O Plano Safra da Agricultura Familiar e o PRONAF

Pixbay( Créditos: NatuerlichGut ); Wikimedia Commons (Créditos: DiegoMoreiraProf)

Na quarta-feira, dia 28/06, o Governo Federal anunciou o volume de crédito estabelecido para o Pronaf na safra 2023/2024. Com o slogan “O Plano Safra da Agricultura Familiar voltou”, foi anunciado o maior valor da série do Programa, com R$ 71,6 bilhões.

A cerimônia iniciou com falas animadas dos representantes de movimentos sociais e sindicados. Aristides Veras, da CONTAG, afirmou que

“Não será o que desejamos. Não será o ideal. Mas acreditamos que foi o possível para o momento em que estamos vivendo. Vamos avançar em termos de recursos. As áreas com mais dificuldades, como nordeste e norte, terão juros menores”.

Maria Josana, da CONTRAF, disse ser um dia de celebração, “volta do Plano Safra dedicado à Agricultura Familiar”.

O Ministro Paulo Teixeira reforçou o tom animado das falas anteriores e disse:

“O Plano Safra da Agricultura Familiar voltou. E ele será decisivo para a produção de alimentos saudáveis, para a inclusão produtiva rural, e para fortalecer a capacidade produtiva da agricultura familiar”.

A despeito de entendermos que essas falas podem fazer sentido do ponto de vista do arranjo político do atual governo, incluindo suas relações com movimentos sociais e sindicatos, do ponto de vista das análises científicas, essas falas merecem ressalvas. O objetivo desse artigo é fazer essas ressalvas, mostrando as limitações do PRONAF em atender as necessidades dos diferentes segmentos que compõem a agricultura familiar brasileira. Faremos isso utilizando dados e, sobretudo, artigos acadêmicos. Esses artigos foram pesquisados nos anais do Congresso SOBER (Sociedade Brasileira de Economia, Administração e Sociologia Rural) e na Revista de Economia e Sociologia Rural, publicados nos últimos 5 anos. No total foram examinados 6 artigos, dos quais abordaremos 5[1].

O PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) foi instituído em 1996, 10 anos antes da aprovação da Lei 11.326/2006, a chamada Lei da Agricultura Familiar. Desde então, o Programa tem sido uma das principais políticas voltadas a esse grupo social. É importante ressaltar que não está listado no PRONAF, nem em sua lei originária de 1996 nem no Manual do Crédito Rural atual do Banco Central, nenhum objetivo de inclusão produtiva ou redução das desigualdades no campo.

A despeito disso, as distintas concentrações dos recursos do PRONAF tem causado uma série de críticas e debates. Uma dessas críticas diz respeito à concentração regional dos valores totais concedidos. Do total de agricultores familiares no Brasil, o Nordeste concentra 47,18%, o Sul 17,08% e o Sudeste 17,68%, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017. Quanto aos contratos do PRONAF, a região Sul concentra 29,64% do total de contratos no país em 2022, enquanto o Nordeste concentra 50,46% e o Sudeste 12,77%, segundo a Matriz do Crédito Rural do Banco Central do Brasil. Contudo, a concentração é ainda mais relevante no que se refere à distribuição do valor total dos recursos, com o Sul concentrando 59,22%, o Sudeste 13,95% e o Nordeste apenas 12,33%. Essa grande concentração de volume de recursos no Sul em contrapartida a uma menor concentração dos contratos nesse estado faz com que o valor médio por contrato no Sul seja de R$ 68.317,61. Enquanto que, na região Nordeste, devido ao elevado percentual no número de contratos combinado com baixa participação no valor total, o valor médio por contrato é de R$ 8.357,93.

