Persona poética e autor empírico na poesia amorosa romana

Persona poética e autor empírico na poesia amorosa romana, o mais recente lançamento do latinista Paulo Sérgio de Vasconcellos (professor do departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem/Unicamp), é um estudo importante para todos os leitores de literatura. Embora, como o próprio título adianta, o estudo concentre-se na poesia amorosa romana, a discussão teórica subjacente às análises que o estudioso nos oferece é muito útil à aproximação de textos literários de qualquer época.

Prof. Dr. Paulo Sérgio Vasconcellos

Isso porque o tema central do livro – a distinção entre o eu poético (que em latim pode ser nomeado como a persona) da literatura redigida em primeira pessoa e seu autor de carne e osso – ainda hoje rende bastante discussão. [simple_tooltip content=”feitas as mudanças necessárias”]Mutatis mutandis[/simple_tooltip], quantas vezes não vemos, principalmente no âmbito do senso comum, comparações entre a postura de um personagem de um drama de TV e a do ator ou atriz que o interpreta? Para não deixar de mencionar um exemplo literário, podemos pensar, limitando-nos à literatura brasileira, no caso do escritor Ricardo Lísias, que recentemente foi denunciado à polícia por documentos fictícios que criara para dar um “efeito de real” (expressão de Barthes emprestada por Vasconcellos, p. 37) a uma de suas obras.

Como bem ilustra Vasconcellos no primeiro capítulo de seu livro (“Leituras biografistas nos estudos clássicos, reação e contrarreação”), essa leitura, chamada de “biografista” após o Romantismo e que tende a interpretar o que se diz em primeira pessoa na literatura como revelação íntima, foi predominante em certo período da crítica sobre os textos latinos. Por muito tempo, a poesia de autores que viveram em Roma antiga, como Catulo, Propércio, Ovídio e Marcial, foi tomada como testemunho de suas vidas e do período em que a produziram.

Mas, a partir da década de 50, período em que a interferência da abordagem literária New Criticism passou a ser sentida no âmbito dos estudos clássicos, a crítica muda de postura e adota uma leitura reativa ao biografismo corrente. Como explica Vasconcellos, a ideia central é que o “eu” do texto literário é uma persona literária. Dessa forma, para usar, um tanto anacronicamente, a expressão de Barthes (em seu artigo de 1967, “La mort de l’auteur”), é decretada “a morte do autor”. Em linhas gerais, o texto, passa então, a ser lido sem relação com seu autor real: tudo é meramente ficção.

Esse ponto de vista é um dos pilares da obra de Paul Veyne destacada por Vasconcellos. Publicado em 1983, o estudo A poesia erótica romana ainda que bastante inovador, já que se inseria no “levante” contra a tendência biografista vigente, não deixa de esbarrar nos limites que esse tipo de leitura traz, conforme comenta Vasconcellos:

 

“A leituras fundamentalmente biografistas reagiu-se muito, e com dureza; e, se a leitura biografista parecia ingênua e empobrecedora, a reação a ela acabou incorrendo em outro modo simplista de interpretação, o de tratar tudo o que se diz em primeira pessoa na poesia elegíaca amorosa romana como ficção, sem problematizar esse conceito de ‘ficção’” (p. 37).

 

Ao longo dos demais capítulos do livro, o leitor moderno acompanha a “caça” filológica que Vasconcellos empreende ao buscar avaliar qual era a percepção que os leitores contemporâneos aos poetas elegíacos romanos (e, claro, dos poetas mesmos) tinham da poesia em primeira pessoa. Vasconcellos para tanto leva em consideração primeiro excertos da poesia romana e, por fim, de textos retóricos de Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.). Somos conduzidos por esse passeio de maneira fluida e aprazível: além da linguagem rigorosa, mas acessível também ao leitor não especialista, os textos latinos são sempre acompanhados de tradução para o português.

 

O capítulo “Em torno de Catulo 16 e sua recepção” centra-se no mencionado poema do autor republicano, mas não deixa de considerar outros carmina que contribuem para a compreensão de sua poética. Em brilhante análise, Vasconcellos nos mostra como esse poema é quase “performativo”. No célebre poema em questão, Aurélio e Fúrio teriam acusado o poeta Catulo (c. 87 – c. 54 a.C.), afirmando que o conteúdo da obra revelaria que seu autor não é decente. Ao responder à acusação, a persona poética de Catulo faz com que, num universo regido por essa leitura biografista, os próprios acusadores provem desse veneno. Contudo, no referido poema, afirma Vasconcellos, “em suma, há em germe uma percepção próxima da noção moderna de persona poética, mas a assunção clara do caráter totalmente fictício de ego na poesia amorosa jamais é feita” (p. 82-3).

É a essa delimitação de, digamos, contornos “borrados” entre o que é real e o que é fictício que Vasconcellos se dedica com mais profundidade nos capítulos seguintes (“Persona poética e falácia elegíaca” e “Filosofia, retórica e a recepção da poesia amorosa romana”). Ali, o estudioso ilustra como as supostas confusões entre autor de carne e osso e persona poética que encontramos em autores como Ovídio (43 a.C. – 17 d.C.) e até mesmo na poesia lírica de Horácio (65 – 8 a.C.) não só estão baseadas na ambiguidade entre essas duas instâncias que faz parte do próprio gênero elegíaco, como também a reproduzem.

 

Para não me estender, limito-me a um dos exemplos mencionados pelo estudioso: a nona elegia do terceiro livro dos Amores de Ovídio. Ali o poeta imperial chora a morte de seu antecessor elegíaco, Tibulo (60? – 19? a.C.). Narra-se seu funeral, em que estariam presentes, não só sua mãe e sua irmã, mas também as duas amadas cantadas por Tibulo, Nêmesis e Délia. Ambas disputam o posto de “real” amada do poeta, trocando farpas na ocasião do narrado funeral. Nêmesis teria dito a Délia que era a ela que Tibulo dedicava seus versos quando morreu. Muito do jogo ovidiano com fatos que podem dizer respeito ora ao autor de carne e osso, ora a sua persona poética só será percebido pelo leitor que conheça a poesia de Tibulo – e esse certamente é o caso dos contemporâneos desses poetas.

Vasconcellos nos mostra como Ovídio, brincando com a referida instabilidade na delimitação entre o que é verossímil na vida real e o que é verossímil no universo elegíaco traz à vida as amadas que o poeta cantara, equiparando-as a personagens reais (no caso, a mãe e a irmã de Tibulo), e subverte o universo que Tibulo criara, (re)produzindo uma rivalidade entre as amadas.

 

Vale a pena retomar, enfim, a menção do célebre poema de Fernando Pessoa, a que Vasconcellos recorre na abertura de seu estudo. Como o estudioso aponta, a “dor” do poeta fingidor de Autopsicografia é fingida, resultado de um discurso poético. Ao concluir a leitura de Persona poética e autor empírico na poesia amorosa romana, saímos enriquecidos na capacidade de avaliar essa “dor” que os elegíacos romanos cantam. Ao sermos regalados com análises que, sem deixar de lado o rigor e a qualidade de um estudo filológico, compõem uma leitura agradável, podemos compreender um pouco melhor a leitura que se tem feito dessa “dor” codificada. Vasconcellos nos ensina que ideal será levar em conta tanto a tradição poética em que esses autores estavam inseridos, quanto o jogo elegíaco que estavam criando e a que remetem, evidenciando – sem nunca desnudá-la – a mimese de sua poesia.

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