Enquanto a Covid-19 faz milhares de vítimas fatais pelo mundo e as autoridades em saúde pública orientam o isolamento social como método mais eficaz de contenção de sua disseminação, parte da sociedade assiste, estarrecida, ao discurso de políticos que seguem negando os fatos com foco na recuperação da economia, mesmo ao custo de “algumas” vidas. Veiculados como gesto em prol do trabalhador, conceitos formulados por Noam Chomsky e Antonio Gramsci mostram que o discurso negacionista tem outros beneficiários.
O fenômeno do negacionismo não é novo, remonta aos anos 1940, em que se tentou provar a ausência de culpa da Alemanha pela Segunda Guerra Mundial. Isso se fez a partir da banalização, justificativa ou mesmo negação da existência dos campos de extermínio e do holocausto. Em síntese, da defesa e da reabilitação de Adolf Hitler (MORAES, 2004:757). Apesar de se autodenominarem “revisionistas históricos”, os negacionistas nada têm de revisores, uma vez que a revisão histórica se dá diante de novas evidências ou de novas questões que se colocam. Já os negacionistas estão preocupados em negar as evidências, sem apresentar algum fato que o permita fazê-lo.
Sob uma perspectiva psicológica, o jornalista Michael Specter, explica que, para todos nós que já estivemos diante de verdades dolorosas, a negação parece ser a única forma de lidar com elas. Specter afirma também que nessas circunstâncias os fatos, por mais detalhados ou irrefutáveis, raramente fazem diferença. Assim, para o escritor americano, o Negacionismo “é negação em larga escala – quando um segmento inteiro da sociedade, muitas vezes lutando com o trauma da mudança, se afasta da realidade em favor de uma mentira mais confortável” (SPECTER, 2009).
Dessa forma, temos duas vertentes de negacionistas: os históricos, que negam o Holocausto, e os científicos, dentre os quais estão os climáticos (que negam o Aquecimento Global), os terraplanistas (que negam as evidências de um planeta aproximadamente esférico) e até os da AIDS (que negam, acreditem, o vírus HIV ser o causador da síndrome). Sem falar nos movimentos de design inteligente, antivacinas, e outros tantos que ganharam força com o advento da internet e das redes sociais.
Para estabelecer a relação deles com a Economia vamos relembrar um filósofo (por coincidência) italiano chamado Antonio Gramsci (1891-1937) que elaborou os conceitos de Bloco Histórico, Hegemonia, e Bloco Ideológico. Para ele, o Bloco Histórico de um sistema é composto por uma Estrutura socioeconômica, relacionada às forças produtivas, e por uma Superestrutura de natureza político-ideológica. Deduz-se que as grandes corporações do setor privado atuam na estrutura do bloco, formando a classe dirigente fundamental e os políticos e os intelectuais atuam na superestrutura. Para que uma classe dirigente em minoria consiga subordinar uma maioria é necessário que estes tenham um comportamento social adequado à necessidade produtiva daqueles.
Esse comportamento pode ser conseguido por meio da força (a coerção é sempre latente, mas não desejável) e do consentimento. Na maioria das vezes, a hegemonia é suficiente para assegurar o comportamento social esperado (Cox, 1993:52). Por isso, a atuação do o Bloco Ideológico é tão importante, pois, formado pelos intelectuais orgânicos e atuando na superestrutura, ele vai impregnar na sociedade os valores culturais necessários para que os dominados sigam consentindo essa dominação. Ou como explicou o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) no texto Se Os Tubarões Fossem Homens: “Se os tubarões fossem homens (…) Se cismaria nos peixes pequenos que esse futuro / Só estaria garantido se aprendessem a obediência”. (BRECHT, 2018)
O Bloco Histórico vigente é o sistema capitalista neoliberal. Segundo Noam Chomsky (2017), o triunfo ideológico das “doutrinas de livre mercado” possibilita que decisões políticas se traduzam em polpudos lucros pagos a altos executivos e suas empresas. Na prática, as grandes empresas que têm grande poderio econômico, financiam campanhas eleitorais de atores políticos, de diferentes espectros ideológicos (diga-se). Isso, para que eles, uma vez eleitos e legitimados pelo voto popular (embora tenham prometido trabalhar em favor deste), possam ser representantes dos interesses dessas empresas, passando a legislar a seu favor, aqueles a que Chomsky vai chamar de “servos do capital privado”. Dessa forma, elas vão acumular ainda mais lucros e concentrar ainda mais renda, fechando o círculo.
Assim, à medida em que a Covid-19 afeta a Economia, informações para minimizar esse impacto passam a ser produzidas e disseminadas pelo Bloco Ideológico (Blogs, sites, perfis de redes sociais, influenciadores) e pelos simpatizantes do sistema vigente. Então, não é difícil encontrar nos meios de comunicação dos apoiadores do atual governo mais e mais teorias da conspiração negando a letalidade do vírus e, mais recentemente, ao se depararem com a realidade das mortes, passaram a negar sua causa.
Entendidos esses aspectos, a frase do atual Presidente da República do Brasil “Vão morrer alguns, do vírus? Sim, vão morrer (…) Lamento. Tá? Agora não podemos criar esse clima todo que está aí. Prejudica a economia!” suscita uma interpretação diversa daquela que inicialmente seu emissor pretendeu transmitir.
O Brasil não pode parar, sobretudo quando o interesse do grande capital está em jogo. Se todos vão morrer um dia, que seja indo alegres “para as goelas dos tubarões”.