Cartilagem articular: princípios do tratamento cirúrgico.
Lesões da cartilagem, principalmente do joelho, são a causa de dor em muitas pessoas e tem causado um grande interesse dos pesquisadores na busca de soluções melhores para o problema.
A cartilagem articular, conhecida como cartilagem hialina devido sua aparência macroscópica lembrar o aspecto do vidro, é um tecido com uma arquitetura funcional única (figura 1), capaz de suportar movimentos em múltiplos planos e com múltiplas condições de carga, possibilitando a movimentação sem dor. Entretanto, traumas, doenças ou condições anormais de carga podem danificar sua estrutura.
Por se tratar de um tecido sem vasos sanguíneos, sem vasos linfáticos e sem nervos, a capacidade de cicatrização da cartilagem no adulto é quase nula. A menos que a lesão seja tão profunda que cause a fratura do osso subcondral, provocando sangramento intra-articular e formação de tecido reparativo fibrocartilaginoso sobre a lesão. Este tecido é capaz de aliviar os sintomas do paciente.
Apesar de ser assintomática em alguns casos, a lesão condral tem dois grandes problemas: no curto prazo, dor, derrame articular e bloqueios do movimento, sintomas que são principalmente limitantes quando acometem atletas e trabalhadores sujeitos a atividades de alto impacto. No longo prazo, as lesões da cartilagem articular são consideradas fatores de risco para o desenvolvimento da osteoartrite, a causa mais frequente de dor crônica em articulações na população adulta.
Atualmente, o tratamento pode ser feito com medicamentos e fisioterapia. Quando estes tratamentos não funcionam, existem várias opções cirúrgicas, o que acaba trazendo muita confusão. Basicamente, estas cirurgias podem ser divididas de acordo com o seu princípio de funcionamento:
1) Estimulação da medula óssea
Vários métodos de tratamento foram desenvolvidos com basea neste princípio: perfurar o osso subcondral e causar sangramento. Em conjunto, todas as técnicas que utilizam este princípio são conhecidas como “estimulação da medula óssea”. Na verdade, uma destas técnicas, chamada de “microfratura”, ainda é o método cirúrgico mais usado na atualidade para tratar as lesões condrais.
Existem dois grandes problemas com este princípio de tratamento: as propriedades estruturais da fibrocartilagem são diferentes das da cartilagem hialina, o que pode levar a alterações degenerativas do osso subcondral exposto a uma maior carga. Portanto, em teoria, a microfratura não evita o desenvolvimento da osteoartrite, mas apenas alivia os sintomas. Além disso, a perfuração do osso subcondral já é em si uma agressão que tem consequências. Uma delas é a formação de osteófitos intra-lesionais. A outra é que se o procedimento for mau sucedido e o paciente continuar com sintomas, a chance de sucesso de uma cirurgia de revisão empregando técnicas de terapia celular ficará bastante comprometida.
Por isso, a Academia Americana de Cirurgiões Ortopedistas (AAOS), uma das mais respeitadas sociedades de especialistas da área, recomenda que esta técnica seja usada apenas nas lesões menores que 2 cm2 e quando não existe a possibilidade de uso do transplante osteocondral autólogo (mosaicoplastia).
2) Transferência de cartilagem hialina já existente
A mosaicoplastia faz parte de um segundo princípio de tratamento para lesões condrais, onde se procura tratar a lesão com a transferência de cartilagem hialina. Isso pode ser conseguido com a transferência de cilindros osteocondrais autólogos (mosaicoplastia) retirados de áreas periféricas submetidas a pouca carga e colocadas em áreas centrais, onde existe maior carga. Existem três problemas. Primeiro a quantidade de cilindros é limitada por causa da pequena superfície doadora com pouca carga. Portanto somente lesões pequenas, únicas, de até 2 cm2 podem ser tratadas desta forma. Segundo, a retirada dos cilindros provoca uma resposta inflamatória nas áreas doadoras, que em teoria poderiam desencadear a osteoartrite. Terceiro, esta técnica também lesa o osso subcondral, com as consequências já citadas acima.
Uma outra forma de transferir cartilagem hialina para a lesão é o uso de transplantes homólogos (extraídos de cadáveres). Esta técnica seria indicada para lesões maiores que 2 cm2, mas apresenta sérios inconvenientes: o alto custo financeiro e dificuldade burocrática para a instalação e manutenção de um banco de tecidos musculoesqueléticos, a lesão do osso subcondral para fixação do enxerto, a possibilidade de não integração do enxerto no osso do receptor e o risco de transmissão de doenças infecto contagiosas.
