O mundo da Lua de John Wilkins

Você provavelmente nunca ouviu falar de John Wilkins — mas deveria. Nascido em 1614, ele completou seus estudos em Oxford, sendo Bachelor of Arts em 1631 e Master of Arts em 1634. Como muitos intelectuais de sua época, Wilkins estudou tanto Teologia quanto Filosofia Natural (equivalente a um apanhado de Física e Astronomia). Depois de formado, foi ordenado vigário, mas, descontente com a vida rural, passou a atuar como capelão de diversos nobres, entre os quais um sobrinho do rei Charles I (1600-1649). Casado com uma irmã do todo-poderoso Lord Protector Oliver Cromwell (1599-1658), Wilkins garantiu seu lugar na alta sociedade e tornou-se Mestre do Trinity College em Cambridge. Ele perderia o cargo após a Restauração e, enquanto tentava se recuperar, teve sua biblioteca e seu laboratório destruídos pelo Grande Incêndio de Londres em 1666. Dois anos mais tarde, ele seria nomeado Bispo de Chester. Mas durante a Guerra Civil Inglesa, Wilkins viveu no mundo da Lua…

Apesar de hoje em dia parecer mais um nobre e clérigo da igreja anglicana do século XVII, Wilkins foi muito famoso como cientista em seu tempo. Foi um dos fundadores da Royal Society. Sua obra mais lembrada é um livro de 1668, An Essay Towards a Real Character and a Philosophical Language [Um Ensaio sobre um Caráter Real e uma Linguagem Filosófica]. Nessa obra ambiciosa, Wilkins propunha uma linguagem universal para ser usada como auxílio à comunicação entre cientistas de diferentes países. O uso do latim, mesmo nos meios acadêmicos, começava a declinar e Wilkins propunha uma alternativa que poderia ser usada também por diplomatas e viajantes. [Nota: No século XX, Jorge Luis Borges analisaria a língua proposta por Wilkins num ensaio semificcional, “El idioma analítico de John Wilkins“. De fato, a magnum opus do cientista e religioso britânico é tão interessante que merece um post à parte]

Para facilitar ainda mais as coisas, Wilkins defendia uma padronização universal e racional dos diversos sistemas de pesos e medidas — antecipando em pouco mais de um século o sistema métrico. Seu padrão métrico, por exemplo, chamado simplesmente de Standard (Padrão) era incrivelmente próximo do metro que seria adotado como unidade de comprimento pela Assembleia Nacional Francesa a partir de 1791.

Outros feitos de Wilkins não são menos extraordinários. Ele possuía uma grande coleção de inventos, entre os quais a primeira pistola pneumática, uma “bexiga artificial” de borracha (que pode ser vista precursora do pneu) e algumas maravilhas de salão, como uma máquina de arco-íris artificiais e uma estátua que “falava” (através de um dos primeiros auto-falantes mecânicos). Infelizmente, a maior parte de sua coleção se perdeu no incêndio londrino, junto com obras sobre Filosofia, Matemática e Criptografia. Mas a ideia que mais deu destaque a John Wilkins foram seus planos para a primeira viagem à Lua.

Inspirado pela era de Grandes Navegações (que já estava chegando ao fim), Wilkins passou a considerar a possibilidade de viajar através do espaço. Seu primeiro livro, The Discovery of a World in the Moone [A Descoberta de um Mundo na Lua], foi escrito em 1638, quando ele ainda tinha 24 anos. Entre outras coisas, Wilkins levantava a possibilidade de que a Lua e outros planetas seriam habitados. Sua argumentação era bem direta: “Se a nossa Terra fosse um dos Planetas (como é, em relação a eles), então porque um dos outros Planetas não pode ser uma Terra?” Ele também reconhecia a grande dificuldade num eventual encontro entre humanos e habitantes do “planeta” mais próximo, a Lua. Wilkins foi o primeiro a chamar de Selenitas os possíveis habitantes da Lua. Dado que o livro foi escrito mais de meio século antes dos Principia Mathematica de Isaac Newton, suas ideias sobre gravidade e mecânica são baseadas em conceitos aristotélicos. Ainda assim, é uma obra ousada.

