Patentes Patéticas (nº. 100) (agora sim)

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Você sente que precisa de mais segurança ao andar por aí com seu telefone celular? Mas você acha que carregar uma arma de fogo seria muito desconfortável ou mesmo muito perigoso? Seu sonho de infância era ser o 007?

O sonho de Ken Grove deve ter sido este. Ou então ele andou vendo muitos filmes do elegante agente secreto britânico antes de ter um estalo. É dele a ideia de um Electronic Device with Concealed Firearm System [Dispositivo Eletrônico com Sistema de Arma-de-Fogo Oculto]:

Um dispositivo eletrônico com uma arma-de-fogo oculta. O dispositivo inclui um invólucro com uma face interior e uma face exterior e uma cavidade interna. O invólucro tem uma pluralidade de botões e [elementos] eletrônicos digitais. Uma parede tubular com um calibre sólido é adaptada para funcionar como cano de uma arma-de-fogo. A parede tubular tem uma extremidade interna em comunicação com a cavidade interna e uma extremidade externa em comunicação com o exterior do invólucro. Há uma câmara para receber uma bala adjacente à extremidade interior do calibre. Um elemento de disparo é posicionado na extremidade da bala com uma ponta adaptada para lançar o cartucho e para disparar a bala e propelir a carga para fora dali. Um atuador é localizado ao lado disparador quando distante da bala para iniciar o movimento do elemento de disparo. Um mecanismo, quando ativado, é adaptado para liberar o atuador para mover o elemento de disparo e disparar a bala. Um segundo mecanismo é posicionável em associação com o elemento de disparo e a bala para garantir segurança. Componentes eletrônicos primários incluem elementos eletrônicos para permitir que a bala seja disparada após a instrução primária de pelo menos um dos botões.

É um cruzamento de Bell com Colt, senhoras e senhores! Registrada sob nº. 6.778.811 [pdf], a patente do “celular-de-fogo” foi aprovada em 17 de agosto de 2004. Ao contrário do que pode parecer, porém, essa não é daquelas milhares de patentes de segurança que paranoicamente patrioticamente foram propostas após 11 de setembro de 2001. Morador de Clearwater, Flórida, Ken Grove entrou com pedido no USPTO em 8 de junho de 2001, três meses antes dos ataques contra Nova York e Washington.

O objetivo de “prover proteção pessoal diante de circunstâncias adversas para um usuário através do uso de uma arma-de-fogo oculta em um dispositivo que não se parece com uma arma-de-fogo” não tem nada de inovador. Do Soco-Inglês Combinado com Revólver (de 1904) à Arma-de-fogo montada em Sola de Sapato (1971) passando pela clássica Caneta-apito para disparo de projéteis (1969), o que não falta no Escritório de Patentes dos Estados Unidos são propostas mirabolantes para disfarçar armas de fogo. Também já vimos uma maneira rápida e discreta guardar armas na manga. Nem a combinação de celular com pistola era inédita. Já havia uma patente sobre isso datada de 1999.

Mas então, qual a vantagem da arma-celular de Grove? Em relação aos seus antecessores, afirma que seu sistema é mais “aperfeiçoado”. De fato, o design de 1999 chega a ser toscamente indiscreto, já que o aparelho era grande e o disparo era feito por um botão específico para isso. Grover propõe uma solução mais sutil: disparos por número.

[…] para permitir que a bala seja disparada pela pressão de uma tecla, preferencialmente a tecla estrela [*] e a depressão de outra tecla, preferivelmente a tecla três (3), os componentes eletrônicos secundários ligados conectados entre o teclado e o [dispositivo de] segurança adaptado para (A) manter uma primeira orientação de segurança entre o elemento de disparo e a bala condicionado à digitação de um número multi-dígito pré-selecionado e (B) manter a segurança numa segunda orientação de liberação […] pela digitação de um número pré-selecionado distinto, preferivelmente múlti-dígito.

[…]

Uma combinação preferencial de números para ativar a segurança pode bem ser 562-587#, LOCKUP#, enquanto uma combinação para desativar a segurança pode bem ser 865-625#, UNLOCK#. Estes seriam códigos facilmente lembráveis. Outros números poderiam, entretanto, ser modificados para atender ao usuário como sequência de disparo.

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Não que essa inovação — tecle para disparar — tenha durado muito. Ao longo da década, com a chegada dos smartphones, geralmente baseados em telas sensíveis ao toque, os teclados ficaram obsoletos. As antenas extensíveis ou externas, também. Quer dizer, então, que alguém ainda pode patentear um smartvólver com sistema “slide to shoot” (ou via hashtags), e que literalmente dispararia torpedos? Aparentemente, não. E graças a esta salvaguarda de Ken Grove:

Acima descrito está a concretização principal da invenção, na qual uma arma-de-fogo é escondida em um dispositivo eletrônico, preferencialmente um telefone celular. Entretanto, deve ser compreendido que tal dispositivo eletrônico poderia tomar a forma de uma ampla variedade de aparelhos, como por exemplo, pagers, controles remotos para portas, controles remotos para TV/acessórios, computadores portáteis [hand held computers, o que poderia ser interpretado como um tablet], calculadoras, dispositivos eletrônicos portáteis para ensino/jogos e similares.

Como todas as invenções com fins de segurança, esta não escapa à ambiguidade inerente da aplicação das tecnologias humanas. Não é difícil imaginar um aparelho desse tipo nas mãos de um James Bond — o inventor, de fato, sugere que um de seus objetivos é tornar seu invento barato o bastante para que esteja “disponível ao público consumidor e/ou agências governamentais”. Por outro lado, também não é difícil pensar em tal invento nas mãos de bandidos. Ainda mais diante da facilidade que celulares têm para entrar em penitenciárias, por exemplo. Se o aparelho telefônico sem fio, por si só, já é um risco nas mãos de bandidos, imaginem um que vem com arma de fogo! Mesmo dentro da realidade americana é um perigo: imaginem adolescentes violentos andando armados com celulares que disparam nas escolas…

Na prática, tudo o que Grove conseguiu foi criar mais um motivo para proibir celulares a bordo de aeronaves (e escolas).

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OBS: não estamos repetindo números nesta série. A centésima patente patética foi uma fraude (ainda que involuntária) de nossa parte. A centésima pra valer é esta que você acabou de ler. Para esclarecimentos, vide os comentários e a segunda nota ao fim da publicação anterior.

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