O que andei vendo no Netflix em novembro

Um crime islandês, o nascimento de uma elefantinha, espiões noir, moças que aceleram na Palestina, dois guias de viagem bem diferentes e uma resenha perdida

 

Out of Thin Air (84 min., 2017) — Quando pensamos na Islândia, podemos nos lembrar dos vulcões com nomes impronunciáveis, da Björk e de uma população pequena e segura. A realidade é que a Islândia também tem crimes e também tem falhas do sistema policial e judiciário. Reykjavík, 1974. Gudmundur Einarsson desaparece em janeiro; Geirfinnur Einarsson, em novembro. Embora desaparecimentos não fossem incomuns, os dois casos dão margem a uma onda de teorias conspiratórias e pressionam a polícia. Entre um desaparecimento e outro, a jovem hippie Erla Bolladóttir e o galã estrangeiro Saevar Ciesielski cometem uma pequena contravenção: desviam um pouco de dinheiro da companhia telefônica onde ela trabalha. Em seguida se casam e têm uma filha. No fim de 74, são presos não apenas pela contravenção mas por supostas ligações com os sumiços de Gudmundur e Geirfinnur, que afinal teriam sido assassinados por Cielsielski e seus colegas. Saevar, Erla e seus amigos confessam os crimes e são presos, julgados e condenados. Esse é o contexto explicado na primeira parte desse documentário coproduzido pela BBC Storyville e dirigido por Dylan Howitt. Na segunda parte, o filme nos mostra como a vida dos acusados foi afetada pelo longo julgamento, influenciado pela pressão da mídia, da política e da população islandesa. Após ser libertado, Saevar passou o resto da vida lutando para reabrir o caso e provar sua inocência. Depois de sua morte em 2011, os familiares dos envolvidos conseguem a reabertura do caso e apresentaram novas evidências, que apontam para confissões forjadas, fruto de torturas psicológicas como centenas de interrogatórios, longos confinamentos na solitária, privação de sono e até afogamentos. Jornalistas, escritores, um policial, um carcereiro e Erla dão suas versões dos fatos e são corroborados pelas investigações do psicólogo forense Gisli Gudjónsson, especialista em falsificação de memórias. Apesar de reaberto, o caso continua sem conclusão: os corpos de Geirfinnur e Gudmundur jamais foram encontrados e tampouco seus possíveis assassinos.


Undercover: how to operate behind enemy lines (61 min., 1943) — Filmes de espionagem sempre foram populares, mas poucos são tão realistas e informativos quanto este dirigido por John Ford. Realizado (e apresentado) como filme de treinamento para agentes secretos americanos, Undercover mostra exemplos de agentes inimigos infiltrados e como foram descobertos e acompanha as jornadas de dois espiões americanos, Al e Charlie. Entre outras coisas, destaca-se a importância de atentar aos detalhes óbvios — uma nota de dinheiro antiquada ou o desconhecimento de gírias podem ser fatais — e outros nem tanto: o agente ideal não deve ter pressa ao se socializar, nem ser impulsivo a ponto de tentar adiantar prazos ou fazer as coisas do próprio jeito. Sobretudo, não deve ser individualista a ponto de atuar em seu papel de forma tosca e agir de forma inconsistente com o disfarce — não pode ter nojinho de ser um pescador ou um mecânico, por exemplo. Além disso, há dicas de como se transportar, onde se hospedar e como lidar com o nervosismo dos primeiros dias da missão. Embora tenha tido valor educativo em sua época, hoje as técnicas apresentadas em Undercover estão claramente ultrapassadas: entrar clandestinamente num país e obter emprego numa indústria vital como uma fábrica de aviões já não é tão simples nestes tempos de espionagem digital globalizada. Ainda assim vale a pena ver o filme por seu valor histórico, pelo ar acidentalmente noir e pela divertida ponta feita pelo diretor: disfarçado de advogado, John Ford (acima, com seus inconfundíveis óculos e cachimbo) aparece como um superintendente de espionagem logo no começo do filme.


