Celebrando as “Estrelas Além do Tempo”: Katherine Johnson, Mary Jackson e Dorothy Vaughan, cientistas da NASA

Publicado por Juliana Aguilera Lobo em

As cientistas Katherine Johnson, Mary Jackson e Dorothy Vaughan

Da esquerda para a direita: Katherine Johnson, Mary Jackson e Dorothy Vaughan. Composição via Marie Claire Brasil. Imagens via arquivos da NASA. Todos os direitos reservados.

Recentemente, tive a oportunidade de assistir ao filme “Estrelas Além do Tempo”, lançado em 2016. A obra retrata a história real de três cientistas afro-americanas que trabalharam no Langley Research Center (“Centro de Pesquisas Langley”) da NASA, localizado na cidade de Hampton, no estado da Virgínia: Katherine Johnson e Dorothy Vaughan, matemáticas, e Mary Jackson, matemática que viria a se tornar engenheira.

Confesso que fiquei totalmente encantada pelo filme e pelas reflexões e discussões que ele suscita (especialmente sobre raça e gênero¹). Checando nos arquivos do blog, lembrei que a Marina escreveu um texto muito oportuno em setembro de 2016 sobre as mulheres invisíveis do setor da tecnologia onde Katherine, Mary e Dorothy foram mencionadas.

Dessa forma, decidi fazer este post da categoria “Na História” sobre essas “figuras escondidas” (“Hidden Figures” – título do filme em inglês), e falar um pouco mais da trajetória e das realizações destas três mulheres notáveis.

Ficção & Realidade

O filme “Estrelas Além do Tempo” é baseado no livro² escrito por Margot Lee Shetterly, autora de livros de não-ficção que nasceu justamente em Hampton, a “casa” do Langley Research Center. Margot, que também é afro-americana, cresceu numa família de cientistas, engenheiros e físicos, e muitos deles trabalhavam na NASA. Nascida em 1969 – o mesmo ano em que a humanidade chegou à Lua – Margot começou a se interessar pelas histórias das mulheres e, em especial, das mulheres negras que trabalharam no Langley.

Fruto de 6 anos de pesquisas árduas, o livro chegou às prateleiras das lojas poucos meses antes do filme estrear, já que seus direitos de filmagem haviam sido adquiridos logo após Margot assinar o contrato com sua editora. 

Estrelado por Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe (que interpretam Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, respectivamente), “Estrelas Além do Tempo” toma certas licenças poéticas em algumas cenas, mas no geral é um retrato preciso dos desafios enfrentados pelas mulheres negras que trabalhavam na NASA há 60 anos.

Pôster do filme “Estrelas Além do Tempo” de 2016. Imagem via 20th Century Studios Brasil. Todos os direitos reservados.

Devemos nos lembrar que o período retratado no filme vai de meados da década de 1950 até o começo da década de 1960 e, naquela época, os Estados Unidos estavam em plena Guerra Fria, numa Corrida Espacial com a então União Soviética; além disso, a segregação racial era a realidade no país, e nos estados do Sul e do Sudeste – o que inclui a Virgínia, onde o Langley se localiza – a segregação era ainda mais demarcada. 

As escolas e faculdades na Virgínia eram majoritariamente segregadas, e os banheiros públicos e bebedouros eram separados, assim como os assentos dos ônibus (pessoas negras deveriam se sentar na parte de trás).

Ainda nos primeiros anos da década de 1940, no auge da 2ª Guerra Mundial e décadas antes do acirramento da Corrida Espacial, a NASA, ainda sob a alcunha de NACA³, começou a recrutar mulheres para exercer a função de computadores ou “calculadoras” – ou seja, checar manualmente as equações que possibilitavam o trabalho dos engenheiros, matemáticos e físicos (que eram, em sua grande maioria, homens brancos). 

As mulheres brancas foram as primeiras contratadas no Centro de Pesquisas Langley, recebendo salários bem menores que os homens, e pouco depois o órgão criou uma divisão de calculadoras para mulheres negras. Nesse contexto histórico, começa a trajetória de Dorothy, Mary e Katherine na NACA, organização que viria a ser a NASA.

Dorothy Vaughan 

Nascida em 1910 em Kansas City, Dorothy Vaughan graduou-se em Matemática em 1929 pela Wilberforce University (uma universidade em Ohio historicamente voltada para a comunidade negra). 

Antes de trabalhar no Langley, Dorothy exercia a função de professora de matemática numa escola de ensino médio já no estado da Virgínia. Admitida pela NACA em 1943 para atuar no Centro de Pesquisas Langley, Dorothy pensava que seu tempo lá seria curto, considerando aquela função apenas como um trabalho temporário no ápice da 2ª Guerra Mundial.

