ENTENDA O USO DA GORDURA (AMAT) NO TRATAMENTO DA ARTROSE

A gordura micro fragmentada, uma forma de obter células da gordura para uso em medicina regenerativa, vem apresentando resultados muito animadores no tratamento da ARTROSE.

 

A osteoartrite (ARTROSE) é uma doença articular crônica e debilitante que causa danos à cartilagem articular e ao osso. Embora comumente referido como uma doença de “desgaste”, interações complexas entre fatores genéticos, metabólicos, bioquímicos e biomecânicos também são considerados importantes na progressão da doença. Toda a articulação está envolvida na progressão da doença e os papéis da sinóvia, músculos e ligamentos são provavelmente subestimados. A administração intra-articular de medicamentos, em que uma dose terapêutica concentrada é distribuída por toda a cápsula articular, pode ser o modo ideal de administração de medicamentos para as terapias da ARTROSE.

A administração intra-articular de medicamentos tem uma série de vantagens sobre a administração sistêmica, incluindo aumento da biodisponibilidade local, redução da exposição sistêmica, menos eventos adversos e custo reduzido.

 

O tecido adiposo (nome técnico da gordura) é um tipo de tecido conjuntivo rico em gorduras e muito importante para os animais por ser fonte de energia. Nele temos células especializadas, denominadas adipócitos, responsáveis por armazenar lipídios. Esse tecido representa cerca de 20% do peso corporal de pessoas com peso adequado. A obesidade, que é o excesso de tecido adiposo, deve ser combatida. A perda de peso é um dos pilares fundamentais do tratamento da ARTROSE. Mas dentro do tecido adiposo residem outros tipos celulares além dos adipócitos: as CÉLULAS MESENQUIMAIS. Esse tipo de célula-tronco que reside na gordura é chamado pela sigla AT-MSCs.

 

O tecido adiposo é uma das fontes mais ricas de células mesenquimais no adulto. Elas estão ali estrategicamente guardadas para ajudar na cicatrização de lesões. Quando ocorre uma lesão, elas “acordam” e comandam todo o trabalho de reparação do tecido danificado. As células mesenquimais são uma espécie de “maestro” que comanda a “orquestra” de diversos tipos celulares que vão fazer o serviço. Existe um ditado muito antigo entre os cirurgiões:

 

“O MELHOR AMIGO DO CIRURGIÃO É A GORDURA”.

 

Isso porque já se sabe há séculos que muitas complicações de cirurgias abdominais são resolvidas pelo próprio corpo do paciente, quando o OMENTO (uma capa de gordura que reveste os intestinos), gruda no local da infecção ou da ferida. Essa gordura tem propriedades cicatrizantes e regenerativas. Em todos os mamíferos, quando um tecido sofre uma lesão, ocorre um processo de cicatrização que é dividido classicamente em três etapas: inflamação, proliferação tecidual (fibrose) e remodelação. Este processo pode levar a reparação, que é a constituição de um tecido cicatricial diferente do tecido original, ou a regeneração, que é o desenvolvimento de um tecido idêntico ao original lesado.

 

O tecido adiposo é uma fonte interessante de células-tronco por vários motivos:

  • abundância do tecido adiposo no corpo;
  • facilidade de acesso no subcutâneo;
  • densidade de células-tronco 300 vezes maior que na medula óssea;
  • sinais de senescência celular demoram mais para aparecer em comparação com as células-tronco da medula óssea. Ou seja, as células-tronco da gordura ficam “jovens” por mais tempo.

 

A maior parte das AT-MSCs fica “escondida” ao redor dos vasos sanguíneos dentro do tecido gorduroso, em um estado de “hibernação”. É possível separar essa parte rica em vasos, chamada fração vascular da gordura (SVF: Stromal Vascular Fraction), que interessa para a medicina regenerativa. O resto da gordura, com os adipócitos que não tem função regenerativa, é descartada. Entretanto, esta separação no entendimento das autoridades sanitárias brasileiras pode configurar manipulação. Mesmo que mínima, no Brasil isso impede seu uso clínico. Só pode ser usado em protocolos de pesquisa científica aprovados e monitorados por um Comitê de Ética em Pesquisa. 

