Trote universitário: discussão para além das amizades

O trote universitário, realizado nas faculdades públicas no Brasil é uma pauta que me faz refletir desde 2013. Esta é a época que ingressei em uma universidade popularmente conhecida pelos trotes violentos. Ao ingressar, fazia o que é usualmente entendido como o tranquilo pelos meus colegas. Atos usuais e rotineiros? Engolir comida mastigada por várias pessoas, beber cachaça ajoelhado e ter cabelo cortado e pintado de forma vexatória.

Embora tenha tentado jogar o jogo, pois o lugar era totalmente novo e eu queria me enturmar, os trotes logo chegaram ao nível de violência física, com pontapés e tapas. Assim que possível, me afastei o máximo possível dessa prática, sempre me escondendo dos veteranos “barra pesada”. 2013 foi extremamente conturbado, e o trote foi uma marca gritante em minha vivência. Se não tivesse encontrado pessoas que me acolheram de forma humana, teria desistido da universidade.

Ainda que meu relato breve tenha envolvimento pessoal e fale sobre questões das relações pessoais entre os alunos de uma universidade, precisamos entender o trote para além disso. Enquanto me graduava, sempre que participava em discussões sobre o trote, a argumentação girava em torno das amizades e da permanência na universidade. Isso inclui o debate de que as pessoas que não aceitavam o trote ficavam sozinhas, isoladas e não conseguiriam seguir a faculdade. Nesse sentido, o argumento que recebia em retorno era “mas olha a quantidade de amigos que eu fiz, tudo graças ao trote”. O debate em torno dessa questão acaba utilizando questões pessoais e pouco analíticas, sempre referindo-se à própria vivência. Por isso, acredito que apesar de gritante e problemática a questão do isolamento e da solidão que o trote pode causar e que seja extremamente necessário se discutir isso, proponho uma nova reflexão.

Foucault diz que “se o poder tivesse função apenas de oprimir, ele já teria acabado”¹. Como podemos olhar isso sob a ótica do trote? Talvez como “se o trote tivesse função apenas de humilhar, não teria a força e a história que apresenta”. O poder, entre as relações sociais e no trote, produz algo além da opressão. Uma vez que produz formas de convívio, de perceber as amizades, e de tratar o calouro do ano seguinte. E tudo isso, naturalizado pela historicidade dessa prática, que é o cerne do problema que quero discutir.

É necessário entender que as relações expressas através de comportamentos culturais são frutos de questões materiais históricas humanas e não são geneticamente imutáveis em nós. O trote é o que conhecemos hoje por que surgiu na interação humana como um rito de passagem. E assim foi se perpetuando como conhecemos. Dessas relações de submissão, expectativas de pertencimento a grupos e  necessidades de perpetuar as práticas no ano seguinte, surge uma forma de interpretação do mundo. Assim, naturaliza-se a desumanização do outro, a eterna submissão aos superiores, que colaboram na manutenção de desigualdades.

Como resultado, o trote é um dos meios que mantém, nas relações dos discentes universitários, atos racistas, machistas e homofóbicos. E essa lógica é perpetuada na formação do indivíduo, que preserva a lógica do trote. Ademais, serve também como forma de desenvolver comportamentos necessários para a lógica mercadológica e neoliberal. Consequentemente, o mesmo universitário que tem em sua formação pessoal o trote e sua lógica, poderá ser um médico que não entende a humanidade de seu paciente. Bem como um professor que esquece da humanidade de seus alunos.

Portanto, o trote segue produzindo uma cultura maior do que apenas uma brincadeira exagerada. Tudo isso com um respaldo dos próprios alunos e dos docentes. Além da omissão desses problemas pelas diretorias das faculdades. Dessa maneira, precisamos ultrapassar as questões de se conseguir um grupo de amigos na universidade. Ao buscar uma universidade democrática e inclusiva, com cotas raciais, que aceite os diferentes gêneros e sexualidades, que seu objetivo seja a compreensão e a tentativa de mudança de um paradigma histórico, social e econômico consolidado no Brasil. Além do fim do trote, precisamos também de uma luta ativa contra esses problemas apontados acima. O trote, por si só, não criou tais problemas, mas definitivamente é um dos principais instrumentos de conservação deles no meio acadêmico e fora dele.

Para saber mais:

¹Michel Foucault, Microfísica do Poder. Capítulo: Verdade e poder

Renato Janine Ribeiro. O trote como sintoma: a dor de lidar com a dor alheia.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32831999000200020

Luciana Maria Lunardi Campos. Em uma universidade pública… calouros… e trote…

https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/17417/S1414-32831999000200016.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Primeiro texto da série sobre trote, em que é discutido principalmente a sua historicidade:

Trote e sua história no Brasil: da idade média, pela ditadura e hoje

Sobre Matheus Naville Gutierrez 12 Artigos
Mestre e doutorando em ensino de Ciências e Matemática pela UNICAMP e licenciado em Ciências Biológicas pela UNESP. Sempre dialogando sobre educação, tecnologia, ensino superior, cultura e algumas aleatoriedades que podem pintar por ai.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*