O Mestre de Apipucos: o encontro de Joaquim Pedro com Freyre

Nascido em 1932, Joaquim Pedro de Andrade ainda era um jovem cineasta quando recebeu a incumbência de dirigir dois curtas encomendados pelo Instituto Nacional do Livro, órgão vinculado ao Ministério da Educação e Cultura. Em 1959, ele estreou como diretor de cinema com “O Mestre de Apipucos” e “O Poeta do Castelo”, ambos produzidos pela Saga Filmes. Joaquim Pedro foi sócio dessa produtora até 1960 e, em 1965, fundou a Filmes do Serro, responsável pela produção de “Brasília, Contradições de Uma Cidade Nova” (1967), “Macunaíma” (1969) (quem tiver interesse, pode conferir a postagem anterior do blog) e “Os Inconfidentes” (1972). Filho de Rodrigo Melo Franco de Andrade e afilhado de Manuel Bandeira, Joaquim Pedro possuía grande afinidade ou laços de parentesco com alguns dos intelectuais que agitavam o cenário intelectual brasileiro desde a Semana de Arte Moderna de 1922. Seu pai foi um dos organizadores do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e diretor de Patrimônio dessa instituição de 1937 a 1969.

Em formato de 35mm, “O Mestre de Apipucos” e “O Poeta do Castelo”, ambos filmados em preto e branco, receberam narração de seus protagonistas, respectivamente, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Produzido como homenagem a Freyre, “O Mestre de Apipucos” é um curta com 8 minutos de duração, restaurado recentemente pela parceria entre Filmes do Serro, TeleImage, Trama, Cinemateca Brasileira e Secretaria do Audiovisual (Ministério da Cultura).

Em 1959, “Casa-Grande & Senzala” completara 26 anos da publicação da primeira edição e seu autor seria retratado pelo filme de Joaquim Pedro, cineasta então com 27 anos, como grande intelectual brasileiro. O curta é um exemplo de como a encenação no cinema documentário cria sentidos para a construção de personagens. Em uma cena, quando Freyre está sentado confortavelmente em uma poltrona de seu escritório, a câmera flagra aquilo que sua mão escreve no papel em branco: “um livro que alguém precisa escrever é este: uma história da vida de estudante no Brasil”. O intelectual exerce o controle naquele universo de livros. Aliás, ele sempre parece estar na função de organização ou de supervisão de atividades em sua residência. Quase no final da primeira metade, o curta começa a revelar novas personagens. A primeira a entrar em cena, tendo ao fundo azulejos portugueses do século XVIII, é Maria Magdalena Guedes Pereira, casada com Freyre desde 1941. Logo depois, Manuel entra no quadro servindo o “café com leite frugal” para o casal Gilberto e Magdalena. Sobre Manuel, a “voz off” do autor cumpre função explicativa: “há muitos anos com a nossa família”.

Na segunda metade do curta, pela primeira vez fora de sua propriedade de Apipucos, Freyre aparece deitado na praia de Boa Viagem, lendo um livro. O movimento de câmera leva nosso olhar das ondas do mar para as areias da praia. Enquadrando por inteiro o corpo de Freyre, após ele se levantar, a câmera transforma o mar em pano de fundo para um comentário sobre as memórias de infâncias. Nessa sequência, a “voz off” afirma: “não me canso de olhar as cores desse mar, onde nado desde menino”. Ainda na praia, após uma referência ao “peixe ou cozido que me espera”, Freyre repousa sua mão na barriga. Há um corte para um plano fechado: o peixe na panela ocupa quase por completo a tela. Aparece então a “cozinheira Bia”, quem prepara o peixe sob “direção de Magdalena”.

Durante os 8 minutos de duração, apenas quatro pessoas entram em cena: Bia, Manuel, Magdalena e, obviamente, Gilberto Freyre. Ele, isso é importante ressaltar, cumpre o papel de protagonista das ações ou de condutor. Até quando não está realizando a ação (cozinhar, por exemplo), é Freyre quem aparece como avaliador da qualidade da “cavala-perna-de-moça, o melhor peixe de Pernambuco”. Depois de sua visita à cozinha, Freyre prepara uma batida: os cortes alternam “planos médios” e, depois, “planos fechados” de Bia e de Freyre. O ápice desse momento do curta é quando, após avaliar positivamente a batida, Freyre experimenta e também aprova o peixe preparado por Bia.