Quando o Presidente Roosevelt assinou uma lei que proibia a discriminação racial na indústria de defesa estadunidense, Dorothy foi direcionada à segregada West Area Computing Unit (“Unidade Computacional da Área Oeste”), formada por mulheres negras que exerciam o cargo de computadores/calculadoras. Em 1949, Dorothy foi promovida à chefe da Unidade Oeste, tornando-se a primeira pessoa negra a ter um cargo de supervisão na NACA (e, portanto, na NASA).

Dorothy Vaughan. Imagem não datada via arquivos da NASA. Todos os direitos reservados.

Conforme retratado no filme, Dorothy era uma ávida defensora do seu time na Unidade Oeste, advogando pelo avanço das matemáticas de sua equipe para outras oportunidades no Centro Langley. Quando os primeiros computadores da IBM foram implantados nos centros de pesquisa da NACA/NASA, Dorothy tornou-se uma especialista na linguagem de computação FORTRAN, essencial para o uso dos equipamentos da IBM na época, e instruiu sua equipe nessa linguagem. 

Dorothy se aposentou da NASA em 1971 e continuou a incentivar a inserção das mulheres nas carreiras de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) até seu falecimento, em novembro de 2008, aos 98 anos.

Mary Jackson

Mary Jackson, a mais nova das três “estrelas”, nasceu em 1921 em Hampton, Virgínia (onde o Langley está localizado). Uma aluna brilhante, formou-se em Matemática e Ciências Físicas no Hampton Institute em 1942 e, assim como Dorothy, também trabalhou como professora de matemática antes de ser contratada em 1951 para trabalhar no Centro Langley na equipe da Unidade Oeste, sob supervisão da mesma Dorothy.

A transição de Mary da Matemática para a Engenharia, conforme retratada no filme, não foi fácil. Seu mentor, o engenheiro Kazimierz Czarnecki, ofereceu-lhe uma posição na equipe que trabalhava num Túnel de Vento Supersônico. 

a cientista mary jackson em seu local de trabalho
Mary Jackson no Centro Langley. Imagem não datada via arquivos da NASA. Todos os direitos reservados.

Para ganhar a promoção para o cargo de engenheira, Mary deveria fazer, em seu tempo livre, aulas de matemática e física oferecidas pela Universidade da Virgínia. Contudo, naquela época, essas aulas eram ministradas na Hampton High School, uma escola de ensino médio segregada.

Por isso, Mary precisou requerer uma permissão especial da municipalidade de Hampton para frequentar as aulas na Hampton High. Permissão concedida, Mary Jackson não só completou as aulas como ganhou a promoção no Centro Langley, tornando-se, em 1958, a primeira engenheira negra da NASA.

Nas duas décadas seguintes, Mary foi autora e coautora de diversos artigos e relatórios no campo da engenharia aeronáutica. No final da década de 1979, ainda sentindo as dificuldades de avanço na carreira por ser mulher e negra, ela fez outra transição: de engenheira para gerente no Federal Women’s Program (“Programa Federal Voltado para Mulheres”, em tradução livre) do Centro Langley, justamente para contribuir para que mais mulheres pudessem ser contratadas e chegar a posições de liderança dentro da NASA.

Mary aposentou-se da NASA em 1985, após ter recebido diversas honrarias, como o Apollo Group Achievement Award e o reconhecimento de Voluntária do Ano em 1976 no Centro Langley. Mary Jackson sempre apoiou jovens cientistas e buscou acolher aquelas e aqueles que chegavam a Hampton para trabalhar no Langley. Faleceu em 2005 pouco antes de completar 84 anos.

Katherine Johnson

Talvez a mais conhecida entre as três cientistas, Katherine Johnson nasceu em 1918 na cidade de White Sulphur Springs, na Virgínia Ocidental.

Desde muito pequena, mostrou uma grande aptidão para a matemática. Como em sua cidade natal o sistema educacional era segregado e só ia até a sexta série, Katherine mudou-se, junto a seus pais e irmãos mais velhos, para a cidade de Institute, e lá entrou para a escola de ensino médio associada à universidade que hoje recebe o nome de West Virginia State.

Um prodígio, ingressou no ensino médio aos 10 anos, formando-se aos 14. Logo depois, matriculou-se na West Virginia State e, em seu segundo ano lá, já havia cursado todas as disciplinas de Matemática ofertadas pela instituição. Na faculdade, Katherine recebeu a mentoria do professor William Waldron Schieffelin Claytor⁴, que a incentivou a seguir uma carreira como pesquisadora na Matemática.

