O caso do Pirahã

 O que o estudo das línguas indígenas pode nos dizer sobre o funcionamento das línguas em geral?

Conhecer um caso emblemático de polêmicas entre linguistas sobre o funcionamento das línguas indígenas e sua descrição nos ajuda a compreender como os estudos linguísticos avançam a partir da exploração de diversas línguas no mundo e seu confronto com os modelos de análise gramatical disponíveis.

Uma dessas polêmicas, que ficou famosa no campo da Linguística, é apresentada por Fabio Mesquita na sua análise do filme The Grammar of Happines.

O documentário The Grammar of Happiness (1) mostra o trabalho de campo do linguista americano Daniel Everett sobre a língua e a cultura dos pirahãs, um povo indígena que habita as margens do rio Maici, no estado do Amazonas. O trabalho de Everett, que vem sendo elaborado há mais de trinta anos, traz muitos dados interessantes tanto para análise antropológica quanto linguística. A história do linguista em si já constitui uma narrativa curiosa. Sua motivação inicial, na década de 1970, era de documentar a língua pirahã com fins religiosos, ou seja, ele pretendia traduzir a bíblia protestante para esta que é uma das muitas línguas do mundo que não possuem forma escrita. Assim, ele poderia posteriormente convertê-los ao cristianismo. No entanto, o desfecho da empreitada foi exatamente o oposto. Everett relata que nunca conseguiu converter uma pessoa sequer, e ainda começou a questionar sua própria fé, quando, segundo ele, percebeu que aquelas pessoas não necessitavam de salvação alguma – pelo contrário, eram felizes e perfeitamente adaptadas ao seu ambiente e estilo de vida comunitário.

Apesar de todas as questões religiosas e sociais do trabalho de Everett serem interessantíssimas, neste texto falaremos especificamente de linguagem. Para quem estiver interessado na história detalhada descrevendo o período em que o linguista esteve com os pirahãs, recomendo o livro do próprio Everett chamado Don’t sleep, there are snakes: Life and language in the amazonian jungle (2), e também o site com suas publicações, clicando aqui.

Alguns dados sobre a língua pirahã são realmente peculiares. Segundo o autor, ela teria o menor inventário de sons do mundo: apenas sete consoantes e três vogais, no caso das mulheres (homens possuem uma consoante a mais). Os falantes conseguem, através da rica prosódia e alto grau de entendimento mútuo, fazer com que sentenças inteiras possam ser assobiadas ao invés de faladas, recurso que é usado como estratégia de caça no meio da floresta, por exemplo. Outras observações que chamam a atenção são a ausência de marcação morfológica de número (não há marcas de contraste entre singular, dual ou plural), a ausência de numerais, e a ausência de quantificadores como todo, algum e cada, entre outros. O pirahã seria, segundo Everett, a única língua do mundo sem termos específicos para nomear cores (3).

Todas estas descrições já representam um material formidável de estudo lingüístico. No entanto, algumas das afirmações de Everett sobre a sintaxe desta língua acabaram se tornando o centro de uma grande controvérsia entre linguistas de todo o mundo, especialmente entre os de cunho formalista. A disputa tem dois aspectos interdependentes: um empírico e outro teórico.

A afirmação empírica mais controversa de Everett é que a língua pirahã não apresentaria estruturas encaixadas, um recurso muito visível na maioria absoluta das línguas do mundo. Um exemplo de encaixamento é dado na sentença “eu disse que o homem chegou”, ou seja, a sentença “(que) o homem chegou” estaria encaixada na sentença “eu disse”. Everett não afirma que não seria possível dizer algo com significado equivalente ao da sentença em português mencionada acima, mas sim que as expressões linguísticas do pirahã não apresentariam as marcas características de encaixamento próprias das outras línguas. A hipótese do autor é que as descrições linguísticas de eventos em pirahã seriam organizadas em sentenças distintas, um fenômeno conhecido como parataxe (4). Em outras palavras, a sentença exemplificada acima poderia ser estruturada aproximadamente como “eu disse, o homem chegou”.

