Quem decide sobre o aborto?

No primeiro e segundo textos desta série, falamos um pouco sobre os aspectos culturais e históricos acerca do aborto. Também abordamos sobre os espaços ocupados por homens e mulheres em nossa sociedade. Buscamos relacionar estes temas ao corpo da mulher cisgênero, homens transgênero e outros gêneros possíveis (o que e de quem é). O post de hoje abordará um pouco sobre quem toma a decisão acerca do aborto, historicamente.

Uma observação, sobre papéis de gênero

Assim como hoje em nosso país, nem sempre o aborto foi considerado responsabilidade da mulher aqui e em várias partes do mundo. É somente na modernidade que práticas contraceptivas abortivas e, também, infanticidas são vinculadas às mulheres. E aqui, tratando historicamente, nos referimos às mulheres [cisgênero] exatamente por questões de gênero serem tratadas de maneira linear como sexo biológico.

Quanto à paternidade (cisgênero), ainda hoje, o abandono é questionado, especialmente nas relações de afetividade. Restando muitas vezes a responsabilidade do homem à prática de pagar a pensão. Nesse sentido específico, o lugar do homem cisgênero ainda é visto como de provedor. Por outro lado, caberia às mulheres o afeto, criação e educação dos filhos. Assim, em diferentes culturas, o aborto e o infanticídio são autorizados e vivenciados pelo costume, podendo ter amparo coletivo. Também há diferentes visões acerca do quanto são considerados crimes passíveis de punição. Ao que se relacionam estas noções? Especialmente a definição do que é ser humano e de quando começa a vida. Ou, também, aqueles sujeitos que não se pretende investir (como seres humanos). Falaremos sobre isso mais para frente, neste blog…

Um pouco sobre a história do aborto e papéis sociais de paternidade e maternidade [cisgênero]

Na Antigüidade e na sociedade medieval, por exemplo, era papel do pai decidir se aceitaria ou recusaria a criança. Já na Idade Média, essa passou a ser uma atribuição materna. Deste modo, as mulheres, esses seres tão “próximos da natureza”, tornaram-se as únicas responsáveis pelos seus filhos. Aqui, já se denota à mulher o papel de instinto. Como se nosso corpo, em sua biologia, fosse constituída a um único fim — parir; pelo bem delas, da família e da sociedade…

Uma pergunta presente nos discursos médicos, no Brasil do início do século XX, dizia respeito aos motivos pelos quais uma mulher abandonaria seu destino natural. Isto é, o que faria a mulher a cometer atrocidades (aborto e infanticídio). Dessa maneira, questionava-se como algo tão forte, natural da mulher, como o seu amor incondicional a seus filhos, poderia corromper-se. Esse discurso levava a explicações relacionadas aos avanços da civilização. Isto geraria o esquecimento, por parte das mulheres, de seus deveres naturais de mãe e esposa. Assim, tornava-se dever do médico explicar e propor saídas para aquelas atitudes femininas anti-naturais.

Qual a modificação nesta relação?

Primeiramente, É importante falar que mesmo o homem decidindo não criar, ou mesmo prover financeiramente, é a mulher que tornava-se responsabilizada por qualquer questão vinculada aos filhos. Antes de mais nada, aqueles comportamentos femininos que fugiam à natureza da mulher, eram vistos como perigosos. Bem como mulheres que praticavam o aborto ou lutavam por sua liberação eram vistas como desvios a serem tratados. Isto por negar a “essência” da sua natureza, para suprir futilidades geradas pela vida civilizada que levavam.

Em outras ocasiões, as mulheres recorriam ao aborto por encontrarem-se numa situação imoral perante a sociedade. Ou seja, sua gravidez não era fruto de um casamento. Bem como, as reivindicações ao direito de abortar por não possuírem condições financeiras para criar mais um filho. Nesse caso, muitos tentavam convencê-las a não retirar o feto, não privar a nação de mais um cidadão. Uma vez que já naquela época lutava-se por uma assistência do governo para que essas famílias não desistissem de sua prole.

Gravidez como bem social

Em qualquer situação, a prática do aborto e incentivos nesse sentido, eram vistos como golpe nos fundamentos da base da sociedade. Configura-se, assim, a gravidez como um bem social, um ato em prol da pátria e não uma escolha privada, particular. O aborto, assim, era nocivo por ser maléfico à sociedade, uma vez que usurpa-se da nação um indivíduo, impedindo ou restringindo o progresso e colocando em risco a soberania da nação.

