
Por: Murilo Marinho Junior [1]
1. Introdução
Compreender o processo de proletarização em regiões periféricas é essencial para aprofundar a análise das dinâmicas histórico-mundiais capitalistas e dos mecanismos de incorporação dessas áreas ao sistema-mundo moderno. Embora Marx tenha descrito esse processo para o contexto europeu, dinâmicas similares não podem ser interpretadas da mesma forma em distintas regiões do mundo. Relações específicas, como o processo de racialização do trabalho, produziram resultados variados. O presente artigo busca evidenciar essas diferenças e semelhanças no processo de proletarização nas zonas periféricas, com foco no Brasil e na África do Sul. Pretende-se demonstrar como as interações com o centro dinâmico moldaram a formação de mercados de trabalho assalariados sem romper com os privilégios baseados na raça. Para tanto, analisa-se o fim das relações de escravidão em ambos os países e suas implicações na configuração econômica dessas regiões.
2. Proletarização Sul-Africana
Quando olhamos para a história da África do Sul, especialmente durante os primeiros momentos da colonização europeia nos séculos XVIII e XIX, não se pode ignorar como os interesses do capital estrangeiro moldaram profundamente a região. Inicialmente vista apenas como um ponto estratégico para reabastecimento de navios da Companhia Holandesa das Índias Orientais, a região acabou se tornando palco de um processo mais amplo de colonização. Esse movimento não surgiu por acaso, pois atendeu diretamente às necessidades da expansão da economia-mundo capitalista. Para consolidar o domínio e estruturar a colônia, os administradores holandeses passaram a importar mão de obra escravizada, essencial para o desenvolvimento de infraestrutura e para o início da produção agrícola em escala comercial noutras áreas. O crescimento urbano e a formação dos primeiros centros coloniais estiveram, portanto, diretamente ligados à exploração do trabalho forçado (Pereira, 2012).
Com o avanço dos colonos rumo ao interior do território sul-africano, iniciava-se uma nova fase da colonização: agora, o objetivo era integrar os povos nativos às estruturas necessárias para garantir a acumulação de capital. No começo, isso acontecia de forma aparentemente pacífica, por meio da troca de gado e produtos da caça. No entanto, como aponta Legassick (1977), esse tipo de comércio já era suficiente para desestabilizar as formas tradicionais de produção das populações locais. Mas o processo não parou por aí. Com o tempo, as relações comerciais deram lugar a práticas muito mais agressivas. Assim, coerção, invasões e apropriação de terras passaram a fazer parte da rotina colonial, tudo com o objetivo de garantir a subsistência dos colonos e expandir seu controle. Ao mesmo tempo, as terras dos nativos começaram a ser incorporadas dentro da lógica da propriedade privada — um conceito estranho e imposto às sociedades africanas, cujas formas de ocupação e uso da terra eram bem diferentes. O que se viu, então, foi o avanço de uma estrutura colonial que, aos poucos, minava as bases da vida comunitária dos povos originários, ao mesmo tempo em que fortalecia os interesses econômicos europeus.
Entre 1792 e 1834, a África do Sul passou por uma verdadeira reconfiguração do seu “metabolismo social”. Nesse período, o domínio inglês sobre a região se consolida, marcando o fim da hegemonia holandesa e dando início a um novo ciclo de mudanças guiado pelos ideais do liberalismo britânico e pelos interesses do imperialismo de livre-comércio. Já marcada por uma estrutura social profundamente racializada, a sociedade sul-africana entra em ebulição. A chegada dos britânicos não significou uma ruptura com a lógica da dominação, mas sim a sua modernização. Com o avanço do liberalismo, novas estruturas políticas e econômicas foram implantadas para garantir a manutenção da superioridade dos colonizadores sobre os povos nativos e mestiços. Isso se traduziu em políticas de restrição de acesso à terra e, principalmente, na transformação dessa população em força de trabalho subordinada. Esse processo se intensificou após a abolição formal da escravidão em 1838, quando nativos e imigrantes passaram a compor um exército de trabalhadores livres apenas no nome — explorados de formas diferentes, mas com a mesma finalidade: alimentar a engrenagem do capital. A descoberta de minas de diamantes e ouro nas décadas seguintes apenas acelerou esse processo, colocando a África do Sul em um novo patamar econômico, mas às custas de uma desigualdade brutal que deixaria marcas profundas em sua história.
