“Til”, de José de Alencar, carrega tensão social velada

Escrita em contexto de crise, obra quebra tabu da escravidão na literatura nacional, tornando ambíguos papéis de ‘vítima’ e ‘algoz’
Por Bruno Vaiano, publicado originalmente na Agência Universitária de Notícias 

José de Alencar
Crédito: AUN/USP

A classificação de “Til” como romance singelo, descrição de um Brasil modesto e tradicional, é questionada por Paula Maciel Barbosa, doutora em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP, em artigo publicado na revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). A autora, baseada no cenário político conturbado dos anos de 1870, demonstra que há, na obra de 1872, um retrato crítico da contraposição entre casa-grande e senzala, responsável pela polarização e ambiguidade do romance, e especial preocupação de Alencar com a reinserção social dos escravos após sua libertação.

“Til” não foi alvo de muitos estudos de fôlego. Constantemente citado “de passagem” pela crítica, o romance não reverberou com intensidade. Ele, porém, foi marcante dentro da obra do autor em muitos aspectos. Segundo a pesquisadora, Alencar “lança mão de materiais por ele já trabalhados em seus romances indianistas anteriores [O Guarani e Iracema]. No entanto, dessa vez não trata do passado colonial, mas do presente, pois leva a ação para uma fazenda de café no interior paulista em 1846”. Lançado em folhetins em 1871, época da promulgação da Lei do Ventre Livre, a trama de Alencar estava fortemente inserida em seu tempo.

O fim do império

Alencar, entre 1867 e 1868, redigiu cartas no gênero ‘specula principis’ (espelho do príncipe), sob o pseudônimo de ‘Erasmo’, para o imperador D. Pedro II. Nelas, o autor, como uma espécie de conselheiro ou ‘voz da consciência’ do absolutista, era claramente favorável à manutenção da escravidão. Sobre a aparente contradição entre essa postura e o caráter social de “Til”, a autora explica: “A figuração das contradições sociais no romance, mais do que às intenções do autor, deve­-se ao momento de crise em que foi escrito e ao fato de Alencar ter se proposto a tratar da nação como um todo”.

O Brasil, endurecido pela Guerra do Paraguai, se viu na difícil conciliação entre o respeito aos negros que morreram pela nação no conflito e a continuidade de sua opressão e submissão em nosso território. “A historiografia é unânime em apontar a década de 1870 como uma fase de declínio do Segundo Reinado”, diz a autora. “A discussão sobre o fim da escravidão, a criação do Partido Republicano e as novas escolas de pensamento são indicadores de que as coisas estão mudando. Alencar não ficou imune a isso”.

Silêncio quebrado

“Til”, portanto, não estava isolado. O próprio Alencar, no mesmo ano, finaliza ”O Tronco do Ipê”, também ambientado no presente do autor e permeado pela questão da escravidão, apesar de centrado na casa-grande. Em 1869, Joaquim Manuel de Macedo publica “As Vítimas­ – Algozes: Quadros da Escravidão”, conjunto de três histórias que mostram como os escravos trazem, nas palavras da entrevistada, “a devassidão e a morte para o lar de seus senhores”.  Os três, com “A Mocidade de Trajano”, primeira obra do Visconde de Taunay, formam um grupo de romances da fazenda que trouxeram à tona a questão da escravidão, problemática até então evitada na literatura.

“Em Til, o lado demoníaco e monstruoso não se vincula a um escravo, mas a uma personagem da casa­grande”, explica a autora, contrapondo o livro à obra contemporânea de Macedo. “Além disso, o modo como o enredo insiste no abandono a que estão relegados os velhos escravos e no cuidado que se deve ter com os seres fragilizados ou alienados demonstra uma preocupação do autor“.

O espaço, em “Til”, é hierarquizado. Os ambientes do romance são descritos de acordo com as personagens que os habitam, em um vínculo vital para a compreensão da obra: “O espaço funciona como uma alegoria da nação e de seus estratos sociais”, diz Paula, comparando a obra ao “Guarani”, que possui características similares na sua construção, apesar de retratar outra época. A estratificação vai além e afeta o próprio estilo empregado pelo autor: ao se referir à casa-grande, centro de riqueza e poder em torno do qual a obra se irradia, Alencar compõe a narração à moda de seus romances urbanos sentimentais. Ao se aproximar das classes subalternas, sua figuração realista sai de cena, e a obra remete ao mítico, alegórico e fantástico.

“Na dimensão do tempo, isso se repete. O tempo linear, uma das características básicas dos romances, não se mantém, e observa­-se a existência de dois modos antagônicos de representação do tempo: o histórico e o mítico”, afirma a autora. Til, por se centrar em personagens vinculados à periferia do latifúndio escravista, deixa mais à mostra as contradições daquela sociedade.

O artigo completo está na revista do Instituto de Estudos Brasileiros, disponível aqui.

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