Wilkins afirmava que a gravidade era apenas uma espécie de magnetismo e que alcançar uma altitude superior a 20 milhas (32 km) seria o bastante para se livrar de tal atração. Evidentemente, ele não sabia do vácuo espacial e sugeria que a viagem fosse feita em uma verdadeira nave voadora: um barco a vela equipado com um par de asas (feitas com penas de gansos ou cisnes). Essas asas seriam ligadas por engrenagens a um tosco motor de combustão movido a pólvora. Uma ideia realmente explosiva. Seus planos eram minuciosos e incluiam um orçamento de aproximadamente 400 libras britânicas. Mesmo com a inflação de séculos, ainda seria uma barganha ingênua, perto dos custos do programa Apollo.

Curiosamente, Wilkins não reservava espaço para mantimentos em sua nau espacial. Ele argumentava que, livre da gravidade terrestre, a tripulação não sentiria mais fome por falta de influência gravitacional sobre o sistema digestivo. Ele também não reservava espaço para ar respirável, embora na época já fossem conhecidas as dificuldades respiratórias enfrentadas por montanhistas em altas altitudes. Para ele, isso acontecia não por rarefação do ar, mas porque os alpinistas não estariam acostumados com “o ar puro respirado pelos anjos.” Os exploradores de Wilkins teriam simplesmente que se adaptar à falta de ar do mesmo modo que os moradores dos altiplanos.

Em 1654, Wilkins tentou construir sua nave voadora em Oxford, com auxílio de um colega não menos entusiasmado, o jovem Robert Hooke (1635-1703). Dado a bagunça na Inglaterra durante aquela década de Guerra Civil e do Protetorado, é difícil saber se Wilkins realmente conseguiu algum progresso prático. Concretizada ou não, a nave de Wilkins parece ter impulsionado algumas descobertas importantes. Embora o conceito de gravidade de Newton ainda estivesse no futuro, Wilkins acabou descobrindo que gravidade e magnetismo não eram a mesma coisa. Mais tarde, as pesquisas sobre os gases do próprio Hooke e de Robert Boyle (1627-1691) ajudariam a confirmar a existência do vácuo interplanetário. Após se dar conta do quão difícil seria uma verdadeira viagem espacial, Wilkins fez o que faz um bom cientista: abandonou sua teoria (e seus sonhos) e voltou sua atenção para causas mais práticas e imediatas.

Em 1660, Wilkins participa da fundação de um “College for the Promoting of Physico-Mathematical Experimental Learning”, embrião da Royal Society. Em 1667, como secretário da Royal Society, Wilkins tentou (sem sucesso) levantar fundos para a criação de um College da instituição. Com isso, a ideia de uma “Universidade da Royal Society” caiu rapidamente no esquecimento e nunca se concretizou.

Apesar de sua associação com Cromwell e de ter perdido seu cargo eclesiástico no começo da Restauração ocorrida em 1660, John Wilkins era um defensor de políticas moderadas e acabaria caindo nas graças do rei Charles II (1630-1685). Como clérigo e Bispo de Chester (1668), ele atuaria mediando diferentes facções presbiterianas e apoiaria a anistia para diversos dissidentes da Igreja Anglicana, que haviam sido presos. Wilkins também remou contra outra tendência da época, defendendo uma reforma do código penal e por se opor à pena de morte.

Ao falecer, em 1672, Wilkins tinha apenas 58 anos. Três séculos mais tarde, não muito longe do campus de Oxford onde John Wilkins sonhou com uma viagem à Lua, os sinais das missões Apollo eram recebidos pelo Observatório de Jodrell Bank.

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