O que andei vendo no Netflix em agosto

Mês de férias no mestrado, mas de muito trabalho na escola onde sou bibliotecário, o desgostoso agosto foi recheado com alguns documentários não muito agradáveis: a História dos sobreviventes de Hiroshima e o primeiro caso de tiroteio em massa numa universidade americana. Por outro lado, também tive momentos inspiradores, como os bastidores do Programa Apollo, uma História dos esportes radicais e um mergulho no mundo dos golfinhos. Por fim, não pude resistir a um panorama da Rússia czarista apresentado por uma simpática apresentadora e historiadora britânica.


Hiroshima: BBC History of World War II (89 min., 2005) — O primeiro documentário que marcou minha vida foi um filme sobre Hiroshima, que vi numa aula de Geografia na 7ª. série. Desde então, tenho um misto de fascínio e horror pela História (e as histórias) do primeiro bombardeio atômico e sempre me recordo do que aconteceu no dia 6 de agosto de 1945 (data que deveria ser um feriado mundial). Narrado por John Hurt este documentário é obrigatório para os interessados pelo tema. Com imagens de arquivo, reconstituições e animações, esta produção da BBC apresenta as memórias de diversos tipos de sobreviventes da Bomba-A: Dr. Shuntaro Hida, do Hospital Militar de Hiroshima. George Elsey, oficial de comunicação e testemunha do encontro entre Truman e Stalin em Postdam. Paul Tibbets, chefe da equipe e piloto responsável pelo lançamento da Bomba, notório por jamais se arrepender do que fez. Akiko Takakura, adolescente que trabalhava num banco no centro da cidade, a 260 metros do epicentro da explosão. Dick Jeppson, o homem que armou a Bomba e a última pessoa a tocá-la. Morio Ozaki, cadete do exército imperial, que se exercitava no quartel naquela manhã. Teruko Fujii, motorneira de apenas 16 anos, acreditou que seu bonde é que havia explodido de maneira catastrófica. Kinuko Doi, enfermeira num hospital, teve que se arrastar por trilhos ferroviários para chegar em casa. Takashi Tanemori, 8 anos, estava a caminho da escola. Shige Hiratsuka, dona-de-casa, havia acabado de tomar o café-da-manhã com a família e perdeu duas filhas e o marido. Russell Gackenbach, navegador do Necessary Evil, avião de registro fotográfico da missão. Theodore Van Kirk, navegador do Enola Gay, que carregava a Bomba. Shigeru Terasawa, recruta do exército, membro das equipes de resgate. Em tempos em que a ameaça de guerra nuclear volta a nos assombrar, ouvir os testemunhos dos sobreviventes — sobretudo dos japoneses —, é indispensável.


Mission Control: The Unsung Heroes of Apollo (99 min., 2017) — Das pessoas envolvidas em um momento histórico do século XX para os bastidores de outro. Todo mundo conhece os astronautas que chegaram à Lua — John Armstrong, Michel Collings, Buzz Aldrin — mas quem foram os homens que planejaram e controlaram esse e outros voos históricos do Programa Apollo? Dirigido por David Fairhead, essa produção vale-se de imagens e áudios de arquivo recém-liberados ao público para mostrar quem foram esses homens e como eles construíram o programa espacial americano. Com entrevistas com John Aaron, Sy Liebergot, Jim Kelly e Bill Moon (do EECOM, responsável por energia e suporte de vida); Jerry Bostick (dinâmica de voo); Glynn Lunney e Gerry Griffin (diretores de voo); Ed Fendell (comunicações); Bob Carlton (controle do módulo lunar) e o chefão Chris Kraft (diretor de operações de voo), este documentário cobre tanto momentos dramáticos como o incêndio da Apollo I e o acidente da Apollo XIII quanto o bem-sucedido e histórico pouso lunar da Apollo XI. Participações especiais dos astronautas Gene Cernan e Jim Lovell e de membros da atual equipe do Centro de Controle de Missão em Houston.


Tower (82 min., 2016) — Na hora do almoço de 1º. agosto de 1966, no auge do verão americano, o pânico se instalou na Universidade do Texas. Vários tiros começaram a ser disparados do alto da torre do campus universitário. No pátio e nas áreas vizinhas, diversas pessoas foram atingidas, entra as quais uma mulher grávida e seu namorado, um garoto que entregava jornais e um policial. Quem estava atirando? O que aconteceu naquele dia quente? Hoje, é fácil reconhecer essa ocorrência como um tiroteio em massa, mas há meio século esse era um acontecimento inédito nos Estados Unidos. Este documentário busca recriar esse massacre a partir dos pontos de vistas de testemunhas como jornalistas, fotógrafos, radialistas, policiais e vítimas que sobreviveram àquele inferno que — por falhas de comunicação, de treinamento e de equipamento da polícia — durou 90 minutos e deixou 16 mortos e 33 feridos. Estes depoimentos são enriquecidos por imagens e áudios de arquivo e sobretudo por uma reconstituição feita em forma de animação. Além de ser um método de reconstituição criativo, a animação funciona como um mecanismo de suspense: é só no final que ficamos sabendo quem realmente são os entrevistados, como eles reagiram após o fim do massacre e como eles estão hoje. Quanto ao atirador, ele é mencionado apenas de passagem, como o primeiro de uma linhagem de perpetradores de tiroteios em massa em escolas e instituições de ensino americanas ao longo do último meio século. Um detalhe importante que fica de fora é que nesse caso, o criminoso de fato pode ter sido movido por um sério problema mental: após ser morto pela polícia, uma autópsia revelou que Charles J. Whitman era portador de um tumor cerebral que não havia sido diagnosticado por seus médicos.