 

Entretanto, o uso de enxertos de gordura, sem manipulação, é autorizado. O mais conhecido no momento é chamado de AMAT (Autologous Microfragmented Adipose Tissue). O cirurgião realiza uma mini lipoaspiração no abdome ou no culote, obtendo cerca de 40 a 60 ml de gordura. Essa gordura é fragmentada em um sistema fechado, na própria sala cirúrgica, para evitar contaminação. Isso pode ser feito de modo artesanal com seringas e equipos de soro, ou preferencialmente utilizando kits específicos autorizados pela ANVISA (Agencia Nacional de Vigilancia Sanitaria). 

 

O AMAT é injetado na articulação com artrose leve a moderada. Estudos clínicos demonstram que a técnica é segura e eficaz.

 

Cada caso deve ser analisado de forma personalizada pelo médico, mas são consideradas geralmente contra-indicações para a realização do AMAT:

  • idade acima de 55 anos;
  • obesidade;
  • desnutrição proteico-calórica;
  • tabagismo;
  • etilismo;
  • doenças infecciosas virais crônicas (HIV, Hepatites, etc);
  • comorbidades graves (insuficiências respiratória, cardíaca, hepática, renal);
  • infecção local na articulação;
  • doenças inflamatórias sistêmicas (reumatismos);
  • pernas tortas (deformidades);
  • artrose grave com indicação cirúrgica de prótese.

 

Referências:

 

  1. Dallo I, Szwedowski D, Mobasheri A, Irlandini E, Gobbi A. A Prospective Study Comparing Leukocyte-Poor Platelet-Rich Plasma Combined with Hyaluronic Acid and Autologous Microfragmented Adipose Tissue in Patients with Early Knee Osteoarthritis. Stem Cells Dev. 2021 Jul 1;30(13):651-659. doi: 10.1089/scd.2021.0053. Epub 2021 May 24. PMID: 33899526.
  2. Koh YG, SB Jo, OR Kwon, DS Suh, SW Lee, SH Park and YJ Choi. (2013). Mesenchymal stem cell injections improve symptoms of knee osteoarthritis. Arthroscopy29:748–755. CrossrefPubMed.
  3. Adriani E, M Moio, B Di Paola, W Salustri, A Alfieri, P Parisi, M Ruggiero, Z Borab and B Carlesimo. (2017). Percutaneous fat transfer to treat knee osteoarthritis symptoms: preliminary results. Joints5:89–92. CrossrefPubMed.
  4. Russo A, D Screpis, SL Di Donato, S Bonetti, G Piovan and C Zorzi. (2018). Autologous micro-fragmented adipose tissue for the treatment of diffuse degenerative knee osteoarthritis: an update at 3 year follow-up. J Exp Orthop5:52. CrossrefPubMed.
  5. Tremolada C, C Ricordi, AI Caplan and C Ventura. (2016). Mesenchymal stem cells in lipogems, a reverse story: from clinical practice to basic science. Methods Mol Biol1416:109–122. CrossrefPubMed.
  6. Gobbi A, I Dallo, C Rogers, RD Striano, K Mautner, R Bowers, M Rozak, N Bilbool and WD Murrell. (2021). Two-year clinical outcomes of autologous microfragmented adipose tissue in elderly patients with knee osteoarthritis: a multi-centric, international study. Int Orthop45:1179–1188. CrossrefPubMed.
  7. Russo A, V Condello, V Madonna, M Guerriero and C Zorzi. (2017). Autologous and micro-fragmented adipose tissue for the treatment of diffuse degenerative knee osteoarthritis. J Exp Orthop4:33.CrossrefPubMed.
  8. Panchal J, G Malanga and M Sheinkop. (2018). Safety and efficacy of percutaneous injection of lipogems micro-fractured adipose tissue for osteoarthritic knees. Am J Orthop (Belle Mead NJ)CrossrefPubMed.
  9. Garza JR, RE Campbell, FP Tjoumakaris, KB Freedman, LS Miller, D Santa Maria and BS Tucker. (2020). Clinical efficacy of intra-articular mesenchymal stromal cells for the treatment of knee osteoarthritis: a double-blinded prospective randomized controlled clinical trial. Am J Sports Med48:588–598. CrossrefPubMed.