A descoberta das minas de ouro e diamante na África do Sul não trouxe apenas uma explosão econômica — ela provocou também uma transformação estrutural na organização social e racial do país. Com uma nova economia tomando forma, a tradicional hierarquia racial precisou se adaptar. Um exemplo claro disso foi o surgimento de uma classe de brancos empobrecidos, que, sem acesso à terra — já escassa e concentrada — passaram a integrar o mercado de trabalho como assalariados. Era o início da proletarização de parte da população branca. Mas o cenário era bem mais complexo para os povos nativos. Ao contrário do que poderia parecer, a transição para o trabalho assalariado entre os africanos não aconteceu de forma livre ou natural. A mineração, por suas características específicas de lucratividade, exigia uma força de trabalho abundante, barata e sazonal. Para isso, uma série de dispositivos jurídicos e institucionais foi criada, com o objetivo de garantir que o excedente continuasse sendo extraído de forma eficiente, mesmo após o fim formal da escravidão. Nesse contexto, os trabalhadores nativos passaram a ser usados como mão de obra sazonal: contratados em tempos de alta, dispensados em tempos de crise. Quando não estavam nas minas, eram forçados a retornar às suas terras — muitas vezes insuficientes ou degradadas — para sobreviver da agricultura de subsistência. Esse modelo permitia que os empregadores pagassem salários baixíssimos, já que o custo da reprodução da força de trabalho era empurrado para as comunidades nativas. Enquanto isso, os salários dos trabalhadores brancos eram artificialmente elevados, sustentados por políticas de transferência do excedente extraído dos trabalhadores racializados. Diante disso, cabe até questionar se a classe média branca sul-africana da época poderia realmente ser chamada de proletária. Afinal, seus altos salários não vinham de sua produtividade, mas sim de um sistema profundamente desigual, que concentrava privilégios por meio da exploração de outros. Esse modelo alcança sua forma mais brutal com a formalização do Apartheid — o regime de desenvolvimento separado que institucionalizou a segregação racial como política de Estado.
3. Proletarização Brasileira
A chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, inicialmente não representou uma mudança imediata nas prioridades comerciais de Portugal, que mantinha seu foco nas rotas lucrativas do Oriente. No entanto, a lógica imperial exigia mais do que apenas o direito simbólico sobre as terras divididas pelo Tratado de Tordesilhas — era preciso ocupar efetivamente o território para garantir sua posse. Assim, a exploração dos recursos naturais do Brasil começou a se consolidar como forma de manter e financiar a presença portuguesa na região, integrando o novo território à lógica de um império ultramarino. Com o passar do tempo, o Brasil ganhou importância dentro da estrutura colonial portuguesa, especialmente à medida que atividades econômicas como a produção de açúcar passaram a demandar grande quantidade de mão de obra. Nesse contexto, a colonização se consolidou com a utilização sistemática de pessoas escravizadas vindas da África. A exploração do território brasileiro, portanto, não pode ser dissociada do projeto imperial português nem do sistema escravista, que foi essencial para sustentar economicamente a ocupação e a extração de riquezas, garantindo os lucros da metrópole e mantendo a estrutura colonial baseada na desigualdade e na violência.