No entanto, foram as afirmações teóricas de Everett sobre recursão que fizeram a disputa acadêmica ter se tornado tão intensa. Em um de seus artigos (5), Everett afirma que suas descobertas contradizem uma das assunções fundamentais do linguista mais citado da atualidade, o também americano Noam Chomsky. No filme, Everett conta que a partir do momento em que suas afirmações tornaram-se populares no meio acadêmico e fora dele, ele passou a receber críticas ferozes e criou inimizades entre linguistas e outros estudiosos.

Chomsky, um forte proponente da descrição da mente em termos computacionais, foi um dos responsáveis pela visão moderna de que uma língua não pode ser tratada como um conjunto finito de sentenças. Algum componente da linguagem deve ser recursivo, ou seja, precisa ser responsável pelo fato de que os falantes produzam sentenças inéditas o tempo todo. Todos os modelos propostos por ele desde a década de 1950 colocam a recursão sintática como um elemento crucial, sendo que recentemente ele propôs como hipótese de trabalho, junto com colegas biólogos, que talvez esta recursão seja a única distinção evolucionária entre os modelos de linguagem humana e os de comunicação animal (5).

Embora a proposta de Chomsky diga respeito a este aspecto criativo da linguagem humana, ou seja, a possibilidade de criação de infinitas sentenças, Everett tenta demonstrar que não haveria indícios desta recursão em alguns aspectos da sintaxe do pirahã, como o encaixamento de sentenças ou sintagmas, e, assim, a concepção chomskyana de linguagem enfrentaria problemas de fundamentação. Mas é importante notar que o debate, colocado neste termos, apresenta uma série de ruídos terminológicos que pode confundir tanto leigos quanto especialistas. Recursão é um conceito próprio da matemática e das ciências computacionais, que pode ser utilizado para descrever tanto mecanismos mentais como encaixamento em línguas naturais. Boa parte dos atuais debatedores ainda discute do que trata a recursão proposta por Chomsky.

Esta é a parte saudável da controvérsia, mas é uma pena que nem sempre as disputas acadêmicas estejam confinadas à busca do conhecimento em si. Embora a vida dos pirahãs possa ser considerada idílica, como é sugerido no filme, as discussões geradas pelas descobertas sobre sua língua e cultura apresentam as características de acrimoniosa polarização próprias das controvérsias humanas.

REFERÊNCIAS
  1. THE grammar of happiness. Direção: Michael O’Neil, Randall Wood. Produção: Michael O’Neil, Chris Hilton. Roteiro: Michael O’Neil, Christopher Thorburn. Narração: Linda Cropper. Sydney: Esssential Media and Entertainment, 2012. 1 DVD (55 min), color. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt2145426/.
  2. EVERETT, Daniel. Don’t sleep, there are snakes: Life and language in the amazonian jungle. New York: Pantheon Books, 2008. Disponível em: https://books.google.com.br/books/about/Don_t_Sleep_There_are_Snakes.html?id=iQV9l-s7y2IC&source=kp_cover&redir_esc=y.
  3. EVERETT, Daniel. Cultural constraints on grammar and cognition in Pirahã. Current Anthropology, v. 46, n. 4, 2005, p. 621-646. Disponível em: http://philpapers.org/rec/EVECCO.
  4. EVERETT, Daniel. You drink. You drive. You go to jail. Where’s recursion?, 2010. Disponível em <http://ling.auf.net/lingbuzz/001141>.
  5. HAUSER, Marc D.; CHOMSKY, Noam; FITCH, W. Tecumseh. The Faculty of Language: What Is It, Who Has It, and How Did It Evolve? Science, v. 298, n. 5598, 2002, p. 1569-1579. Disponível em: http://science.sciencemag.org/content/298/5598/1569.

2 Comentários

  1. Interessante notar que o pesquisador, às vezes, tenta fazer o papel de doutrinador, anulando seu objeto de estudo.

    Foi uma grata surpresa notar que os pirahãs não se deixaram converter e converteram o pesquisador.

  2. Muito bacana seu texto e a temática. Everett é um sujeito bastante agradável de interagir e, pessoalmente, prefiro a perspectiva dele sobre a linguagem num âmbito geral.
    A história me lembrou de outro documentário, esse voltado para a Antropologia e a constante "guerra de tribos" que foi retratada no filme. Escrevi umas palavras breves sobre o documentário, mas acho que vale mais a dica do que meu texto (http://bit.ly/2tq7N15)

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