Uma amiga mexicana me mandou uma imagem: dois homens de terno (o terno indica uma classe social que não é a popular) conversam. Um diz: – Me corrigieron “Ler”. O outro responde: – No lo puedo “Crer”.
Não me dei conta, imediatamente, do que estava em jogo (tratando-se de outra língua, a presteza nunca é muito grande). Perguntei-lhe detalhes (não vou me imolar aqui…). Ela me deu o contexto. Que é o seguinte:
Um Secretário de Instrucción Pública falava a um grupo de alunos em uma escola e os incentivava a “ler” (ele disse “ler” mais de uma vez). Ao final, uma menina o chamou de lado e lhe informou que não se diz “ler”, “pero ‘leer’”. Ele achou graça, elogiou a aluna etc.
Depois disso é que surgiu a piada que está narrada no primeiro parágrafo, que é uma montagem. A graça está no fato de que, na resposta (no lo puedo “crer”), ocorre o mesmo fenômeno que ocorre em “ler”. Que é o seguinte:
Em espanhol “culto”, as formas do infinitivo destes dois verbos são “leer” e “creer”. O fato de o Secretário dizer “ler” indica, evidentemente, que esta pronúncia está desaparecendo: as duas vogais são substituídas por uma só (uma crase): “ler” e “crer”.
Observe-se que o fenômeno ocorre nos dois casos, o que favorece a tese dos sociolinguistas que defendem que, nos mesmos contextos, ocorrem as mesmas variações (ou mudanças).
Observe-se, também, que esta mudança em curso no espanhol do México (pelo menos), como o indica a fala do secretário, e depois, a montagem com “crer”, já ocorreu no português.
Mesmo quem não conhece linguística histórica ou não tem um manual que descreva as mudanças ocorridas pode ver o registro em dicionários como o Houaiss, que fornece uma etimologia mínima (eu grifo leer e creer):
ler: cf. esp. leer, it. lèggere, fr. lire; ver le- e leg- e as remissivas aí citadas; f.hist. 1258-1261 leer, sXIII liia, sXIII leer, sXIV leendo, sXIV lyi, sXV le, sXV leese, sXV lia
crer: pelo lat.vulg. *credére > port. arc. creer; ver cred-; f.hist. sXIII creer, sXIII creo, sXIV creyo, sXV crer, sXV creio
O fato histórico pode ser atestado. A variação no espanhol deve ser bem óbvia, pelo menos para muitos falantes. Se não fosse, a piada não funcionaria (como não funcionou comigo imediatamente).
Observe-se, também, por muito relevante, que uma aluna de uma escola modesta aprendeu que se deve dizer “leer”.
É um fato conhecido que instituições diversas (a escola, a imprensa, a própria escrita) retardam mudanças linguísticas. Pode-se apostar que, se elas não existissem, ou se sua política fosse outra, ninguém mais saberia que as formas verbais em questão são (?) “leer” e “creer”. Para os menos letrados, e mesmo para letrados em situação informal, já não são essas.
E a piada seria impossível.
O que seria lamentável.
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