um ambiente ecologicamente equilibrado, sejam minimamente mantidas, a ética biocêntrica se torna fundamental de ser incorporada ao pacto social e seu sistema jurídico.

Isto posto, algumas constituições federais de países latino-americanos têm incorporado essa perspectiva a partir de discussões em Assembleias Constituintes que se iniciam na base, por meio de processos participativos nos territórios atingidos pelo impacto socioecológico em curso. A Constituição do Equador é um desses exemplos. No entanto, experiências relatadas nessa roda de conversa de peritos nos lembra que não é simples fazer valer a letra da lei. Similar ao que acontece no Brasil e em diversas partes do mundo, a prática jurídica nem sempre funciona da maneira como preconiza a legislação. É inerente ao sistema judiciário, como dito anteriormente, reproduzir as opressões que sustentam as estruturas. Como em diversos campos, não apenas no ambiental, nem sempre a justiça é justa, posto que não é neutra.

Para nos apropriarmos desses instrumentos, é preciso conhecê-lo. Pensando nisso, para que seja funcional e para que haja a participação comunitária nesse processo de formação de massa, a justiça constitucional não pode ter uma linguagem restrita e academicista. Torna-se, então, fundamental a expertise acadêmica aliada à formação de peritos comunitários de defesa da Natureza.

Dentre os relatos narrados durante a roda de conversa, há um sobre uma ação de medidas cautelares na tentativa de impedir o avanço da fronteira agropecuária. Nesse local, não havia sido realizada a consulta prévia, livre e informada à qual a comunidade tem direito – como preconiza a Constituição – para a instalação do empreendimento extrativista agropecuário que colocaria em risco a soberania campesina de comunidades indígenas.

Comunidades pescadoras e marisqueiras da região de Esmeraldas, no Equador, denunciaram o avanço de megaempreendimentos de empresas mineiras, com interesses puramente econômicos, sob os manguezais. Esta é uma ação inconstitucional porque diz respeito ao impacto em um ecossistema endêmico, intangível e não recuperável. Além disso, a instalação desse empreendimento poderia provocar a insegurança hídrica da comunidade (lembrando que segurança hídrica se trata de provimento de água para consumo humano em quantidade e em qualidade), visto que haveria contaminação de rejeitos minerais nos aquíferos.

Outro caso exposto denuncia o avanço do agronegócio de monocultivo sobre territórios, devastando a fauna e flora endêmicas. Também há uma ação de inconstitucionalidade nesse caso, visto que o empreendimento agroindustrial avança ferindo direitos humanos. Há um impacto muito grave dos monocultivos na cultura local e na natureza. O monocultivo impossibilita a eco-biodiversidade e a diversidade cultural.

Outra perita relatou o avanço de uma empresa de mineração sobre um patrimônio arqueológico próximo à cidade de Quito. O empreendimento levaria à devastação de bosques que abrigavam nascentes de água. A concessão de licença afetava as comunidades de agricultores de produtos orgânicos certificados da região. Segundo ela, as mulheres estavam na frente da luta e nos centros de resistência.

Essa troca de experiências promovida pela roda de conversa foi muito rica. Os relatos vêm de diversas regiões, com conflitos ambientais diversos. Embora haja peculiaridades, desafios e práticas de (re)existência que têm caráter territorial, há também um pano de fundo estrutural que os atravessa, conectando-os. Há de comum nos relatos desafios relacionados à dificuldade em explicar a própria cosmovisão, como por exemplo, que um rio ou uma árvore possuem vida, nome e sentimentos. Outra dificuldade é conseguir, em termos jurídicos, dar voz a quem não tem voz – como a natureza e seus elementos não-humanos – e correlacionar o pensamento técnico, teórico e prático.

Apenas as pessoas que vivem nos territórios atingidos conseguem elencar o que é metafísico e o que não é, e o que é digno de resguardo e proteção, como as tradições e práticas culturais que atravessam o meio físico, como o cultivo de plantas medicinais pelas comunidades indígenas ameaçadas pelo avanço da indústria extrativista, ou de ervas para rituais espirituais. Ou como a presença de uma montanha e de como ela define, de maneira transgeracional, a subjetividade da comunidade que cresce e vive naquela paisagem.

Não se deve esperar dos peritos da Natureza imparcialidade e neutralidade, mas veracidade. Até porque, são pessoas diretamente afetadas pelo avanço do capital sobre a Natureza em seus territórios. Em se tratando das parcerias que podem ser feitas entre a academia e a rede de peritos comunitários, os representantes relataram que é possível estabelecer um compromisso ético da ciência com a justiça social, com a universidade auxiliando a comunidade no que for possível e no que se fizer necessário, tendo a própria comunidade como guia dessa construção. Assim como o direito, a própria ciência não é neutra, pois é mediada por quem empreende a investigação – muitas vezes, financiada pela iniciativa privada. É uma produção de informação que, embora científica, é imparcial. Há de ressaltar que há uma produção de ciência cidadã que atua em prol da veracidade, mas que também não se orienta pela imparcialidade, porque busca uma justiça social e ambiental para toda a população oprimida por esse sistema que destrói a Terra.

A legislação brasileira, embora não reconheça a natureza como sujeito de direitos, abre possibilidades para esse debate. A Lei Mar de Lama Nunca Mais é um exemplo que abre brechas para lutarmos judicialmente para proteger a natureza e seus povos. Um projeto de Lei de Iniciativa Popular que contou a assinatura de 56 mil cidadãos, a Lei Estadual 23.291/2019 institui a Política Estadual de Segurança de Barragens (PESB), que proíbe barragens a montante e estabelece o limite de três anos para que elas não existiam mais. A partir da ampliação e aprofundamento dessas discussões sobre a justiça ambiental e a ética biocêntrica, torna-se possível, quem sabe, responsabilizar criminalmente autores de crimes ecológicos. Todo ecocídio é também um etnogenocídio.

 [1] D’AVILA, Caroline Dimure Bender et al. A proteção reflexa do meio ambiente na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista IIDH, San José, v. 60, p. 11-38, 2014.

[2] Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm

[3] ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

[4] LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica Editora, p. 137, 2019.

[5] GUDYNAS, Eduardo. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. Editora Elefante, 2020.

[6] GUDYNAS, Eduardo. Direitos da natureza: ética biocêntrica e políticas ambientais. Editora Elefante, 2020.

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