Katherine se formou com honras em 1937 na West Virginia State e, da mesma forma que Mary e Dorothy, aceitou o emprego de professora numa escola pública para estudantes negros.

Em 1939, a Virgínia Ocidental começou a integrar suas instituições de ensino de pós-graduação, e Katherine recebeu uma oferta para seguir seus estudos acadêmicos na West Virginia University. Contudo, após completar o primeiro ano de pós-graduação, Katherine deixou os estudos para se casar e começar uma família com seu primeiro marido.

A cientista Katherine Johnson em seu local de trabalho na NASA
Katherine Johnson no Centro Langley em 1966. Imagem via arquivos da NASA. Todos os direitos reservados.

Ela voltou a lecionar nos anos seguintes até que, em 1952, ficou sabendo da existência de vagas abertas para computador/calculadora na Unidade Oeste do Centro Langley, que já estava sob a supervisão de Dorothy Vaughan. Em junho do ano seguinte, Katherine começou a trabalhar na Unidade e, apenas dois meses depois, foi indicada por Dorothy para uma função num dos projetos da Flight Research Division (“Divisão de Pesquisas em Voo”, em tradução livre). 

Nos próximos anos, Katherine dedicou-se a analisar os dados dos testes de voo da (então) NACA. Um divisor de águas veio em 1957, quando a União Soviética lançou o satélite Sputnik ao espaço – os Estados Unidos estavam atrás na Corrida Espacial e a pressão do governo para conseguir resultados concretos era imensa. Foi criado, então, o Space Task Group e, no ano seguinte, com a NASA já constituída, as pesquisas e as simulações estavam a pleno vapor.

Katherine, a partir daí, realizou alguns de seus mais notórios trabalhos. Em 1961, o mesmo ano em que o russo Yuri Gagarin tornou-se o primeiro humano a entrar em órbita à bordo da Vostok 1 em 12 de abril, ela fez cálculos para a missão Freedom 7, que decolou em 5 em maio e foi a primeira missão espacial tripulada dos Estados Unidos com o astronauta Alan Shepard. 

Mais notoriamente, Katherine foi chamada para checar os cálculos dos computadores IBM para a rota da missão Friendship 7, tripulada pelo astronauta John Glenn – que se tornou o primeiro astronauta estadunidense a entrar em órbita na Terra em 20 de fevereiro de 1962.

No filme, o momento da decolagem da Friendship 7 é retratado com licença poética (na cena, Katherine faz cálculos minutos antes de John Glenn entrar na nave); contudo, o astronauta realmente solicitou que ela confirmasse os dados gerados pelos computadores IBM, pedindo aos engenheiros para “get the girl” (ou “chame a garota” – Katherine – para fazer os cálculos).

Após o êxito da Friendship 7, Katherine também integrou a equipe da Apollo 11 (ela teve um papel fundamental em fazer cálculos que ajudaram a sincronizar o módulo lunar da Apollo 11 com o módulo de serviço), e trabalhou no time do Space Shuttle, o ônibus espacial. 

Katherine se aposentou em 1986 depois de 33 anos de serviço no Centro Langley, e em 2015 recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade – a maior condecoração civil concedida nos Estados Unidos – das mãos do então presidente Barack Obama. 

A cientista Katherine Johnson recebe a Medalha Presidencial da Liberdade.
Katherine Johnson recebe a Medalha Presidencial da Liberdade em 2015. Imagem via arquivos da NASA. Todos os direitos reservados.

Ela assistiu ao filme baseado em sua vida e na vida de suas colegas e, segundo Margot Lee Shetterly, gostou muito do que viu. Katherine faleceu recentemente, em 24 de fevereiro de 2020, aos 101 anos. 

Atualmente, há duas instalações da NASA nomeadas em sua homenagem: o Katherine Johnson Computational Research Facility, no Centro Langley em Hampton, Virgínia; e o Katherine Johnson Independent Verification & Validation Facility em Fairmont, Virgínia Ocidental.

O Legado das Estrelas Além do Tempo

O livro de Margot Lee Shetterly e o filme lançado em 2016 certamente fizeram com que gerações de mulheres – e de mulheres negras, especificamente – passassem a conhecer a trajetória e as contribuições de Dorothy Vaughan, Mary Jackson e Katherine Johnson. 

Por exemplo, a cantora e atriz Janelle Monáe, que interpreta Mary Jackson, relatou que ficou extremamente chateada porque não tinha ouvido falar das três cientistas antes de ler o roteiro do filme.

