Andrei Zalizniak e os Problemas de Linguística

Andrei Zalizniak, 2016. Fonte: https://philologist.livejournal.com/8785784.html

Faleceu ontem, aos 82 anos, Andrei Anatólievitch Zalizniak, o criador do gênero dos problemas de linguística autossuficientes. Embora relativamente pouco conhecido no Brasil, na Rússia Zalizniak é reconhecido como um dos principais linguistas do século XX, inspirando gerações de linguistas mais jovens, na universidade, na escola e nas olimpíadas de linguística. Para ilustrar a importância de sua obra, frisemos algumas de suas grandes contribuições:

Linguística computacional before it was cool

Enquanto ainda estudava na Faculdade de Letras da Universidade Estatal de Moscou, Andrei passou um ano na Escola Normal Superior em Paris e, orientado pelo estruturalista André Martinet, redigiu o primeiro dicionário russo-francês, que continha informações minuciosas acerca das complexas propriedades morfológicas de cada palavra da língua russa. Na época, sem o computador como recurso, procedia escrevendo cada palavra em uma ficha, que era então posta em uma bandeja de pão. Ao todo, foram necessárias quatro bandejas, cada uma contendo 25.000 fichas. O dicionário foi publicado em 1961.

Em 1965, Zalizniak defendeu a tese “Classificação e síntese dos paradigmas nominais da língua russa moderna”, que foi submetido como tese de candidatura (o primeiro grau de pós-graduação no antigo sistema soviético) mas foi reconhecido como uma tese de doutorado em ciências (o título mais alto, normalmente considerado equivalente a um pós-doutorado no ocidente), dando ao estudante o título correspondente (esse procedimento não era muito usual, mas o valor incomum do trabalho levou a isso).

Duas décadas de trabalho mais tarde, em 1977, o linguista publicou um dicionário gramatical da complexa morfologia russa, uma obra monumental utilizada até hoje como base para quase todo o uso computacional da língua russa, desde softwares até as ferramentas de busca e de tradução automática, como o Google e a russa Yandex. De fato, podemos dizer que a obra de Zalizniak sobre a língua russa foi precursora de muito do que viria a acontecer na linguística computacional.

O famigerado dicionário de 77

Linguística histórica: das cascas de bétula à Campanha de Igor

Mais tarde, Andrei estudou cartas escritas entre os séculos XI e XV, em cascas de bétula, por residentes da antiga região de Novgorod.

Detalhe de uma carta na casca de bétula. Fonte: https://russkiymir.ru/publications/210552/

Ao fazê-lo, ele descobriu que o que se pensava ser russo mal escrito era, na realidade, uma variedade eslava extinta: o chamado novgorodiano antigo. Andrei seguiu seu trabalho participando das escavações até seu fim, dando palestras a cada ano e destrinchando as novas cartas escavadas, bem como cada um de seus aspectos linguísticos, de forma acessível para o público geral. O compêndio das informações linguísticas sobre o novgorodiano antigo foi publicado pela primeira vez em 1999.

O linguista também demonstrou conclusivamente como o sistema tônico “caótico” do russo pode ser derivado de um sistema consideravelmente mais regular atestado nos registros medievais da língua, através de um conjunto de regras relativamente simples.

Outro trabalho interessante foi a comprovação da autenticidade do Conto da Campanha de Igor, um poema épico datado do século XII e de extrema importância para a história da literatura russa. Antes de Zalizniak, alguns especialistas acreditavam que o manuscrito havia sido falsificado no século XVIII. Então ele procedeu a uma acurada análise de características (por exemplo, a ordem dos clíticos presentes) e, com isso, descobriu que o texto obedecia a regras até então desconhecidas, mas comprovadas por outros textos, descobertos depois do suposto ato de falsificação.

“A expulsão do Khan Batyga”, ilustração de Ivan Bilibin para o Conto.

