Os enigmas de Macunaíma e do Brasil

Enigma, claro enigma. Há diversas referências, quando tratamos de pensamento social, às perguntas sem respostas. Na coleção “Intérpretes do Brasil”, lançada em 2000 pela Editora Nova Aguilar, lemos na frase que encerra o prefácio de Silviano Santiago: “Brasil, o nosso claro enigma”. Nove anos depois, a coletânea organizada por André Botelho e Lilia Schwarcz, intitulada “Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país”, tem como formulação de abertura a frase atribuída a Tom Jobim: o Brasil não é para principiantes. Mas será que existe algum país para principiantes?

Além de ser título de livro de Carlos Drummond de Andrade, lançado em 1951, e de coleção da editora paulistana Duas Cidades, “claro enigma” expressa uma dubiedade recorrente nas formulações sobre a “identidade nacional”. Essa percepção da indefinição dos contornos identitários marca parte significativa das linhagens interpretativas de intelectuais no Brasil. Citando o Manifesto Antropófago (1928): Tupy or not tupy, that is the question. No mesmo ano do lançamento do Manifesto, Paulo Prado publicou “Retrato do Brasil : ensaio sobre a tristeza brasileira” e Mário de Andrade, “Macunaíma” e “Ensaio sobre a Música Brasileira”. Também em 1928, Tarsila do Amaral pintou “Abaporu”, que ilustra as capas das edições mais recentes do “clássico” livro de Sérgio Buarque: “Raízes do Brasil”. Seis anos após a Semana de Arte de 1922, o movimento havia sofrido várias fraturas e o cenário político no país havia ficado turbulento com os levantes militares em 1922 (18 do Forte) e em 1924, além das movimentações da Coluna Prestes.

Chegamos ao momento mais importante da postagem: em 2015, o Instituto CPFL convidou o professor José Miguel Wisnik, autor de “O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22” (1977) e “Veneno Remédio – o Futebol e o Brasil” (2008) e professor aposentado da USP, para uma apresentação no Café Filosófico. Na conferência “Macunaíma e o enigma do herói às avessas”, Wisnik, de forma muito didática, apresenta as dinâmicas  entre o texto de Mário de Andrade, o contexto de sua publicação e sua reverberação nas formas de se pensar o país. 

Acredito que um problema da edição do programa, exibido na TV Cultura, foi a inserção de trechos do filme “Macunaíma” para meramente ilustrar, sem uma análise específica e rigorosa do material fílmico. Dirigido por Joaquim Pedro de Andrade em 1969, o filme foi um marco do discurso cinematográfico alegórico no Brasil. A análise minuciosa de Ismail Xavier em Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo e Cinema Marginal, especialmente no capítulo “Macunaíma: as Ilusões da Eterna Infância”, demonstra com precisão como a interpretação de Joaquim Pedro sobre a rapsódia de Mário de Andrade dialoga com as questões de seu tempo. Aliás, naquela conjuntura histórica, marcada pela restrição das liberdades e pelo fechamento da esfera pública após a decretação do Ato Institucional n.5 durante a presidência do General Costa e Silva, a jornada do “heróis às avessas” ganhou novas camadas de sentido. No filme, a alegoria de um país marcado por ondas de modernização autoritária é expressa, segundo a análise de Ismail Xavier, pela lei da caça.  Ainda segundo o autor, parece relevante notar como uma das questões centrais do filme é a interpretação a respeito das condições “sui generis” da integração do “jeito brasileiro” ao mundo da técnica – simbolizado nas máquinas ou nos aparelhos domésticos – e do capital – sobretudo nas ações do “herói de nossa gente” contra o gigante Venceslau Pietro Pietra.

 

Sobre Luã Leal 34 Artigos
Luã Leal é o responsável pelo blog Vértice Sociológico. Mestre e doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Bacharel em Ciências Sociais pela Escola de Ciências Sociais/CPDOC da Fundação Getulio Vargas (FGV). Meus interesses de pesquisa estão relacionados à sociologia da cultura e ao pensamento social.

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