Confraria da Velocidade (78 min., 2015) — Não se engane pelo título que parece ser mais um daqueles filmes de corrida hollywoodianos cheio de marmanjos e carros tunados. Essa produção, dirigida por Amber Fares, passa bem longe das pistas de corrida repletas de glamour, fama e dinheiro e nos leva ao complicado mundo do automobilismo palestino. Mais especificamente das quatro participantes da categoria feminina da Palestina: Marah Zahalka, Noor Daoud, Mona Ennab, Betty Saadeh. Coordenadas por Maysoon, elas formam a única equipe de corrida feminina não só da Palestina como de todo o Oriente Médio. Esse documentário apresenta os perfis de cada uma delas: Marah é filha de um protético que a apoia incondicionalmente; Noor sempre foi atlética e hiperativa mas só se encontrou no drift; Mona não tem muita sorte nem habilidade mas se diverte mesmo assim e Betty é uma Penélope Charmosa latino-palestina e a única que chama a atenção da imprensa e dos patrocinadores. Dividida entre administrar uma loja de roupas e preparar-se para um casamento com um piloto jordaniano, Maysoon tem que organizar as quatro numa equipe formada por relações paradoxais de amizade e rivalidade. Juntas, todas enfrentam condições bastante adversas: a falta de dinheiro e recursos não permite grandes modificações em seus carros (o melhor que podem fazer é aliviar o peso). Faltam locais adequados para as corridas, realizadas em estacionamentos, mercados e pistas de pouso de cidades como Ramallah, Jenin, Jericó e Belém. Falta também representatividade na organização das provas: todos os cartolas são homens, o que leva a brigas causadas por uma parcialidade clara a favor de Betty. De uma maneira ou de outra, todas conseguiram apoio de suas famílias ou da comunidade, mas os problemas e riscos trazidos pela ocupação israelense são incontornáveis e dolorosos — a caminho de uma entrevista, Betty é ferida por militares de Israel. Diante de tudo isso, quem será a campeã da temporada?


Naledi: a baby elephant’s tale (90 min., 2016) — Depois de mais de 650 dias, havia muita expectativa no Acampamento Abu, em Botsuana. Kiti, uma elefanta órfã, estava prestes a dar à luz. Após vários dias de trabalho de parto, uma elefantinha nasceu numa noite e recebeu o nome de Naledi. Dirigido por Ben Bowie e Geoff Luck, este documentário retrata o primeiro ano de vida dessa menininha paquidérmica. Nascida em Abu, misto de albergue para elefantes e parque de safári, Naledi teve um começo de vida tão dramático quanto o de sua espécie. Seu nascimento trouxe grande alegria para o pessoal de Abu: Brett Mitchell e Wellington Jana (gerentes do acampamento), Chris Baeti (tratador), Mike Chase (biólogo) e outros funcionários. A alegria, porém, logo deu lugar à tragédia: Naledi perdeu a mãe depois de apenas 1 mês e meio; Kiti teve que passar por uma eutanásia após um grave problema intestinal, que se mostrou intratável. Com a elefantinha correndo risco de morrer por desnutrição, a equipe toma uma decisão drástica: separá-la do grupo para poder amamentá-la artificialmente. É um processo estressante e doloroso tanto humanos como elefantes. Mas é recompensador: em quatro meses, Naledi se recupera plenamente e, aos poucos, começa a passear com seus tratadores, que não a largam por nenhum minuto. No entanto, ela não pode aprender tudo o que precisa com os homens que cuidam tão bem dela. Reintroduzi-la à manada é outro trabalho delicado, que nos mostra como cada indivíduo do grupo reage segundo sua personalidade: algumas elefantas ficam assustadas, como se tivessem visto em Naledi um fantasma; outras lembram-se dela imediatamente e comemoram seu retorno. Em meio a esse e outros dramas, Mike Chase precisa fazer outro trabalho igualmente urgente: contar quantos elefantes existem em Botsuana e em outros países africanos. Ao completar um ano, Naledi parece melhor do que nunca, mas adoece pouco depois. Também vitimada por um problema intestinal, ela precisará ser isolada da manada outra vez, agora para ser operada. A operação é extremamente delicada, colocando em risco a vida da filhote de Kiti. Num final dramático, acompanhamos tanto o resultado desta cirurgia quanto a apresentação dos resultados preliminares do censo de elefantes numa conferência científica. Entre outros números, uma estatística deprimente: a cada 15 minutos um elefante é morto, principalmente para a extração de marfim. O resultado deste comércio ilegal são inúmeros elefantinhos órfãos — e nem todos podem receber os cuidados que salvaram Naledi.


