Chuteira bacteriana

Marinomonas promoryiensis em duas imagens obtidas por microscopia eletrônica. [Crédito: Dylan Atkins]
Marinomonas promoryiensis em duas imagens obtidas por microscopia eletrônica. [Crédito: Dylan Atkins]

Como uma bactéria consegue se prender no gelo dos lagos da Antártica? Resposta: com uma proteína 40 vezes maior que o normal, parecida com as travas de uma chuteira.

Gelo e neve não faltam no continente antártico, com seus milhões de quilômetros quadrados. Macia ou escorregadia demais, é difícil se prender a essa superfície gelada. Nós, por exemplo, precisamos de grandes botas com garras metálicas ou acessórios que se parecem com raquetes de tênis. Esses tipos de calçados não servem para micro-organimos (digamos que ficam um pouco folgados), então como eles se locomovem e se fixam na Antártica?

Não era essa a pergunta que os cientistas buscavam responder quando, há alguns anos, descobriram uma proteína chamada MpAFP na bactéria Marinomonas promoryiensis, encontrada no Lago Ace. Eles queriam saber como essa bactéria não congela nos lagos estratificados daquela região do continente antártico, onde vive normalmente. A princípio, pensava-se que a MpAFP fizesse parte do interior da Marinomonas e seria uma espécie de anticongelante.

A maior das proteínas

No entanto, uma pesquisa mais detalhada, feita por pesquisadores da Universidade Tecnológica de Eindhoven (Alemanha), Queen’s University (Canadá) e da Hebraica de Jerusalém mostrou que não é bem assim. A primeira coisa que essa equipe percebeu é que a MpAFP fica do lado de fora da bactéria antártica e, portanto, é uma adesina e não um anticongelante. Por isso, passaram a chamá-la MpIBP (de Ice-Binding Protein). A segunda coisa que perceberam é que essa é uma proteína enorme. O estudo foi liderado pelo Dr. Ilja Voets e pelo Professor Peter Davies, respectivamente das instituições alemã e canadense.

Em artigo na Science Advances, Voets et. al. descrevem a estrutura dessa proteína, que mede 600 nanômetros de comprimento. Para efeito de comparação, a maioria das proteínas mede apenas entre 2 e 15 nanômetros. Dado o tamanho excepcional, o processo de verificação da estrutura da MpIBP foi tão trabalhoso quanto andar no gelo.

Em pedaços

Normalmente, a estrutura de proteínas pode ser determinada por meio da difração de raios-x. Para isso, as proteínas são cristalizadas e expostas a raios-x de maneira parecida com a que ortopedistas fazem para determinar a estrutura óssea de um ser vivo. Às vezes o bicho é grande demais para caber no máquina de raio-x. Esse foi o caso da adesina da Marinomonas. “Cortamos a proteína em cinco pedaços e a estudamos usando diferentes métodos”, contou Voets em comunicado ao Phys.org. Além da difração de raios-x, também foram feitas análises com técnicas de espalhamento de raios-x e ressonância magnética nuclear. Depois, os resultados de cada exame foram juntados como as peças de um quebra-cabeça.

Dessa forma, os cientistas descobriram que cada parte da proteína tem uma função específica. Mas para que serve uma proteína tão grande? Sua função é semelhante às travas metálicas de uma bota alpina: ajudar a prender e tracionar. No caso da Marinomonas, sua chuteira serve em dois campos distintos — a bactéria é capaz de prender-se tanto à superfície inferior das placas de gelo que se formam no mar quanto nas diatomáceas da espécie C. neogracile, outro organismo microscópico capaz de fazer fotossíntese. Nesse caso, forma-se uma simbiose entre a bactéria e a diatomácea, permitindo que ambas sobrevivam no ambiente inóspito dos estratificados lagos antárticos.

Resumo esquemático do sistema de ancoragem da Marinomonas, com a proteína descrita assinalada em azul e a diatomácea em verde. Note que a mesma estrutura é capaz de se ligar ao gelo e ao micro-organismo fotossintetizante. [Fig. 8 do artigo citado]
Resumo esquemático do sistema de ancoragem da Marinomonas, com a proteína MpIBP assinalada em azul e a diatomácea em verde. Note que a mesma estrutura é capaz de se ligar ao gelo e ao micro-organismo fotossintetizante. [Fig. 8 do artigo citado]

Mais do que uma descoberta curiosa sobre uma proteína excepcional de um micro-organismo inofensivo, a pesquisa de Voets e seus colegas pode ter aplicações na medicina. Embora não tenham adesinas tão grandes, bactérias patogênicas se ligam às nossas células pelo mesmo mecanismo da Marinomonas. Agora que sabemos como isso funciona, podemos encontrar meios de quebrar ou bloquear essas adesinas. É como se agora pudéssemos dar um carrinho que tirasse as chuteiras das bactérias que nos agridem.

Referência

rb2_large_gray25Shuaiqi Guo et. al. Structure of a 1.5-MDa adhesin that binds its Antarctic bacterium to diatoms and ice [Estrutura de uma adesina de 1,5 MDa que liga sua bactéria antártica a diatomáceas e gelo]. Science Advances 09 Aug 2017: Vol. 3, no. 8, e1701440. DOI:10.1126/sciadv.1701440

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