Mas não só de discursos de soberania da nação (e, portanto, questões políticas) vivia a questão do aborto. Como assim? Em relação à medicina, havia divergência em relação ao que era considerado correto especificamente sobre o aborto terapêutico. Este é definido quando há má formação que impede a vida do feto e/ou recém nascido e, também, quando à risco de vida para a mãe. Ao fim do século XIX, esta decisão  tinha atravessamentos religiosos e, muitas vezes, havia necessidade do debate coletivo entre médicos.

Assim, os embates travados pela autorização do aborto, principalmente em situações de risco de vida da gestante, não se limitaram às mulheres ou, posteriormente, aos grupos feministas. Ao contrário, alguns médicos também participaram das discussões em apoio ao abortamento. Nesse sentido, foi gerada uma ampla discussão acerca da gravidez e dos casos possíveis de aborto, na perspectiva médica. E é deste modo que o corpo da mulher vira um objeto específico da medicina, criando-se condições para o estabelecimento de áreas médicas, como a ginecologia e a obstetrícia. Buscava-se, dessa forma, a legitimação de um regime de verdades em detrimento de outros saberes, como o das parteiras, religiosos, juristas, etc.

O aborto não é sobre a vida…

Como já discorri antes, os debates em torno do aborto vincularam-se, também, aos discursos políticos e econômicos voltados para a constituição de uma pátria forte e desenvolvida a partir de um povo numeroso e saudável. Assim, as discussões articularam discursos médicos direcionados tanto ao corpo da mulher grávida, quanto ao controle do aborto e da natalidade através de campanhas voltadas ao gerenciamento da população.

O aborto terapêutico visto como uma cura para alguns males causados pela gestação, gradativamente vai sendo aceito na sociedade. A primeira situação que entra em debate, tanto jurídico quanto médico, diz respeito à saúde da mulher. Ou seja, quando a mãe corre risco de vida, essa prática passa a ser discutida e vista como uma ação viável e não condenável.

Qual a razão desta discussão ser pertinente?

Penso ser relevante apontar que vários apontamentos históricos trazidos aqui ainda encontram respaldo e legitimidade para que o corpo – e o útero – da mulher sigam sendo alvo de julgamentos e ponto de debate social. Assim, nosso corpo e nosso útero ocupam um lugar social que é o da maternidade como destino. Sendo o nosso corpo o lugar de responsabilidade social acerca disso, exime-se o homem da tarefa de cuidar e ocupar um espaço de paternidade responsável – afetiva e financeiramente.

Portanto, ao termos colocado nas mulheres a responsabilização sobre a prole e, mais ainda, como um ato natural, também legitimamos todas as tarefas a elas. Quem nunca ouviu (e falou) em caso de acidentes ou infortúnios diversos – mesmo quando as crianças estão com o pai – a pergunta: onde está a mãe destas crianças? Mesmo quando sob a tutela dos pais, é a mulher o objeto de questionamento.

Da mesma forma, tratamos o aborto como um ato destituído de legitimidade e responsabilizamos exclusivamente a mulher que o executa. Em suma, o filho, desta maneira, é dela – e somente dela. A culpa, portanto, também.

Por fim, questionamos: E quem legisla? E o que é legislado? No próximo post veremos um pouco sobre as questões legais atuais em nosso país. Tanto em relação aos riscos de vida da mãe, quanto às violências sexuais. Posteriormente também falaremos sobre essa ideia do corpo como posse quando decidimos não filhos! Aguarde as novas postagens 😉

Para saber mais

Anjos, KF, Santos, VC, Souzas, R, & Eugênio, BG (2013) Aborto e saúde pública no Brasil: reflexões sob a perspectiva dos direitos humanosSaúde em Debate37(98), 504-515. 

Matos, MIS de, e Soihet, R (org) (2003) O corpo feminino em debate, São Paulo: Editora UNESP.

Pedro, JM (2003) As representações do corpo feminino nas práticas contraceptivas, abortivas e no infanticídio — século XX In: Matos, MIS de, e Soihet, R (org) O corpo feminino em debate, São Paulo: Editora UNESP, 2003. p. 157-198.

Rohen, F (2003) A arte de enganar a natureza: contracepção, aborto e infanticídio no início do século XX, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003 (Coleção História e Saúde).

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Postagens anteriores sobre o tema:

O útero é objeto público?

Que lugares ocupamos nas famílias?

Observação: Texto atualizado em Julho de 2022, buscando corrigir a cisnormatividade presente na produção original. Dessa forma, se ainda houver algo errado, peço desculpas de antemão e procurarei corrigir.

 
Sobre Ana Arnt 55 Artigos
Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB) da UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e... ciência! ;-)

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