The Birth of Saké (93 min., 2015) — Como se produz o saquê, a bebida nacional do Japão? A resposta está neste documentário… e… eu tinha uma boa resenha/resumo dele, mas cometi o descuido de perder o rascunho. Em todos esses 12 meses nessa indústria vital, essa é a primeira vez que isso me acontece. Assim, fica a recomendação deste bom documentário — do qual posso dizer que revela, de modo delicado, um longo e árduo processo para transformar arroz em bebida — e deixo um pedido de desculpas à japonesa: gomenasai!


Travelogues

Jack Whitehall: travels with my father (2017, 1 temporada) — Diários de viagem são algo bastante comum na literatura de língua inglesa. Com o surgimento da TV, esses livros deram lugar aos travelogues, programas de cunho turístico-cultural. Neste travelogue exclusivo da Netflix (6 episódios de meia hora cada), o comediante Jack Whitehall resolve sair de férias e mochilar pelo sudeste asiático. Só tem um pequeno problema: o pai dele, Michael, vai acompanhá-lo por lugares como Tailândia, Camboja e Vietnã. Típico senhor britânico de 76 anos, mal-humorado e um tanto nacionalista, Mr. Whitehall vai passar poucas e boas em programas como uma estranha loja de bonecas (onde adotam um boneco, Winston), um lual em Phuket, uma exótica refeição cambojana, um teatro de marionetes, um parque temático franco-vietnamita e vários passeios de barco (coisa que Michael odeia). Enquanto Jack quer mochilar e mergulhar na cultura local, Michael prefere ficar bem-acomodado em hotéis chiques e viajar em trens confortáveis (o que nem sempre é possível). Juntos, pai e filho trocam lembranças, vivem às turras mas também conseguem um pouco de diversão — em alguns momentos, Michael se solta e vira Mike. No fim, ambos refletem sobre as mudanças observadas em cinco semanas de viagem. O choque cultural de Michael e as trapalhadas de Jack tentando se enturmar rendem boas risadas nesse diário de viagem fora de série.


Roadkill (2014, 1 temporada) — Seria errado classificar como travelogue um programa que está mais para Jackass sobre rodas? Talvez, mas não é tão absurdo quanto parece, pois a premissa de cada episódio desta websérie apresentada por David Freiburger e Mike Finnegan é sempre a mesma: pegar uma lata velha caindo aos pedaços, deixá-la minimamente funcional (instrumentos como medidor de combustível, velocímetro e vidros são luxos) e cair na estrada, geralmente com destino a algum evento automobilístico. Ex-editores da Hot Rod Magazine, Finnegan e Freiburger representam bem o típico autoentusiasta americano: sem qualquer planejamento, fazem tudo na base do improviso e o resultado é que uma viagem ou conserto de poucas horas pode se desdobrar durante vários dias (o que leva os episódios a variar de 20 a 40 min.). Entre as loucuras apresentadas na temporada disponível no Netflix está um Chevy Monza 1978 turbinado com sopradores de folhas (!!), a disputa entre um Prius híbrido e um Gremlin 75 (que culmina com o híbrido esmagado por um tanque), um Camaro com mais de 1000 cavalos em Bonneville, uma corrida de resistência chamada LeMons (sério!), um Dodge 68 reformado com peças de um motorhome, uma jornada rumo ao Museu do Corvette num Corvette 75 e a tentativa de resgatar uma picape dos anos 1950 de um ferro-velho. (In)felizmente, isso não é tudo: o que está na Netflix atualmente é apenas a segunda temporada. Hoje já são cinco, sendo que episódios memoráveis — como uma viagem de LA ao Alasca numa Ford Ranchero 67, um rat rod vs. um Lamborghini e uma batalha de carros policiais bagaçados — podem ser vistos em um canal do YouTube (só que sem legenda).

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