UM GIRO ECOTERRITORIAL PELAS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA: UM RELATO
Por Leonardo de Souza da Silva, Luna Alves Pereira e Talita Gantus de Oliveira
A oficina “Um giro ecoterritorial pelas veias abertas da América Latina” foi o ponto central que movimentou parte dos integrantes do CRIAB ao IV Congresso de Ecología Política y Pensamiento Crítico Latino-americano, sediado em Quito – Equador. A oficina visava a construção de debates e questionamentos acerca do ideal hegemônico sobre o neoextrativismo e a percepção de desenvolvimento socioeconômico a ele associada.
Tendo em vista o desastre-crime decorrente do rompimento das barragens de Brumadinho e Mariana – MG, tema com o qual o grupo vem trabalhando desde sua origem, em 2019, e sabendo que a problemática neo-extrativista atravessa os territórios latino-americanos desde sua gênese colonial, estabeleceu-se a construção visual da paisagem do rompimento das barragens, como um elemento disparador das discussões construídas na oficina. Associados a isso, foram feitos alguns questionamentos que serviram como provocações para a construção dos diálogos.
No primeiro momento, os participantes tentaram identificar nas fotos entregues como parte da dinâmica a que localidade se associava aquelas paisagens que retratam a destruição, e também qual o tipo de atividade extrativista havia sido praticada ali. Em comum acordo, todos associaram as paisagens retratadas nas fotografias à mineração a “céu aberto”. Entretanto, nem todos notaram que todas as imagens tratavam-se de um território brasileiro. E, os que o fizeram, acreditaram que se tratava de territórios amazônicos, por desconhecerem que grande parte da mineração no Brasil acontece no bioma Mata Atlântica.
Como foi levantado nos diálogos, a descaracterização da paisagem acontece porque a atividade de mineração não somente extrai os recursos naturais dessas localidades — removendo montanhas, poluindo rios, desmatando florestas e expulsando formas de vida humanas e não-humanas —, como também extrai parte da identidade daquele território, dissociando nossa capacidade de reconhecimento do lugar.
Na sequência, formaram-se grupos para o desenvolvimento de diálogos e a construção de pensamentos coletivos acerca de dois questionamentos principais. No primeiro, buscava-se propor modos de se fazer um furo no imaginário social hegemônico quando o extrativismo mineral é visto como sinônimo de desenvolvimento ou progresso. No segundo, propunha-se pensar em práticas coletivas para desestabilizar aquilo que já está cristalizado, a fim de buscar a construção de ideais como os bens comuns, a justiça ambiental, o bem viver e os direitos da Natureza.
Durante a dinâmica, enquanto se observavam as fotos do desastre-crime da Samarco/Vale/BHP nos territórios de Bento Rodrigues, MG, a fala “Esto no es minería a cielo abierto, esto es un infierno abierto”, pronunciada pelo indígena Domingos, nos permitiu uma nova reflexão sobre o discurso do progresso e os significantes a ele atrelados a depender de quem o enuncia. Na sequência, as respostas apresentadas aos questionamentos apontavam a educação como uma ferramenta estratégica para a desconstrução dos ideais capitalistas-coloniais que bradam o progresso, o desenvolvimentismo e o lucro acima da vida. Paradoxalmente, quando olhamos para o cenário do rompimento de barragem retratado nas fotografias, observa-se a Escola Municipal Bento Rodrigues — lugar que representa um desses espaços educacionais que seriam lanternas que apontam para a superação desse modo de produção extrativista — destruída pelo mar de lama resultado do rompimento.
Ao analisar as propostas levantadas pelos grupos, percebeu-se um ponto central do qual todos partiam e que se situava para além do pensamento acadêmico, opondo-se radicalmente ao pensamento eurocêntrico do qual boa parte da academia se fundamenta. Assim, notou-se que as propostas buscavam o resgate de conhecimentos ancestrais no intuito de possibilitar a autonomia dos territórios atingidos. Dentre elas, uma que se destacou foi a do turismo comunitário, por meio do qual seria possível a criação de um intercâmbio sociocultural e educacional aliado à preservação do planeta, servindo como uma forma de desconstrução do imaginário social de que a mineração representa o progresso de um país e seus povos.
Desenvolvendo o ecoturismo e/ou o geoturismo — o turismo de preservação da natureza —, por meio das estratégias de base comunitária, como alternativa à atividade minerária, a atividade turística pode ser vista não somente como dinamizadora da economia local, mas como elemento estruturante de uma ordem cultural e ambientalmente responsável, abrindo caminho para as reflexões sobre a sustentabilidade socioecológica e sobre as simbologias culturais. Assim, os preceitos de conservação e preservação ambiental passam também pela gestão dos projetos que contemplam o desenvolvimento das comunidades. O turismo de base comunitária aparece, portanto, como atividade complementar de geração de renda e de educação socioambiental e cultural, ao mesmo tempo. Com isso, o turismo se relaciona com o lugar e com as práticas culturais desenvolvidas naquele território. Essa relação amplia sua escala de influência na medida em que, para se realizar, envolve elementos de ordens política, social, cultural, econômica e ambiental no espaço em que se instala.
