No último dia 20 de março, a Unicamp já completava sua primeira semana de isolamento social enquanto vários setores da indústria e do comércio, incluindo escolas públicas e privadas, ainda estavam em funcionamento (no estado de São Paulo, a quarentena seria decretada apenas 2 dias depois).

Enquanto eu me encontrava numa situação de assimilar essa nova realidade, recebi, na mesma tarde, três memes bastante semelhantes entre si.

Todos os três viralizaram rapidamente, entrando para ranking de postagens mais populares nos grupos das famílias, dos pais da escola, do bairro e da garotada.

Ao analisar os memes, parece que a intenção é muito boa: convencer as pessoas a ficarem em casa. Porém, a estratégia de convencimento é duvidosa: o medo.

Estes infográficos não são muito diferentes de quando eu já estava cansada de correr atrás do meu irmão menor e dizia para ele não entrar no quarto porque lá tinha um fantasma assustador (tadinho, morria de medo).

Estes memes apresentam uma narrativa mais ou menos assim: compare os números de casos no Brasil e na Itália no mesmo momento da epidemia (23° e 24° dias) e extrapole o número de casos no Brasil, tomando-se a Itália como modelo. Quantos mortos teremos?

E foi assim, convencidos pelo medo de um futuro incerto, que os cidadãos de São Paulo talvez tenham iniciado sua quarentena.


Fantasmas existem

Conforme meu irmão foi crescendo, ele começou a adquirir coragem de ir dar uma “espiadinha” no quarto para ver o tal fantasma. Depois de algumas vezes, ele concluiu o óbvio: vinha sendo enganado.

Nas últimas duas semanas, muitos estão repetindo o mesmo raciocínio em relação à COVID-19. A diminuição da adesão ao isolamento social já é medida e observável. Por necessidade, ou por curiosidade, muitos foram “dar uma espiadinha” e, por falta de evidências de corpos empilhados nas ruas, construíram suas hipóteses, dentre elas:

  • a COVID-19 não é um monstro;
  • ela é só uma invenção de uma irmã maldosa.

Temos então uma boa e uma má notícia.

A boa notícia é que, ao alcançarmos o 49° dia da pandemia no Brasil, nossos números oficiais registram cerca de metade das mortes previstas pelo agourento meme (na verdade, essa é uma notícia excelente!).

A má notícia é que fantasmas existem.

O paradoxo do isolamento social é que, se ele funciona, as pessoas acham que ele não é necessário.


Por que o meme errou?

Para tentar responder essa pergunta, vamos fazer a seguinte brincadeira:

  1. Vamos voltar no tempo no tempo 7 dias (mais precisamente no dia 6 de abril);
  2. Faremos uma projeção pessimista e uma projeção otimista da evolução dos casos;
  3. Voltamos ao presente e verificamos como nos saímos.

Vamos repetir a brincadeira para os 5 estados brasileiros com maior número de casos de COVID-19: Pernambuco (5°), Amazonas (4°), Ceará (3°), Rio de Janeiro (2°) e São Paulo (1°).

Nos gráficos abaixo, o cenário pessimista é pintado de vermelho. Ele pressupõe que a evolução dos casos seguiria, ao longo da última semana, um crescimento exponencial.

o cenário otimista, é pintado de verde. Este modelo, “enxerga” um achatamento da curva em qualquer queda da taxa de crescimento de um dia para outro (regressão logística).

Os pontos em azul, representam a trajetória real do que aconteceu na última semana.

4° e 5° lugares – Pernambuco e Amazonas

Pernambuco e Amazonas experimentaram uma taxa de crescimento acelerada na última semana. Como resultado, suas trajetórias de evolução de casos não apresentaram nenhum esboço de achatamento da curva. Assim sendo, não foi possível nem mesmo projetar o cenário otimista. Os gráficos mostram apenas o cenário pessimista com base numa projeção exponencial.

A triste notícia é que, em ambos os estados, o crescimento do número de casos se mostrou mais acelerado que o cenário pessimista, na maioria dos dias.

Amazonas e Pernambuco tiveram uma semana de crescimento acelerado dos casos de COVID-19

2° e 3° lugares – Rio de Janeiro e Ceará

Ainda que estejam com taxas aceleradas de crescimento do número de casos da COVID-19, o Rio de Janeiro e Ceará conseguiram escapar do fantasma do cenário pessimista e terminaram a semana com um número de casos menor que o previsto neste cenário.