Do início ao fim, a narrativa torna ficção a rotina de um escritor brasileiro. No bloco final, deitado em uma rede do Ceará  enquanto fuma um cachimbo, Freyre lê um livro fora de sua “especialidade”. Magdalena entra no quadro, senta-se em uma cadeira e começa a costurar. Aparece, então, o título do livro nas mãos do intelectual: “Poesias” de Manuel Bandeira, sexta edição aumentada, publicado pela Livraria José Olympio Editora em 1955. Essa é a última cena do curta “O Mestre de Apipucos”.

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O curta “O Poeta do Castelo” apresenta as prosaicas ações de Manuel Bandeira com o próprio poeta proclamando os seus versos em off.  Uma angulação contra-plongée acentua o gigantismo dos prédios na introdução do curta. Enquanto assistimos Bandeira esquentando o leite comprado em uma mercearia, ouvimos os versos de “Testamento”. De uma janela semicerrada, é possível ver o poeta sentar-se em uma cadeira para comer fatias de pão e beber leite. A posição da câmera e o enquadramento plongée  possibilitam que o público veja uma pequena estante com livros, elemento de cena que certamente contrasta com a monumentalidade do gabinete de Freyre em Apipucos. Dentro do apartamento, no entanto, a panorâmica horizontal realiza uma mensuração dos livros situados nas estantes.

O tom prosaico marca “O Mestre de Apipucos”, contudo essa característica é extrapolada em “O Poeta do Castelo”. Esse curta apresenta o poeta de pijama, deitado em sua cama, escrevendo à máquina, consultando um exemplar do dicionário Larousse. Depois, enquanto ouvimos “Vou-me Embora pra Pasárgada”, surge em cena Manuel Bandeira se vestindo. Durante todo o curta, o poeta interage com poucas pessoas: um merceeiro, um jornaleiro e, além deles, alguém abraçado pelo poeta na avenida Presidente Wilson, cidade do Rio de Janeiro. Enquanto caminha por essa avenida, já na parte final do curta, vemos no fundo do plano o Petit Trianon, sede da Academia Brasileira de Letras (ABL). Eleito para a ABL em 1940, Manuel Bandeira é apresentado no curta “O Poeta do Castelo” como um escritor do prosaico. Na sequência final, um tilting (movimento de câmera que vai do chão ao céu) assume um poste como elemento central do quadro. Quase impossível maior prova de banalidade. Tal movimento de câmera conjuga-se com os versos iniciados com a expressão “vou-me embora”.

A exposição “Gilberto Freyre: vida, forma e cor”, realizada entre maio e julho de 2016 na Caixa Cultural em São Paulo, tinha como tema a relação do escritor com as artes visuais. Segundo a proposta da curadoria, a exposição era organizada em módulos: “Mundo de imagens”, “Escritor de formas e cores”, “Contaminações criativas” e “Ecos”. Em um vídeo divulgado pelo canal do Grupo Editorial Global, há entrevistas com Fernanda Arêas Peixoto, Leonardo Borges e José Lira, trio responsável pela concepção da exposição.

No primeiro espaço dessa exposição, um vídeo chamou minha atenção: “O Caseiro”. A proposta de Jonathas de Andrade, artista nascido em Maceió e radicado em Recife, era tecer uma relação intertextual com “O Mestre de Apipucos”. O vídeo de 8 minutos em loop também foi apresentado no Wexner Center for the Arts da Universidade de Ohio State em janeiro de 2017 e recebeu,  nessa ocasião, uma análise  sobre a ilusória “democracia racial”. O mito torna-se menos crível se estivermos atentos a quem aparece (ou não aparece) na tela servindo à família de Freyre. Efeito realçado pela contiguidade dos dois monitores, a sincronização dos cortes de “O caseiro” e “O Mestre de Apipucos” busca forçar os paralelismos e os “contrastes nas questões de classe e raça, e revelam ação do tempo sobre a arquitetura, bem como sobre as ideias e a figura histórica de Freyre”. Por esse motivo, o vídeo foi definido no portfólio do artista como “obra em diálogo”.

 

 

Sobre Luã Leal 31 Artigos
Luã Leal é o responsável pelo blog Vértice Sociológico. Mestre e doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Bacharel em Ciências Sociais pela Escola de Ciências Sociais/CPDOC da Fundação Getulio Vargas (FGV). Meus interesses de pesquisa estão relacionados à sociologia da cultura e ao pensamento social.

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