Para as/os estudantes que puderam participar do congresso, dentro dos diversos aprendizados obtidos, o que mais se destaca foi como a influência da cosmovisão indígena pairando em boa parte do território latino age como um dos maiores eixos de resistência ao extrativismo e à lógica capitalista, e como essa pode ser uma das melhores soluções frente à problemática atual.
Nesta cosmovisão, não se distingue homem e natureza, o que se contrapõe à lógica dominante e cada vez mais homogênea no mundo, a qual não apenas diminui a autonomia humana ao longo da construção do que se concebe como progresso, como também distancia o ser humano cada vez mais da natureza, do solo e até mesmo de seu próprio alimento e de suas raízes ancestrais. Desse modo, nos tornamos reféns do sistema capitalista, em que o acesso a todo e qualquer produto seria detido/controlado por indústrias ou corporações, até mesmo quando esse produto é aquele que nos mantém vivos.
A partir dessas discussões, percebe-se, também, que a lógica do capitalismo verde é apenas paliativa, não solucionando o problema estrutural que envolve a produção e extração mineral para a acumulação de capital. E o que concebemos como ecologia é insuficiente para promovermos verdadeiros veículos de mudanças, pois, mesmo que retomem a seus modos de vidas de culturas mais tradicionais, tratam-se, na verdade, de produtos deturpados pela apropriação cultural. Desse modo, parte da solução vem sob a lógica de um resgate ancestral centrado e pautado pela autonomia indígena, em que o extrativismo mineral e diversas outras vertentes capitalistas encontrariam dificuldades para se estabelecer, pois atingiria ou violaria diretamente as pessoas, e não um outro, como a natureza ou apenas um território.
As reflexões finais sobre a oficina e o congresso de Ecologia Política, em síntese, apontam que não existe apenas uma resposta para essa inversão da ideologia colonial dominante, o que ocorre é que cada localidade terá particularmente uma série de implementações necessárias para a desconstrução dessa hegemonia. Nesse sentido, entende-se que as iniciativas que envolvem pedagogias ambientais precisam abarcar visões comunitárias e populares de sustentabilidade, e até mesmo cosmovisões locais de povos tradicionais, pois é apenas a partir dessa centralidade que avanços reais poderiam ser alcançados.
Um ponto de partida para essa pedagogia ecológica ou intercâmbio cultural foi o vestibular indígena que se iniciou em 2018 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entretanto, somente a inserção de outros povos em meio à lógica acadêmica é insuficiente para dar voz a eles e permitirem que pautem e renovem conceitos cristalizados em nossa sociedade. Assim, não somente o vestibular indígena seria um caminho, mas a extensão cultural de cada povo também deveria ser alimentada, por exemplo, utilizar do Centro de Línguas (CEL) para promover a riqueza linguística de cada etnia presente no campus. Aliados a estas propostas e dinâmicas, também deveriam ser promovidas rodas de ensino de saberes locais com professores, alunos e até mesmo comunidade em geral no entorno da Unicamp.
Para a área das Ciências da Terra, cita-se o exemplo da Colômbia, uma das regiões mais ricas em minerais metálicos da América Latina, onde são extraídos 50 toneladas de ouro por ano, segundo o artigo intitulado “Green Gold-Dirty Gold”, publicado pelos autores William E. Brooks, Julio Andrés Sierra-Giraldo e Franciso Mena Palacios. Para essa extração, cerca de 100 toneladas de mercúrio vão parar nos rios e no solo, contaminando trabalhadores garimpeiros, a fauna e a flora regionais, meios pelos quais também atingem a comunidade ao redor por meio da bioacumulação de contaminantes. Para solucionar essa problemática da contaminação, comunidades de povos afrodescendentes colombianos fazem uso de epistemologias e tecnologias sociais ancestrais para realizarem a extração do ouro de maneira ambientalmente equilibrada. Esta extração é feita utilizando-se uma planta (balsa ou Croma pyramidale) que substitui o uso de mercúrio em regiões de garimpo, servindo como o mesmo princípio de amalgamação do ouro. Ainda no contexto de saberes locais e sob a ótica extrativista de territórios latino-americanos, na Colômbia, como citado acima, entende-se que essa construção de saberes multiculturais ou uma melhor conciliação de saberes locais com saberes científicos trata-se de um solo extremamente fecundo para o desenvolvimento de soluções e alternativas necessárias para solucionar problemas e possibilitar desconstruções necessárias que precisam ser feitas atualmente.
Para a área da pedagogia, esse intercâmbio cultural possibilitaria a construção de novos paralelos para metodologias de ensino, em que a relação física e biótica poderia ser melhor construída, até mesmo permeando campos espirituais. Percebe-se que nos primeiros anos de escola a criança é muito mais aberta ao novo e disposta a aprender gestos de cuidado com o outro — seja esse outro humano ou não-humano. Todavia, ao longo do tempo, parte dessa relação se perde. Nesse sentido, um dos questionamentos que se fica é como fortalecer esse vínculo e mantê-lo ao longo de todo o ensino.