A outra crítica se refere à concentração dos créditos concedidos em alguns poucos produtos específicos, e ligados à grande indústria alimentícia ou à exportações. No que ser refere ao crédito de custeio para lavoura, a soja lidera o valor concedido, recebendo, em 2022, 39,78% do total. Em segundo lugar aparece o milho, com 25,24%. Apenas duas culturas, soja e milho, concentram 65,03% do total. Os demais 44,97% são distribuídos entre as 129 demais culturas financiadas em custeio de lavouras. Trigo aparece em terceiro, com 11,69%; café em quarto, com 9,10%; cebola em quinto, com 2,31%; arroz em sexto, com 1,86%; e feijão em sétimo, com 1,54%. Arroz e feijão juntos recebem apenas 3,40% do total desses créditos concedidos (Dados da Matriz de Crédito Rural do Banco Central do Brasil).

A partir desta constatação, que não é nova, estudiosos têm se debruçado a entender os motivos dessa concentração. Monteiro, Feitosa e Lemos (2022) analisaram os dados de 2000 a 2018 e encontraram uma correlação positiva entre o volume de recursos do PRONAF no município e o Valor da Produção Agrícola no Município. A partir disso, os autores argumentam que há uma determinação da primeira variável para a segunda, ou seja, que o volume de recursos concedidos tem contribuído para aumentar o valor da produção agrícola no município. Contudo, esta pode ser uma conclusão apressada. Primeiro porque existem mais fatores que podem determinar o volume da produção agrícola. Segundo porque há estudiosos que sugerem que o sentido da determinação é inverso, isto é, que o valor da produção agrícola do município influencia no volume de recursos do PRONAF que é destinado a esse município.

O mesmo estudo ainda apontou para outras correlações. Uma delas é a correlação positiva entre valor de créditos obtidos pelo município e assistência técnica recebida pelos produtores, indicando que a assistência técnica é importante para a captação dos créditos do PRONAF. Outra descoberta do estudo e a heterogeneidade dessa apropriação (observada através do coeficiente de variação dos valores de contratos) em cada uma das regiões do país. A região Centro-Oeste tem maior valor médio de contrato (R$ 17.157,36) e CV (coeficiente de variação) de 70,4% (segundo maior CV entre as regiões). A região Nordeste tem o menor valor médio de contrato (R$ 2.538,18) e também o menor CV, 54,7%.

O artigo de Brinker, Alves e Massuquetti (2020) analisou os dados dos créditos da linha de investimento do PRONAF para municípios no período de 2013 a 2018. O estudo obteve como resultado os seguintes dados:

1) Variáveis com correlação positiva com “quantidade de contratos”

  • Índice de Gini (do município)
  • Analfabetismo (taxa do município)

2) Variáveis com correlação negativa com “quantidade de contratos”

  • IDH (do município)
  • PIB Agrícola (do município)
  • Participação do PIB Agrícola no PIB (do município)
  • Renda per Capita

Percebe-se que há uma associação entre indicadores sociais “ruins” e baixa quantidade de contratos do PRONAF. Isto reforça a hipótese de que “bons” indicadores sociais são importantes para a quantidade de contratos alcançada pelo município. Em linha com o estudo anterior, há uma associação entre indicadores econômicos com o elevado número de contratos, indicando que ou esses indicadores são importantes para a quantidade de contratos alcançada pelo município ou, como indica o estudo anterior, a quantidade de contratos tem impacto nos indicadores econômicos.

O estudo de Alves, Silva, Bastian e Valadares (2022) relacionou dados do Censo Agropecuário e do PRONAF nos anos de 2006 e 2017. O objetivo dos autores era averiguar as possíveis relações entre créditos do PRONAF e diversificação produtiva agrícola. Como um das conclusões do estudo, os autores afirmam que o PRONAF tende a acompanhar a estrutura produtiva local, reforçando dinâmicas pré-definidas. Nesse sentido, o PRONAF limita as possibilidades de diversificação da produção. O principal motivo para isso estaria no desenho operacional do PRONAF. Uma vez que o programa é executado pela rede bancária, as concessões de crédito terminam por seguir a lógica de risco e retorno financeira. Esse motivo se desenrola em 5 outros motivos, seguindo a revisão bibliográfica feita pelos autores:

1) exigências dos bancos (documentos, patrimônio, renda) são difíceis de serem atendidas;

2) crédito é concedido por cultura, impulsionando uma tendência à especialização produtiva nos cultivos com maior volume de crédito disponíveis, que em geral são cultivos com maior integração aos mercados;

3) para as instituições bancárias, concentração de recursos em atividades consolidadas (soja, milho e gado) gera menor risco operacional;

4) recomendações de técnicos extensionistas, que tendem a indicar produtos tradicionais ou integrados ao mercado;

5) linhas novas são consideradas de maior risco pelos bancos, tornando pouco próspera a abertura de modalidades do PRONAF que visam aumentar a diversidade produtiva.