3) Terapia Celular para formação de nova cartilagem hialina
Diante destas dificuldades, um terceiro princípio de tratamento tem tido grande interesse: o uso da terapia celular para promover a formação de cartilagem hialina. Em 1985, foi realizado em Nova York, nos Estados Unidos da América, o primeiro implante autólogo de condrócitos em seres humanos, inaugurando a era da terapia celular na ortopedia. Nove anos depois, um artigo publicado numa revista de alto impacto, deu visibilidade a esta técnica e iniciou seu uso em larga escala em diversos países. A técnica consiste em obter um pequeno fragmento de cartilagem articular do próprio paciente e isolar os condrócitos, que são as células responsáveis pela fabricação da matriz extracelular da cartilagem hialina. É esta matriz que confere as propriedades especiais deste tipo de cartilagem. Utilizando técnicas de cultura celular, ocorre a expansão do numero de condrócitos no laboratório, que depois são implantados de volta no joelho do paciente.
Nos primórdios um pedaço do periósteo da tíbia do paciente precisava ser retirado, para ser suturado sobre a lesão, criando uma capa sob a qual os condrócitos em meio liquido eram injetados, para que não se espalhassem pela articulação. Diversas publicações atestam a segurança e a eficácia deste procedimento. Hoje, esta técnica é considerada o padrão-ouro para as lesões condrais maiores que 2 cm2, sem lesão do osso subcondral.
Um avanço importante da técnica foi a substituição do periósteo por uma membrana de colágeno porcino, já aprovada para uso clínico no Brasil pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), capaz de ser suturada sobre a lesão, evitando a necessidade da incisão na tíbia. Uma das complicações mais temidas com o uso do periósteo era a hipertrofia do enxerto, que gerava sintomas iguais ou piores que a lesão inicial. Com o uso da membrana, o risco de re-operação pela hipertrofia diminuiu de 25,7% para 5% (ref).
Outro avanço importante foi a colocação das células em cultura na própria membrana. Como a membrana é porosa, ela permite a entrada dos condrócitos em seu interior. Neste ambiente tridimensional, evita-se um fenômeno conhecido como de-diferenciação. O condrócito, quando colocado numa placa de cultura plana, perde seu fenótipo arredondado e regride ao formato de um fibroblasto. No ambiente tridimensional, este fenômeno é minimizado. Outra vantagem importante é que a distribuição das células na lesão fica mais homogênea e o extravasamento de células é muito menor. Quando os condrócitos são injetados em solução liquida, como era feito inicialmente, parte da solução acabava extravasando e devido ao efeito da força da gravidade, a distribuição dos condrócitos ficava heterogênea, com algumas áreas da lesão com muitas células e formação de matriz hialina, enquanto outras áreas ficavam quase desprovidas de células, com a formação de fibrocartilagem.
Para o futuro, estão sendo conduzidos diversos estudos com células mesenquimais de tecidos adultos, tais como medula óssea, gordura e sinóvia, para tentar substituir o uso dos condrócitos, com o argumento de que as células mesenquimais são mais fáceis de serem cultivadas, porque se multiplicam mais rapidamente, diminuindo o tempo de cultura e o consumo de insumos, além de serem obtidas em maior quantidade e de locais mais fáceis. As células mesenquimais do tecido gorduroso, por exemplo, são abundantes no tecido subcutâneo da pele, podendo ser acessadas com anestesia local.
Entretanto, o principal argumento contra o uso das células mesenquimais é a impossibilidade de garantir, com os métodos atuais, que uma vez dentro da articulação, estas células seguiriam o caminho de diferenciação até se tornarem condrócitos. Neste sentido, faz muito mais sentido no momento, utilizar o condrócito, eliminando a necessidade da diferenciação. Além disso, os condrócitos já são utilizados clinicamente há duas décadas, enquanto as células mesenquimais ainda são usadas em protocolos de pesquisa.
A técnica cirúrgica do implante autólogo de condrócitos não é complicada, mas o que limitou seu uso na América Latina até hoje é o custo e a qualidade da cultura celular dos condrócitos. Na América do Norte, Europa e Japão, este é um procedimento de rotineiro e consagrado.
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Dr. Acha que adianta tomar colágeno tipo 1 hidrolisado para tentar recuperar o labrun do quadril? Abraço!
Como faço para conseguir um diagnóstico a fim de saber se posso fazer a cirurgia de transplante de condrocitos? Estou desesperada com a situação do meu joelho e gostaria de conseguir saber se meu caso pode ser contemplado por essa cirurgia
olá Raquel, você precisa passar em consulta com um especialista em cirurgia do joelho. No site da SBCJ (sociedade brasileira de cirurgia do joelho), tem um campo "procure um especialista". Você consegue localizar um médico filiado a esta prestigiada sociedade, por região. Assim você consegue achar um próximo de você.