A atriz ganhadora do Oscar Octavia Spencer, que dá vida a Dorothy Vaughan, pensou que o enredo era totalmente fictício quando ouviu falar da sinopse pela primeira vez; ao descobrir que o roteiro era baseado em fatos e pessoas reais, sentiu que “era imperativo fazer parte desta história”.

A atriz Octavia Spencer cumprimenta a cientista Katherine Johnson
A atriz Octavia Spencer cumprimenta a cientista Katherine Johnson durante recepção na NASA em 1º de dezembro de 2016. Imagem via arquivos da NASA. Todos os direitos reservados.

A Drª Mae Jemison – a primeira mulher negra a ir para o espaço – escreveu um artigo no The New York Times falando da influência de Katherine Johnson e de suas colegas Mary e Dorothy. Extremamente inspirada pelas “estrelas além do tempo”, hoje em dia a Drª Mae faz parte de um projeto que busca entender o que é necessário para que as mulheres cheguem a uma posição de igualdade aos homens em relação à participação e à liderança nas STEM.

Além disso, também não há como não ressaltar a relevância de Dorothy, Mary e Katherine como mulheres negras vivendo e pesquisando nos Estados Unidos segregado das décadas de 1950 e 1960. É necessário refletir sobre seus feitos e suas conquistas sempre tendo em mente o contexto social e político em que viviam para entender os obstáculos que elas enfrentaram, enquanto mulheres cientistas, frente ao machismo e ao racismo que, infelizmente, ainda se fazem presentes na sociedade.

Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson foram honradas, em novembro de 2019, com a Medalha de Ouro do Congresso dos EUA. Uma quarta medalha foi dada à Drª Christine Darden (matemática e engenheira aeronáutica que trabalhou no Centro Langley), e uma quinta honrará as centenas de “calculadoras humanas” que não foram reconhecidas.

Confira abaixo o trailer legendado do imperdível “Estrelas Além do Tempo” (2016):

Notas:

¹ Para entender um pouco mais sobre como as questões de gênero, raça e classe se relacionam e se interconectam, recomendo o TED da acadêmica de Direito e ativista Kimberlé Crenshaw, que cunhou o termo “interseccionalidade” no final da década de 1980: “A Urgência da Interseccionalidade” (é necessário habilitar as legendas em português nas configurações do vídeo). 

² O nome completo do livro de Margot Lee Shetterly é “Hidden Figures: The American Dream and the Untold Story of the Black Women Mathematicians Who Helped Win the Space Race”, (“Figuras Escondidas: O Sonho Americano e a História Não Contada das Mulheres Negras Matemáticas que Ajudaram a Vencer a Corrida Espacial”, em tradução livre).

³ A NASA foi constituída em 1958. Antes disso, havia a NACA (National Advisory Committee for Aeronautics), que foi fundada em 1915 e estava na dianteira das pesquisas sobre aeronáutica nos EUA. O Centro Langley já fazia parte da NACA quando esta foi absorvida e virou NASA em 1958.

William Waldron Schieffelin Claytor foi a terceira pessoa negra a receber um doutorado em matemática de uma universidade estadunidense.

Fonte das Imagens:

https://flic.kr/s/aHsm3hTWKD

https://www.nasa.gov/modernfigures/images

http://www.foxfilm.com.br/estrelas-alem-do-tempo

Referências:

Marie Claire Brasil

https://revistamarieclaire.globo.com/Noticias/noticia/2019/11/cientistas-do-filme-estrelas-alem-do-tempo-receberao-medalha-nos-eua.html

NASA

https://www.nasa.gov/modernfigures

https://www.nasa.gov/modernfigures/faq

https://www.nasa.gov/content/dorothy-vaughan-biography

https://www.nasa.gov/content/mary-jackson-biography

https://www.nasa.gov/content/katherine-johnson-biography

https://www.nasa.gov/feature/goddard/2019/west-virginia-nasa-facility-renamed-after-agency-icon

NPR

https://www.npr.org/2016/12/16/505569187/hidden-figures-no-more-meet-the-black-women-who-helped-send-america-to-space

The New York Times

https://www.nytimes.com/2020/02/29/opinion/contributors/Katherine-johnson-nasa.html

https://www.nytimes.com/2020/02/24/science/katherine-johnson-dead.html


Juliana Aguilera Lobo

Graduada em Relações Internacionais pela UNESP Franca, atualmente é aluna especial no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Realiza pesquisa nas áreas de Ciência Política e Estudos de Gênero e tem interesse em Divulgação Científica. É fascinada pelo céu estrelado desde que se entende por gente.

1 comentário

Vanessa Clemente Cardoso · 22 de agosto de 2020 às 14:46

Amei o texto. Muito importante!

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *