Como uma criança aprende a falar? Em que condições se dá a aquisição da linguagem?
Estas questões são tratadas no filme O enigma de Kaspar Hauser, que apresenta um caso extremo e historicamente documentado de uma criança abandonada que aprende a falar tardiamente e que é analisado por Aline Pires, mestranda em Linguística.
O filme O enigma de Kaspar Hauser trata sobre a figura enigmática de Kaspar Hauser, uma criança abandonada em Nuremberg, Alemanha, no século XIX. O filme, de 1974, é dirigido pelo cineasta alemão Werner Herzog.
O que se diz sobre a história real de Kaspar é que, aos seis meses de idade, a criança foi deixada por sua mãe viúva com uma família. Aos quatro anos, a família passou a deixá-lo acorrentado em um porão sem contato com outras pessoas. Em 1828, quando tinha dezesseis anos, Kaspar foi deixado em uma praça e, com ele, foi encontrada uma carta que explicava sua história.
Quando foi encontrado, Kaspar falava cerca de seis palavras, depois de pouco mais de um ano, conseguia já construir enunciados complexos como qualquer outro adulto.
O caso de Kaspar nos permite destacar algumas questões linguísticas, como, por exemplo, o modo como se deu a aquisição da linguagem pelo menino.
O meio em que a criança vive tem um papel importante no processo de aquisição, pois são as experiências linguísticas fornecidas pelo meio que acionam o dispositivo responsável pela aquisição da língua.
De acordo com o filme, Kaspar viveu os primeiros anos de sua vida aprisionado, sem contato com o mundo exterior; mesmo o contato que o protagonista tinha com o personagem que se dizia seu pai era bastante limitado, como mostram as primeiras cenas do filme. O suposto pai quase não conversava com o filho. Desse modo, podemos dizer que o meio em que Kaspar viveu durante seus primeiros anos de vida não era propício para a aquisição de uma língua.
Ainda com relação a essa questão, podemos nos questionar como, mesmo depois de ter passado a viver em sociedade, Kaspar continuou tendo dificuldades com algumas questões de linguagem.
O filme também mostra que Kaspar tinha dificuldade para criar abstrações, como mostra o seguinte trecho retirado do filme:
Hauser: Não entendo, só um homem muito grande poderia ter construído isso (ele olha para a torre). Eu gostaria de conhecê-lo.
Tutor: Não é preciso ser tão grande para construí-la, pois existem andaimes. Entenderá quando o levar a uma construção. Você morou nesta torre, atrás daquela janela. Não se lembra?
Hauser: Isso não é possível, pois só tem alguns passos de largura. Quando estou dentro do quarto e olho para a direita, a esquerda, a frente e para trás, só enxergo o quarto. Quando olho para torre e depois me viro a torre desaparece, então o quarto é maior que a torre.
Se assumirmos que o homem nasce com uma capacidade inata para adquirir uma língua e que os significados estão fortemente relacionados com a língua, como explicaríamos a dificuldade que Kaspar tem para construir significados?
A aquisição tardia talvez nos possibilite explicações de algumas características de Kaspar, como estas citadas acima. Não podemos dizer que Kaspar não adquiriu uma língua, pois ele de fato adquiriu, ele apenas tinha dificuldade com alguns aspectos.
Na aquisição da linguagem, a janela de interação entre o que é inato e a influência do meio se dá no período crítico. Este é um período de tempo do desenvolvimento humano em que os aspectos inatos são suscetíveis a influência do ambiente, e essa influência é necessária para que o indivíduo possa se desenvolver normalmente.
Provavelmente, o fato de Kaspar ter sido isolado apenas aos quatro anos e não desde seus primeiros dias de vida, nos forneça alguma resposta. Possivelmente, antes de ser isolado, Kaspar já tivesse adquirido a competência linguística de uma criança de sua idade. Esse período pode ser a explicação para o sucesso de Kaspar no desenvolvimento da capacidade da linguagem quando foi encontrado. Mesmo uma curta exposição a uma língua, é suficiente para fornecer uma base para a aquisição, ainda que seja em um período tardio.
Considerando que Kaspar apresenta dificuldades com várias questões relacionadas a aquisição da língua, pode-se pensar que a janela para a aquisição foi aberta no momento ideal – nos primeiros anos de vida de Kaspar – entretanto, esse período não foi suficiente para que ele pudesse desenvolver normalmente sua língua materna.
