Depois de alguns textos abordando assuntos variados como experimentação animal, e-mails falsos atacando a Monsanto, “assombrações” neurológicas, revistas científicas, como conseguir mais sexo, gripe suína e até ZUMBIS, resolvi começar a semana voltando à minha área de trabalho e falar um pouco sobre Biologia Molecular.
A “complexidade irredutível”, um dos argumentos preferidos dos criacionistas para explicar “a vida como ela é” acaba de ter outro de seus exemplos desmantelado por um artigo publicado no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Foi muito legal também ver que o autor principal desse estudo é Trevor Lithgow, que tive o prazer de conhecer numa conferência da Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (a famosa e inflada SBBq) de 2007.
Antes de mais nada, o que é Complexidade Irredutível?
Componentes celulares intrincados são comumente citados como evidências do design inteligente. Os proponentes dessa idéia dizem que esses componentes complexos não podem poderiam ser fruto do processo evolutivo, por não poderem ser separados em partes menores e funcionais. O fato de serem complexos de modo irredutível é a base para se propor que eles tenham sido “desenhados” intencionalmente por uma entidade inteligente. Então tá, e eu sou o Batman.
O artigo da PNAS compara as mitocôndrias e suas parentes bacterianas, demonstrando que as partes necessárias para um maquinário celular particular já estavam presentes antes de qualquer mitocôndria existir. Foi simplesmente uma questão de tempo até que essas partes se combinassem de modo mais complexa.
Mitocôndrias são organelas celulares descendentes de bactérias que milhões de anos atrás foram “incorporadas” por células mais complexas. Isso foi proposto por Lynn Margulis, criadora da Teoria da Endossimbiose. Em pouco tempo essas bactérias incorporadas se tornaram personagens centrais para as funções celulares.
Só existe um porém: essas pré-mitocôndrias não poderiam ter sobrevivido em seu novo “lar” sem um maquinário protéico chamado TIM23 (um complexo enzimático da membrana interna da mitocôndria que pode ser visualizado em amarelo, na imagem ao lado) que realiza o transporte de proteínas para dentro das mitocôndrias. As bactérias ancestrais não possuem o complexo TIM23, o que sugere que tenham sido desenvolvidas já nas mitocôndrias, tempos depois.
Isso traz à tona uma pergunta do tipo “Quem veio primeiro, ovo ou galinha?”: como poderia o transporte de proteínas ter evoluído quando as proteínas eram necessárias para a sobrevivência, no primeiro caso?!
De acordo com a teoria evolucionista, no entanto, a complexidade celular É SIM redutível. É necessário somente que os componentes existentes sejam recondicionados, com mutações inevitáveis promovendo ingredientes extras à medida em que são necessários. Os flagelos, propulsores similares a cabelos usados por bactérias para locomoção, são outro exemplo. Seus componentes são encontrados por toda a célula realizando outras tarefas.
O design inteligente já utilizou flagelos como evidência de sua teoria, assumindo que o mesmo seria uma estrutura irredutível, o que foi posto por terra de acordo com fatos científicos, como pode ser lido nesse artigo da revista New Scientist. Esse estudo utilizando mitocôndrias faz o mesmo em relação ao transporte de proteínas.
“Essa análise de transporte de proteínas nos fornece uma marca para a evolução de maquinários celulares em geral,” escreve a equipe liderada por Trevor Lithgow. “A complexidade dessas máquinas não é irredutível.”
Quando analisaram os genomas de proteobactérias, a família que deu origem aos ancestrais das mitocôndrias, a equipe de Lithgow encontrou duas das partes protéicas utilizadas pelas mitocôndrias para fazer o complexo TIM23.
As partes estão na membrana celular bacteriana, localizadas de modo ideal para o eventual papel de transporte protéico feito pelo complexo TIM23. Apenas outra parte, uma molécula chamada LivH, poderia fazer um maquinário de transporte protéico rudimentar – e (surpresa!) essa molécula é comumente encontrada em proteobactérias.
O processo pelo qual partes são acumuladas até que estejam preparas para se juntarem num complexo é chamado pré-adaptação. É uma forma de “evolução neutra”, na qual a construção das partes não fornece nenhuma vantagem ou desvantagem imediata. A evolução neutra encontra-se fora das descrições de Darwin. Mas quando as partes são juntas, mutações e a seleção natural podem se encarregar do restante do processo, resultando, em último caso, no agora complexo TIM23.
“Não era possível, até hoje, traçar qualquer uma dessas proteínas até seu ancestral bacteriano,” diz o biologista celular Michael Gray, um dos pesquisadores que originalmente descreveu as origens das mitocôndrias. “Essas três proteínas não possuíam exatamente a mesma função nas proteobactérias, mas com uma simples mutação puderam se transformar numa máquina de transporte de proteínas simples, que pode dar início a tudo.”
“Você olha para maquinários celulares e diz, porque a Biologia faria algo assim?! É muito bizarro,” ele diz. “Mas quando você pensa sobre o assunto à luz dos processos de evolução neutra, em que essas máquinas emergem antes que sejam necessárias, elas fazem sentido.”
É, minha gente, tem coisa mais bonita que a Biologia?
Texto adaptado de “More ‘Evidence’ of Intelligent Design Shot Down by Science”, escrito por Brandon Klein e publicado na Wired Science.
Imagens: Journal of Cell Science, Blog The atheist, polyamorous, geek
Clements, A., Bursac, D., Gatsos, X., Perry, A., Civciristov, S., Celik, N., Likic, V., Poggio, S., Jacobs-Wagner, C., Strugnell, R., & Lithgow, T. (2009). The reducible complexity of a mitochondrial molecular machine Proceedings of the National Academy of Sciences DOI: 10.1073/pnas.0908264106