Problemas de Linguística

Além das suas contribuições científicas, Zalizniak deu importantes contribuições para a difusão da linguística na sociedade. Segundo Alexander Piperski, ele “não era apenas um grande cientista, mas também uma pessoa que difundiu em torno dele a alegria da investigação científica (…) mostrando que a ciência não é apenas útil e importante, mas também excitante.” Nesse âmbito da difusão, talvez sua principal contribuição tenha começado em um artigo de 1963, intitulado “Problemas de linguística”. Nele, apareciam problemas como o seguinte:

Abaixo estão algumas frases em albanês, assim como as suas traduções para o hebraico clássico (na chamada representação consonantal).

albanês hebraico clássico
1. Mizë pi — yšth zbwb.
2. Miza pinin — štw zbwbym.
3. Mizë pinte — šth zbwb.
4. Mizat pinë — yštw hzbwbym.
5. Miza pinë — yštw zbwbym.
6. Miza pi — yšth hzbwb.

Traduza do hebraico clássico para o albanês: šth hzbwb; štw hzbwbym.

Num primeiro momento, pode parecer assustador: como alguém que não sabe nem albanês nem hebraico pode traduzir frases de uma língua para outra? Mas o propósito de Zalizniak era precisamente este: que os jovens não precisariam ter medo de analisar dados em línguas não-familiares; com um corpus adequado e o uso de raciocínio e intuição linguística, qualquer estudante interessado poderia decifrar as estruturas linguísticas subjacentes, mesmo sem nunca ter tido qualquer contato prévio com as línguas em questão. Assim nascia o conceito de problemas de linguística autossuficientes.

Foi assim que, dois anos depois, em 1965, aconteceu a primeira Olimpíada Tradicional de Linguística de Moscou, para alunos de ensino médio. Claro que a olimpíada ainda não era tradicional, mas o nome pode ser entendido hoje como um desejo que se tornou realidade: em 2018, esta olimpíada, agora abrangendo toda a Rússia, terá sua 48a edição; além disso, ela inspirou olimpíadas de linguística similares em mais de 30 países, além de uma olimpíada internacional (esta história já foi contada aqui no blog).

Zalizniak compôs 26 problemas de linguística utilizados na olimpíada de Moscou nos anos seguintes, além de ter participado ativamente na preparação e discussão de diversos outros problemas. Para darmos mais um gostinho, segue outro problema do artigo original:

Observe as seguintes frases bascas. Uma delas contém um erro gramatical.

1. Gizona joaten da.
2. Gizonak zaldia ikusten du.
3. Astoa atzo joaten zan.
4. Gizonak atzo joaten ziran.
5. Astoak zaldiak atzo ikusten zuen.
6. Zaldiak gizona ikusten du.
7. Zakurrak joaten dira.
8. Gizonak zakurra atzo ikusten zuen.
9. Zakurrak astoak ikusten ditu.
10. Zaldiak gizonak atzo ikusten zituen.
11. Zakurra atzo joaten zan.
12. Gizonak astoak atzo ikusten zituen.

Identifique o erro e corrija-o, substituindo apenas uma palavra.

Andrei Zalizniak em conferência com os estudantes olímpicos da Rússia na Escola de Linguística de Verão 2017. Créditos: Boris Iomdin

Durante sua atividade como linguista, Andrei Zalizniak fez parte do corpo docente das universidades de Moscou, Constança, Provence, Paris X e Genebra, ministrando cursos de sânscrito, árabe clássico, entre outros. Ele se manteve em plena atividade e consciência até o último momento e, sem sua obra, a OBL — nem as outras olimpíadas de linguística — provavelmente não existiriam do jeito como as conhecemos.

*Texto escrito em parceria com Andrey Nikulin e Cynthia Herkenhoff, a partir de artigos, entrevistas e notas publicadas. Para saber mais, recomendamos dois artigos em russo em memória ao linguista, publicados no N+1 e no Afisha Daily.

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