O artigo de Zeller e Schiesari (2020) procurou encontrar quais fatores são determinantes para a alocação desigual dos recursos do PRONAF. Os autores realizaram essa análise por dois métodos: através de regressões econométricas e através de entrevistas com especialistas. De maneira geral, os autores encontraram três fatores que determinam a desigual concessão dos créditos: riqueza, conhecimento e risco dos municípios. Este último fator é particularmente importante para municípios do semiárido, onde há risco hídrico.

Para a análise econométrica, o estudo avaliou as variáveis que podem ter impacto na intensidade de recursos concedidos. Correlacionado positivamente, foram encontrados os seguintes fatores: renda; maquinaria, propriedade da terra, eletricidade, bancos que concedem créditos pelo PRONAF, participação em cooperativa, experiência, integração ao mercado e estradas pavimentadas. Com correlação negativa, foram encontrados os seguintes fatores: sem escolaridade, pequenos proprietários e semiárido.

Na análise com entrevistados, foram encontrados os seguintes fatores determinantes: capacidade de pagamento indicada no projeto (valor do empréstimo tem que estar entre X% e Y% do lucro esperado, sem que X e Y sejam divulgados); garantia fiduciária; assistência técnica; riqueza dos agricultores; participação em cooperativa; semiárido (negativamente).

Ressaltamos aqui a riqueza e o semiárido. Com relação à riqueza, estamos num ciclo vicioso e, nesse sentido, podemos dizer que a lógica de concessão do crédito contribui para reproduzir a desigualdade. Sem riqueza é difícil ter crédito e, sem crédito, é difícil aumentar a riqueza. Com relação ao semiárido, temos outro ciclo vicioso. Sem estabilidade hídrica, diminui as chances de conseguir crédito, mas, sem crédito, o agricultor não consegue fazer investimentos para dirimir a instabilidade hídrica.

Por fim, o estudo de Aquino, Gazolla e Schneider (2018) procura demostrar a desigualdade no interior da agricultura familiar brasileira. Para isso, os autores utilizaram dados do Censo Agropecuário de 2006 relacionando-os com dados do PRONAF no mesmo ano. Os autores concluem que a política de crédito para a agricultura familiar, ao invés de diminuir a desigualdade entre os agricultores familiares, tem contribuído para acirrar a concentração e a desigualdade produtiva entre eles.

Concluindo, acreditamos que os dados e a análise bibliográfica aqui apresentados auxiliam o leitor a compreender as desigualdades alocativas dos recursos do PRONAF e os motivos que contribuem para que isso ocorra. A despeito da euforia pelo novo Plano Safra da Agricultura Familiar entoada pelos participantes do evento de lançamento 2023/2024, merecida pela quantidade histórica de recursos para esse grupo social, precisamos manter a cautela quanto à relação entre a liberação desses recursos e os reais impactos na vida dos agricultores mais carentes.  Historicamente, mesmo em períodos passados de aumento de recursos, esses têm sido canalizados para agricultores familiarres mais consolidados e para culturas mais ligadas à exportação ou à grande indústria alimentícia. Assim, apesar do volume de recursos liberado nesse ano, o Plano não apresenta medidas capazes de dirimir as desigualdades nas concessões de créditos e suas causas acima apresentadas e, portanto, terá pouco impacto para diminuir as desigualdades entre os agricultores familiares.

[1]     Numa primeira busca, para os últimos 5 anos, encontramos 9 artigos. Contudo, um era basicamente uma versão mais atualizada de outro e outros dois eram estudos de áreas geográficas mais localizadas, como estado ou município. Sendo assim, não contemplamos esses três artigos.

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