Nas imagens do Brasil, um dos ângulos menos visados é o das populações indígenas. Os autores de livros “clássicos” do pensamento social, como “Casa-Grande & Senzala” (1933),”Raízes do Brasil”(1936) e “Formação do Brasil Contemporâneo: colônia” (1942), pouco interpretaram os lugares ocupados pelos “aborígenes” (termo recorrente na obra de Caio Prado Junior) na organização social e na formação da sociedade brasileira. Em termos de políticas do Estado, ao lado de órgãos como o (extinto) SPI e a Funai, as instâncias do IBGE possuem certa autonomia na construção de tipos classificatórios que demarcam os grupos mediante critérios étnicorraciais, o que certamente é motivo de polêmicas e disputas políticas nos recenseamentos (sugiro a leitura do artigo “Cor nos censos brasileiros” de Edith Piza e Fúlvia Rosemberg).
As representações imagéticas das populações indígenas também acompanham a construção de um imaginário sobre a terra e o “caráter” do povo. O cartaz do filme “O Descobrimento do Brasil” (1937), de Humberto Mauro, traz na margem inferior “nativos” de joelhos perante um religioso habilitado a catequisar, tendo ao seu lado um colonizador segurando uma cruz e ao fundo três caravelas. A direção musical desse filme, “uma realização cívico-cultural do Instituto de Cacau da Bahia”, ficou a cargo de Heitor Villa-Lobos.
A série “Índios no Brasil”, produzida com objetivo didático em 2000 com direção de Vicent Carelli para a TV Escola do MEC, exemplifica como as populações indígenas buscam novas formas de representação identitária e de participação política. No episódio intitulado “Uma outra história”, foram inseridas algumas cenas do filme “O descobrimento do Brasil” para abrir o debate: “o Brasil foi descoberto ou invadido?”. Nove anos depois da série “Índios no Brasil, o diretor Vincent Carelli se tornou o grande vencedor do Festival de Gramado com o filme “Corumbiara”.
Essa e outras iniciativas do projeto “Vídeo nas Aldeias”, iniciado em 1987, podem ser conferidas no site com catálogo de filmes e textos. Pelo menos desde o final da década de 1970, novas personagens entraram no enquadramento do cinema documentário brasileiro: sindicalistas e indígenas. Indígenas timbira, canela e arara foram interlocutores de Andrea Tonacci nos filmes “Conversas no Maranhão” (1977-83), “Discursos canelas (1979) e “Os araras” (1980). Para uma análise da filmografia desse diretor, sugiro o artigo de José Geraldo Couto publicado no blog do Instituto Moreira Salles: “Tonacci, cinema dos grandes“. No início da década de 1980, o sarcástico curta-metragem “Mato eles?”, do diretor Sérgio Bianchi, colocaria problemas que retornam no longa “Serras da desordem” de Tonacci, vencedor do Festival de Gramado em 2006: os descompassos entre as ações de instituições como a Funai, a autoproclamada relevância de cineastas para retratar as populações indígenas, as atividades de filantropos, sertanistas e ONGs, os interesses dos empresários e, mais importante, as vozes das populações que lutam pela demarcação de áreas como Terra Indígena no Brasil (TI).
“Serras da desordem” e “Mato eles?”, apesar das diferenças de estilo, são filmes híbridos baseados no método da bricolagem, pois provocam o público por cruzarem as fronteiras de documentário e de ficção. Para finalizar, vou citar uma das perguntas que aparecem nas cartelas com fundo preto durante o curta-metragem de Bianchi:
Sabendo que existem apenas alguns índios da tribo dos Xetás, o que aconteceu com os demais?
a) Miscigenaram-se com a população branca e vivem nas grandes cidades.
b) Foram todos mortos por doença infecciosa e problemas de litígio de terra.
c) Estão passando férias no exterior.
d) Os índios Xetás nunca existiram. O documentário é falso.
e) Todas as alternativas estão corretas.
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