Rio de Janeiro e Ceará mostram sinais de desaceleração ao longo da última semana, ainda que estejam numa forte ascendente

1° lugar – São Paulo

Dos 5 estados brasileiros com maior número de casos de coronavirus, São Paulo é o estado que mais se aproximou do cenário otimista na última semana. Infelizmente, isso está longe de ser motivo de orgulho para o estado que se aproxima da marca dos 10.000 casos confirmados de COVID-19.

Em resumo, sendo São Paulo o principal contribuinte para o número de casos de COVID-19 no Brasil, o meme basicamente errou porque São Paulo não seguiu curvas de crescimento no número de casos tão velozes quanto as italianas. De alguma maneira, conseguimos desacelerar esta curva.

São Paulo se aproximou do cenário otimista na última semana.


O vírus se espalhou até numa sauna

Ainda que já tenhamos sido bombardeados por informações sobre porque o isolamento social nos ajuda a conter o número de mortos pelo coronavirus, estes gráficos por si só não provam que a quarentena seja a principal responsável pela aparente desaceleração do número de casos em São Paulo.

Mas podemos argumentar em cima de algumas perguntas e hipóteses que circulam:

O Brasil não é a Itália em termos de clima, logo não teremos tantas mortes quanto eles. Estudos sobre a COVID-19 e como ela é afetada por parâmetros climáticos ainda estão em andamento. Alguns estudos pequenos não conseguiram mostrar que o clima mais quente e úmido pode enfraquecer a transmissão da doença. Neste artigo por exemplo, eles analisam o caso de pacientes que foram infectados por terem frequentado uma sauna, ambiente com temperaturas entre 25°C e 41°C e umidade 60%. Ainda que o efeito climático possa existir, aparentemente ele não é tão relevante a ponto de frear fortemente a evolução da doença, por exemplo, no Amazonas, estado brasileiro de temperaturas altas e clima úmido. Por outro lado, é um fato que estamos caminhando para o inverno, período onde o número de doenças respiratórias comprovadamente aumenta no Brasil, principalmente no Sul e Sudeste.

A Europa é um continente de idosos, por isso não temos que nos preocupar com tantas mortes quanto países europeus. Esta hipótese talvez já tenha sido enfraquecida pelo cenário triste que estamos observando nos Estados Unidos, com mais de 20.000 mortos pela COVID-19 (vamos escrever por extenso? vinte mil mortos). Porém, vale mencionar que apesar de um dos principais fatores de risco da COVID-19 ser a idade, existem outros fatores de risco ainda pouco estudados no caso do coronavirus: a pobreza, a má-nutrição, a falta de saneamento básico (ou seja, uma torneira para lavar as mãos), entre outros. Brasil e África certamente fornecerão dados para o resto do mundo sobre esta questão ao longo das próximas semanas.


A hora do sacrifício

De alguma maneira, parece que muitos estão com menos medo do coronavirus hoje, do que há 50 dias atrás.

Talvez seja o medo de monstros (menos discretos e mais visíveis que os fantasmas), tais como: as dificuldades financeiras, a perda do emprego, a fome.

Apesar dos memes agourentos do início deste post terem errado a data, infelizmente, em breve, eles terão acertado o número de mortos.

O nosso terror diante desse número não deveria ter mudado…Algo de ruim aconteceu conosco nos últimos 50 dias que fez com que passássemos a relativizar a morte de mais ou menos pessoas em função de outros interesses.

Como sociedade, deveríamos atuar como irmãos que apoiam uns aos outros, que protegem o mais fraco incondicionalmente, que abraçam o irmão que está em pânico e o ajuda a ter coragem. Não deveríamos nos comportar como o irmão que empurra o mais fraco para dentro de um quarto com fantasma…

É hora do sacrifício. É hora de todos abrirmos mão de alguma coisa, incluindo convicções equivocadas.


Uma descrição detalhada da análise de dados que gerou os gráficos deste artigo pode ser encontrada aqui. Os gráficos mudam diariamente, conforme novos casos são reportados. Este trabalho é o resultado do esforço conjunto de alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), do Instituto de Computação (IC) , Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) e Faculdade de Ciências Médicas (FCM). A força tarefa também conta com a parceria do Prof. Dalton Martins, da Faculdade de Ciência da Informação (FCI) da Universidade de Brasília (UnB).

Para saber mais:

Luo C, Yao L, Zhang L, et al. Possible Transmission of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2) in a Public Bath Center in Huai’an, Jiangsu Province, China. JAMA Netw Open. 2020;3(3):e204583. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.4583

Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.