 

Sobre o autor:

Dr. Alessandro Rozim Zorzi

Graduado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – USP em 1999; fez residência médica em Ortopedia e Traumatologia na Unicamp; especialista em Cirurgia do Joelho e Doenças Inflamatórias no Hospital de Clínicas da Unicamp, onde também fez mestrado e doutorado em Ciências da Cirurgia; fez curso de Especialização em Pesquisa Clínica PPCR Harvard Medical School e em Ética da Pesquisa com Seres Humanos na Unesco.

É supervisor do Programa de Residência Médica em Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp; membro relator do Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp; médico do Corpo Clínico do Hospital Israelita Albert Einstein em São Paulo, onde atuou como Plantonista em Ortopedia de 2007 a 2020 e como Pesquisador Médico de 2017 a 2020; é professor de Medicina na Faculdade São Leopoldo Mandic em Campinas-SP.

É membro: do Comitê de Medicina Regenerativa da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT); Comitê Musculoesquelético da Federação Mundial de Hemofilia (WFH); Sociedade Brasileira de Cirurgia do Joelho (SBCJ); Sociedad Latinoamericana de Rodilla e Desporto (SLARD), International Society of Arthroscopy, Knee Surgery and Orthopedic Sports Medicine (ISAKOS) e da International Cartilage Regeneration and Joint Preservation Society (ICRS).

 

 

Alessandro Zorzi

Médico ortopedista e pesquisador na UNICAMP e no Hospital Albert Einstein, com mestrado e doutorado em ciências da cirurgia pela UNICAMP e especialização em pesquisa clínica pela Harvard Medical School.

14 thoughts on “ENTENDA O USO DA GORDURA (AMAT) NO TRATAMENTO DA ARTROSE

  • 13 de novembro de 2021 em 00:25
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    Excelente artigo !!! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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    • 27 de novembro de 2021 em 14:57
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      Obrigado por sua gentileza!

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      • 14 de dezembro de 2021 em 10:38
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        Dr, a utilização do AMAT também pode ser aplicado às condropatias? Qual seria a grande vantagem da SVF em relação ao AMAT se ambas contém as células-tronco? Quantidade?

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        • 27 de dezembro de 2021 em 09:12
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          Muito boa pergunta Deocélio! Sim, pode ser usado na condropatia, mas não é a melhor indicação. Tendo a possibilidade de tratar a lesão com um gel ou uma membrana, acho besteira não fazer. Nas condropatias a cirurgia tem melhor resultado. O AMAT é mais indicado nos casos de artrose. Em relação ao SVF, o problema é que a legislação brasileira encara como um terapia avançada com manipulação e só irá autorizar seu uso no Brasil se alguma indústria decidir investir uma fortuna para cumprir tudo o que a ANVISA exige. Algo que me parece distante de acontecer. No AMAT, como não existe nenhuma manipulação, o uso é autorizado. É parecido com o problema do BMA (Bone Marrow Aspirate) e o BMAC (Bone Marrow Aspirate Concentrated). BMA pode, BMAC não pode.

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          • 3 de fevereiro de 2022 em 14:35
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            Dr. Alessandro,

            De que cirurgia com emprego de gel ou membrana o Sr. está falando, especificamente? O senhor se refere ao emprego de CaReS-1S e Chondrogide, respectivamente?

            Saberia me dizer se há médicos no Brasil já utilizando essas técnicas? Será que os planos de saúde já cobrem esse uso?

            Peço desculpas pelas inúmeras perguntas e agradeço sua paciência para lê-las.

            Aproveito para elogiar pelo louvável trabalho de esclarecimento aos pacientes e de divulgação científica.