Esse assunto é muito interessante! No livro Vendo Vozes, do Oliver Sacks, ele discute justamente esta questão de que é possível que a linguagem não seja ""apenas"" uma ferramenta de comunicação, mas seja também um modulador neurológico para que o indivíduo possa construir noções de abstração. Talvez a alfabetização tardia de Kaspar tenha permitido que ele pudesse se comunicar, porém como ocorreu fora do período crítico, ele teria se tornado incapaz de assimilar/processar conceitos complexos como tempo e relações espaciais. Desde que li o livro quero aprender mais sobre estas questões linguísticas, fico muito feliz por ter encontrado o blog de vocês! Parabéns pela iniciativa, e sucesso na jornada.
Oi Carol, embora não seja o autor do post, acabei navegando pelos comentários para responder o que eu tenho capacidade de responder. Um deles foi o comentário do André abaixo, em que falo algo que se relaciona ao que você fala. Não chego ao ponto de a linguagem se rum "organizador de ideias" (não tenho posição definida sobre o assunto embora tenda a acreditar nisso), mas falo bastante da parte biológica da coisa.
Obrigado pelo comentário.
Interessante que acharam uma menina vivendo com macacos na Índia. Claro que precisa verificar mais a fundo esta história, mas é mais uma prova de que nossas características civilizatórios, incluindo a linguagem, é uma construção social. Agora precisa acompanhar este caso para ver se ela consegue desenvolver adequadamente a linguagem humana.
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2017/04/07/policia-na-india-tenta-desvendar-misterio-de-menina-encontrada-vivendo-com-macacos.htm
Vou responder pela Fernanda, apesar de não saber qual a posição dela sobre o assunto rs.
Mas antes vou fazer uma rápida distinção terminológica que usamos na linguística:
Usamos o termo "Comunicação" como um termo geral para troca de informações, independente do emissor, receptor, código, mensagem etc. Linguagem (em linguística) é reservado para a capacidade de usar línguas. E línguas são as línguas que conhecemos. Nesse sentido, a não ser que encontremos alguma espécie alienígena que consiga simular nossas línguas ou utilizar línguas próprias (A Chegada?) ou criemos um algoritmo que faça um computador gerar linguagem da mesma forma que humanos, o termo linguagem na área acaba sendo utilizado somente para humanos.
Não estou reclamando do uso dos termos, mas acho que explicitar isso ajuda a entender bastante coisa em linguística que acabaram ficando confusas como, por exemplo, nos podcasts que escutei que tentam discutir qualquer coisa sobre linguística. E é esta terminologia que vou usar em meu comentário também.
Existem dezenas de casos de "crianças lobo". Um bem conhecido é o da Genie, pesquisada pela Susan Curtiss (até pouco tempo era possível encontrar o documentário dividido em duas partes no youtube. Depois começaram a retirar esses vídeos e não sei se ainda está por lá. Se for interessante posso te passar depois).
O resultado é sempre o mesmo: eles até conseguem aprender a se comunicar, mas a capacidade de "juntar peças" (linguagem) é extremamente limitada e comparada a dos experimentos em que tentamos ensinar língua de sinais aos primatas. Então, a capacidade de usar uma língua de forma plena se torna impossível.
Daí tiramos dois pontos: O primeiro é que existe uma base comum entre a comunicação primata e a linguagem (o que, ao contrário do que falam por aí, não é negado por nenhum linguista. A discussão é a forma como isso evoluiu - de forma gradual ou exaptada).
O segundo é essa questão do período crítico que Fernanda fala no texto. A linguagem não é um sentido como a visão, audição, tato, mas utiliza esses meios. Então, no mínimo, ela está sujeita aos períodos críticos destes sentidos (o que justifica a corrida para que implantes cocleares em crianças seja feita até os dois anos), mas também parece ter uma idade máxima para que uma criança use as conexões que permitem linguagem (a capacidade) no cérebro. Isso permite que as crianças que não tiveram implante coclear sinalizem (se não tiver nenhuma repressão do meio).
Com isso eu não quero dizer que a linguagem não é social. É que a própria parte biológica da coisa exige que exista uma exposição ao social durante um determinado período. Passando esse período, conseguimos até adquirir atitudes sociais e usar "o que resta" de natureza da "comunicação humana" para usar uma parte mínima de uma língua, mas da mesma forma como primatas utilizam línguas de sinais quando ensinadas.
E de fato, pode ser que cada caso seja um caso, então temos mesmo que acompanhar este e ver como será a evolução destas capacidades nessa menina.
Obrigado pelo comentário e pelo link.
Eu disse que ia "repsonder pela Fernanda" mas foi Aline que postou este texto #mybad