The Search for Freedom (92 min., 2015) — O que leva uma pessoa a saltar de um abismo, escalar uma montanha, esquiar, pegar ondas ou fazer manobras com skates, bicicletas ou motos? Como surgiram esses esportes radicais? O que transformou essa contracultura esportiva num esporte milionário e popular? Para quem está por fora, são muitas as perguntas que podem ser feitas sobre os esportes radicais (ou de ação). O que todos têm em comum, além do dinamismo e do perigo, é uma origem modesta centrada em jovens desajustados e de gente que nunca se importou muito com dinheiro, como hippies falidos. O que todos buscam é a liberdade: liberdade de estar em lugares diferentes, fazendo coisas diferentes, de explorar os limites do corpo e da mente. Embora seja descrito pelo Netflix como “um mergulho filosófico” no mundo dos esportes radicais, este documentário dirigido por Jon Long e produzido pelo Universal Studios passa longe de sociólogos, psicólogos, filósofos e cientistas para explicar esse fenômeno cultural relativamente recente. Em vez disso, quem fala sobre o assunto são pessoas famosas e anônimas que realmente sabem do que estão falando: Warren Miller, cinegrafista e esquiador há mais de meio século; Bob McKnight, surfista e empresário; Ron Kauk, escalador e reeducador de delinquentes juvenis; Gary Fisher, co-criador do Mountain Bike; Glenn Singleman, paramédico e praticante de queda livre; Robby Nash, multicampeão de windsurf; Jeremy Jones e Annie Boulanger, snowboarders; os skatistas Tony Hawk e Danny Way; o surfista Kelly Slate; Robbie Madison, piloto de motocross; Steve Pezman, jornalista pioneiro na cobertura de surfe. Com imagens (e tombos) de tirar o fôlego, esses e outros atletas de várias idades contam suas histórias com o (e do) esporte, quais foram seus maiores êxitos e seus maiores sustos, como lidam com o medo e explicam como a internet e os vídeos revolucionaram o que fazem e como fazem.


Séries documentais

Dolphins: spy in the pod (2014) — Ser amamentado e depois aprender a se alimentar com a mãe. Jantar peixes à beira-mar ou nos barrancos de um rio. Fazer parte de uma gangue na adolescência, jogar bola e usar drogas com fins recreativos. Fazer amizade com um esquisitão. Cantar uma menina e levar um fora. Dar e receber presentes de amigos e namorados. Segurar vela pra um amigo. Proteger o filho de um estranho ameaçador. Passar a vida inteira com a família e sua cultura. Todas essas experiências nos são bem familiares mas os personagens deste documentário em dois episódios (52 min. cada) não são humanos: são golfinhos. Com narração do 10º. Doutor David Tennant, essa produção da BBC acompanha o cotidiano de golfinhos comuns, rotadores e orcas (que são os maiores golfinhos) em lugares tão diversos como o mar aberto no Pacífico, os mares rasos do Caribe, as águas claras de Moçambique, o litoral da Austrália, da Patagônia, da África do Sul ou um estuário da Carolina do Norte. Isso só foi possível graças a engenhosas câmeras submarinas disfarçadas como tartarugas, baiacus, náutilos, lulas e até um filhote de golfinho. O resultado são imagens de comportamentos que se parecem muito com os nossos, inclusive registros inéditos de uma amizade entre indivíduos de espécies diferentes e um bando de jovens machos ficando chapados ao brincar com um baiacu. A maioria das câmeras robóticas resistiu bem à curiosidade dos golfinhos e de outros animais marinhos — menos a lula, que teve um triste fim ao ser cercada por um bando de garoupas famintas.


Empire of the Tsars: Romanov Russia (2016) — Para entender como a Rússia chegou à revolução comunista em 1917 (e talvez mesmo como é a Rússia de Putin), é preciso saber como foi a Rússia nos três séculos anteriores. Produzido pela BBC este especial em três partes (aprox. 1 hora cada) apresenta um panorama histórico da mais longeva e poderosa dinastia russa — e também a última: os Romanov. Em meio a visitas às principais cidades, palácios, igrejas e museus do país, a historiadora Lucy Worsley conta no primeiro episódio como um seminarista de 16 anos — Mikhail Romanov — tornou-se czar em 1613; como seu filho, Alexei, estabilizou a Rússia reforçando a servidão, o que abriu caminho para a modernização brutal imposta por Pedro, o Grande, que inventa uma marinha, uma capital e faz da Rússia uma potência europeia. Na segunda parte, vemos a Rússia imperial em seu auge, sob os governos de Catarina, a Grande, com sua coleção de palácios, obras de arte, amantes e conquistas militares; e seu neto, Alexandre I, o czar que enfrentou e derrotou Napoleão. O capítulo final mostra que o sucesso da política externa russa não se reverteu internamente e que os últimos czares — dois Nicolaus e dois Alexandres — tentaram lidar com isso de maneiras diferentes, mas só agravaram a situação. O resultado foi um século de reformas e contra-reformas, crescente radicalização, industrialização tardia e movimentos revolucionários que desembocaram nas duas revoluções de 1917, na queda dos Romanov e, eventualmente, no estabelecimento da União Soviética.

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