          • 3 de fevereiro de 2022 em 19:48
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            Oi Marcos, é isso mesmo. O hidrogel disponível no Brasil é o austríaco CaReS-1S e a membrana mais usada é a suíça Chondrogide. Sim, já há muitos médicos fazendo no Brasil. Alguns planos cobrem, alguns negam. Mas quando insiste eles acabam liberando.

        • 18 de outubro de 2022 em 19:11
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          parabéns pelo artigo. 👏👏👏👏🙏🙏

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  • 14 de fevereiro de 2022 em 22:12
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    Dr. Alessandro,

    Só hoje vi sua resposta... agradeço mais uma vez pelos esclarecimentos! Eu tenho muita vontade de fazer a cirurgia, principalmente com o hidrogel, já que minha lesão mais grave é focal (e pequena) e tenho 35 anos.

    Só que sou de Brasília e não encontrei muitos médicos empolgados com essas tecnologias. Eu vi que o Dr. Adriano Karpstein (Paraná) usa o CaReS-1S, mas ele só faz particular (só o hidrogel custa cerca de 60 mil reais).

    Não sei se o Sr. está clinicando (e operando) ou se faz uso dessas técnicas aí em Campinas... Será que teria alguém para me indicar (de preferência, alguém que atenda a planos de saúde)?

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    • 17 de fevereiro de 2022 em 17:56
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      Eu também gostaria de saber o mesmo. Tenho ressalvas em relação ao médico do sul que vc citou, já vi inúmeros videos e paginas dele na internet condenando o uso de celulas tronco, principalmente por infiltração, assim como uso do PRP, que são técnicas usadas mundialmente. Então parece querer tumultuar o assunto, não sei com que objetivos. Gosto da abordagem sincera do Dr Zorzi e que trabalha em outras causas nobres.

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      • 17 de fevereiro de 2022 em 23:45
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        Prezado Deocélio,

        Em meu caso, a ressalva é puramente financeira mesmo, kkk! Eu não conheço o médico que citei nem o trabalho dele, mas presumo que ele seja um profissional ético, como a quase totalidade dos médicos que atuam em nosso país.

        Preciso fazer esse registro porque não quero que minhas palavras sejam mal compreendidas. Se eu tivesse dinheito à vontade, não titubearia em pagar por procedimentos que me permitissem correr e jogar futebol de novo... talvez até fosse para a Europa fazer a cirurgia com Spherox, que já foi até incorporado pelo NHS (sistema público de saúde da Inglaterra, que inspirou a concepção do SUS).

        Mas eu dependo do plano de saúde mesmo (nem posso reclamar, já pensou se tivesse que esperar o SUS?).

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  • 11 de maio de 2023 em 07:44
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    Dr. O senhor fala em preparação da gordura em “kits autorizados pela Anvisa”
    Que kits seriam esses ?

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    • 5 de junho de 2023 em 09:37
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      Oi Alberto, a técnica se chama "gordura microfraturada". Esse processo pode ser feito manualmente, ou podem ser usados kits comercializados e disponíveis no Brasil. O mais conhecido se chama Lipogens.

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  • 23 de junho de 2023 em 18:01
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    boa noite, vivo em Portugal, tenho 62 anos e sofro há tempos com artrite e artrose nas maos e pernas.estou a fazer avaliaçoes para essa cirurgia de infiltraçao de gordura nas articulaçoes, por nao ter mais cartilagens, causando.me muitas dores.
    o Dr. acha viavel que eu faça esse procedimento? pela minha idade, sou diabética, asmática e tenho fibromialgia.Por favor me oriente, pois sao médicos portugueses e só um hospital aqui faz esse procedimento.
    O Dr acha que corro riscos?
    obrigada desde já.
    Regina

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    • 12 de julho de 2023 em 20:03
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      Oi Regina, tudo depende do grau da sua artrose. Usamos uma escala que vai de 0 a 4. Em geral, nos casos grau 4 o melhor é colocar a prótese, mas em casos de 0 a 3 a infiltração com gordura oferece bons resultados por até dois anos.

      Resposta

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