Diferente do que ocorreu na Inglaterra com os enclosures, a consolidação da propriedade privada no Brasil colonial não surgiu por meio de interesses privados, mas a partir das diretrizes da Coroa portuguesa. A distribuição de terras era feita pelo sistema de sesmarias, adotado oficialmente em 1375 em Portugal e trazido para o Brasil com o objetivo de evitar a ociosidade da terra — ainda que, na prática, elas continuassem concentradas nas mãos de poucos. A exigência de recursos para manter essas terras produtivas, imposta desde o governo de Tomé de Souza, acabou excluindo grande parte da população pobre, que via na ocupação informal a única forma de acesso à terra. Com a independência do Brasil, o sistema de sesmarias acabou sendo suspenso em 1822. Mesmo com o reconhecimento formal do direito à propriedade na Constituição de 1824, o acesso à terra seguiu se dando majoritariamente pela posse, sem regulamentação clara. Foi apenas em 1850, com a promulgação da Lei de Terras, que o Brasil estabeleceu que o acesso à terra só poderia ocorrer por meio da compra, criminalizando ocupações. Essa mudança marcou uma virada profunda ao restringir ainda mais o acesso dos mais pobres à terra e legalizou a concentração fundiária, moldando a estrutura agrária desigual que ainda persiste no país (Ghidorsi, Cruz, 2023 ; Silva, 1996).
A transição do Brasil de uma economia baseada no trabalho escravo para uma estruturada no trabalho assalariado foi tudo, menos rápida ou simples, e esteve delimitado pelas condições de acesso à terra. Esse processo aconteceu impulsionado muito mais por pressões externas do que por iniciativa interna. Um dos marcos mais importantes foi a atuação da Inglaterra, que, já em 1822, começava a pressionar pelo fim do tráfico negreiro. Essa pressão culminou, em 1845, na aprovação do Tratado de Aberdeen, que autorizava a marinha britânica a interceptar e fiscalizar navios suspeitos de transportar pessoas escravizadas — uma clara demonstração de que o tráfico transatlântico já não era tolerado no cenário internacional.
Mesmo com leis e tratados sendo aprovados ao longo das décadas, a escravidão só foi oficialmente abolida em 1888. Mas o fim formal da escravidão não significou, na prática, o fim da exploração. A transição para o trabalho assalariado ocorreu em um país ainda profundamente marcado pela concentração de terra e poder. Muitos dos antigos senhores de escravos se tornaram patrões de trabalhadores livres, mas as condições de vida e trabalho para essa nova classe continuavam sendo extremamente precárias. A nova ordem mantinha, sob outra forma, a lógica de desigualdade e dominação que estruturou o Brasil durante séculos.
O processo gradual de extinção do trabalho compulsório não foi suficiente para tornar as fazendas espaços atrativos aos trabalhadores livres ou recém-libertos, dadas as precárias condições laborais ali vigentes. Aliado a isso, as possibilidades de encontrar força de trabalho no Brasil, suficiente para a realização e manutenção da taxa de lucratividade, eram remotas. Onde não imperava o trabalho escravo, os trabalhadores livres estavam inseridos na dinâmica das plantações, por meio do trabalho de subsistência. Dessa forma — mesmo que juridicamente livres — esses trabalhadores não constituíam propriamente um mercado de trabalho capitalista. A imigração de trabalhadores europeus foi uma tentativa de encontrar força de trabalho necessária à rápida expansão das plantações. A imigração se baseava no sistema de parcerias, onde os trabalhadores imigrantes eram pagos pela colheita, que era comprada pelo próprio fazendeiro. Entretanto, mesmo com essas condições, não foi possível provocar uma imigração massiva. Foram necessários mais de 10 anos para que os fazendeiros de café abandonassem os métodos pré-capitalistas e oferecer aos trabalhadores condições de trabalho baseadas em contratos salariais. A abolição progressiva, ao mesmo tempo em que evitava a perda de valor da massa de escravos de um dia para o outro, retardava a introdução a transformação dos trabalhadores livres e ex-escravizados em trabalhadores assalariados. Fundamenta-se, a partir disso, abordagens ideológicas que buscavam justificar o atraso da introdução do trabalho assalariado e as dificuldades econômicas enfrentadas pelo Estado brasileiro. O mito da vadiagem buscava denunciar a preguiça, irresponsabilidade e a indisciplina dos trabalhadores livres da economia escravista brasileira. Com o reconhecimento das barbáries perpetradas pelo sistema escravista, o mito da vadiagem serviu para reforçar a ordem escravocrata frente a resistência dos trabalhadores em relação à disciplina do modelo escravista.
4. Considerações Finais
Embora Brasil e África do Sul compartilhem uma história marcada pela exploração colonial e pela escravidão, a forma como esses processos moldaram seus respectivos mercados de trabalho apresenta diferenças profundas — especialmente no modo como o racismo foi institucionalizado (ou naturalizado) para garantir a manutenção da exploração da força de trabalho após o fim da escravidão formal.
Na África do Sul, a inserção do capitalismo britânico de livre-comércio nas regiões periféricas foi acompanhada por uma forte atuação estatal. O Estado teve papel central na construção de um mercado de trabalho racialmente hierarquizado: criou leis e dispositivos que limitavam as oportunidades para trabalhadores negros, ao mesmo tempo em que reservava os melhores salários e postos para a população branca. A racialização, nesse caso, foi institucionalizada como ferramenta para garantir que o lucro, antes assegurado pelo trabalho compulsório, seguisse sendo extraído de forma desigual.
Já no Brasil, o processo foi mais silencioso, porém igualmente violento. A longa duração da colonização portuguesa consolidou uma cultura em que o racismo foi incorporado às estruturas sociais de forma orgânica, sem a necessidade de um aparato legal explícito. As instituições e o imaginário coletivo naturalizaram uma hierarquia racial que atravessou o fim da escravidão. Assim, a transição para o trabalho assalariado não representou uma ruptura, mas sim uma continuidade das formas de dominação herdadas do período colonial.
Dessa forma, o presente texto buscou demonstrar como a proletarização da mão-de-obra brasileira se dá apesar das condições racializadas impostas durante o período colonial. Enquanto na África do Sul, o mercado de trabalho é formado através da atitude deliberada do Estado em expandir e criar instituições que mantiveram o racismo com condicionante do mercado de trabalho.
5. Notas
[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Este artigo apresenta uma síntese da monografia do autor intitulada Semelhanças e Diferenças no Processo de Proletarização no Terceiro Mundo: o caso do Brasil e África do Sul.
Créditos da imagem que ilustra o artigo: Gang of Captives at Mbame’s – 1865 – David Livingstone. Wikipedia.
6. Referências
CRUZ, Aline da; GHIDORSI, Josiane Dillor Brugnera. A influência das sesmarias na estrutura fundiária do Brasil República. Revista Internacional Cosinter de Direito, v. 16, n. 9, p. 1-18.
LEGASSICK, Martin. South Africa: force labor, industrialization, and racial differentiation. In: HARRIS, Richard (comp.). The Political Economy of Africa. Nova York: Schenkman Publishing Company Inc, 1977. p. 277-300.
MARINHO JUNIOR, Murilo. Semelhanças e Diferenças no Processo de Proletarização no Terceiro Mundo: o caso do Brasil e África do Sul. 2024. 67 f. TCC (Graduação) – Curso de Relações Internacionais, Centro Socioeconômico, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2024.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2023
PEREIRA, Analúcia Danilevicz. A Revolução Sul-Africana. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
SANTOS, Fábio Pádua dos. Sistema-mundo moderno, economia de mercado e formação do Brasil contemporâneo. Economia e Sociedade, v. 33, n. 2, p. e251714, 2024.
SILVA, Lígia Osório. Terras Devolutas e Latifúndio: efeitos da lei de 1850. 2. ed. Campinas: Editora Unicamp, 1996.
WALLERSTEIN, Immanuel; MARTIN, William G. Peripheralisation of Southern Africa, II: changes in household structure and labor-force formation. Review (Fernand Braudel Center). New York, p. 193-207. mar. 1979.
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