Fala de Criança: Extratos de um Diário (III)

Como se dá a entrada da criança no universo das convenções sociais?  Alice volta a nos brindar com cenas de seus 2 a 3 anos de idade. São passagens da vida diária que tocam o domínio chamado de polidez convencional, permeando a surpreendente relação da criança com a língua.

Observar a fala da criança ao longo dos primeiros anos de vida, em contexto natural, tem nos feito conhecer “ocorrências divergentes” (“erro” para muitos…), o que permite apreender os meandros do processo de aquisição da linguagem pela criança.

Tal recorte empírico, alimentado pela relativa facilidade em colher ou em receber (de colaboradores) episódios desta natureza1, expõe momentos marcantes da lingua(gem) na infância, explorados em estudos que se voltam, em geral, aos aspectos gramaticais da fala da criança: morfologia, léxico, sintaxe.

Não menos importante é atentar para os aspectos relacionados ao uso da língua, em situações nas quais importa considerar quem fala, a quem se fala, as expectativas de cada qual no cenário da interação; em breve, os diferentes atos de fala que compõem o diálogo criança-adulto em cada situação particular.2

Fazer pedidos, dar ordens, agradecer, elogiar, opinar, advertir, desculpar-se estão entre eles. Acompanhar como surgem tais atos entre os pequenos coloca-nos diante de episódios que relevam de um tratamento no interior da pragmática, 3 e não dispensam o investigador de considerá-los como material para uma exploração de aspectos gramaticais.

Convidamos o leitor a conhecer alguns extratos de Diário – prática do passado mas também do presente – fonte onde se acumulam registros curiosos, divertidos, que são aproveitados pelos pesquisadores da atualidade. São conhecidos como dados anedóticos. Anedóticos nos dois sentidos que esta palavra tem no dicionário: anedóticos porque são episódicos e anedóticos porque são engraçados, provocando o riso.

Folheando o Diário de Alice, protagonista das publicações anteriores neste Blog (Extratos de um Diário I e Extratos de um Diário II), selecionei quatro ocorrências para uma abordagem preliminar.

Na primeira, Alice (Al, daqui para frente, 2;11.08 de idade), ao entrar numa padaria, faz um elogio à mãe (M, daqui em diante) e surpreende a todos naquele cenário, porque este encerra um predicado que nem sempre dá para se fazer em público.

Observe-se que o título atribuído ao episódio pela mãe-diarista  (uma enfática interjeição), acompanhada de um comentário entre parênteses, atestam a interdição de certos dizeres, socialmente censuráveis. 4 A menos que seja o caso, de uma criança…

EEEEEEEPA!

(1)

Na padaria tomando café da manhã, Alice diz toda meiga para OS atendentes do balcão: “Ol[h]a a minha mamãe go[s]tosinha!”. (eu quase me enfiei debaixo da mesa e o pai desta criança quase teve uma síncope! kkkkkkk)

(2;11.08)

Mas não é só isso que temos a extrair do Diário de Alice. Folheando o material que nos legou a mãe da menina, encontramos no mesmo ambiente, em registro anterior, um diálogo no qual Alice desfila adjetivos para os pais, começando pela mãe.

 

(2)

Alice, apontando pra mim, diz pra mulher da padaria: “Minha mamãe!”. A mulher da padaria puxa conversa: “Sua mamãe? Você acha a sua mamãe bonita?”. Alice responde: “Minha mamãe é linda e meu papai é ‘lindono’!”

                                                                                                                      kkkk

(2;7.15)

 

 

 

Afora o tom deliciosamente espontâneo da menina, não temos nada a acrescentar sobre “minha mamãe é linda”, irrepreensível na sua boa formação gramatical e no bem-comportado elogio, meigo e carinhoso. Mas diante de “meu papai é lindono”, predicação que na sequência cabe ao pai, sobra para o linguista explorar, na formação da palavra lindono (que por certo procede de lindona), um fato gramatical digno de nota. É da forma feminina que se forma na fala de Al a palavra derivada, aplicada ao pai.

Ao que parece, contribui para a graça do episódio a surpresa de que se reveste a sequência meu papai é lindono, produto de uma relação que, naquele pronunciamento, cede à simetria formal com um termo da cadeia associativa latente (mamãe lindona/ papai lindono). Com efeito, o deslizamento para lindono (em vez de lindão) não esconde de onde salta a novidade: uma relação alimentada in absentia com lindona. 5

Passemos a outro registro do Diário de Alice.

A menina interage com a mãe. Nesta ocasião, aos 2;8.4 de idade, ao ouvir uma expressão menos polida da menina, surge a ocasião de M fazer um reparo ao modo de falar da filha. Um aspecto do uso da linguagem a ser cultivado enquanto norma de polidez convencional, espaço onde são benvindas expressões ou fórmulas de uso cristalizado: com licença, por favor ou modalizações como: você poderia fazer X?, exercitadas no convívio social.

Educação

 

(3)

Alice agachadinha no canto da sala, diz: “- sai p[r]a lá, mãe!”

“- Epa! sai pra lá não! como é que se diz?”, pergunto eu, confiando na boa educação que ela recebeu e esperando um “dá licença” mais polido.

“- sai p[r]a lá pufavô!”

kkkkkkk

(2;8.4)

QUADRINHO EXTRATOS 3
Desenho por Melissa Alachev 6

 

 

Al, no episódio (3) acima, transposto em dois quadrinhos, faz um pedido ou dá uma ordem (hesito quanto à natureza de seu ato de fala), mas podemos estar seguros de que sua fala Sai p(r)á lá, mãe! seguiu de forma tal que despertou em M, na sua providencial posição de mãe, uma advertência: Epa! Sai prá lá não!, acompanhada de uma solicitação: Como é que se diz?

O que se passa no turno seguinte de Al mostra um acordo e um desacordo. Como vê o leitor, a menina mostra-se sensível à solicitação da mãe. Mas entre o que a mãe desaprova na fala de Al (o sai p[r]a lá, dirigido a ela, sua interlocutora) e o que ela, a criança, percebe em sua fala como merecedora de reformulação, existe um ligeiro descompasso.

Al repõe exatamente o mesmo enunciado, Sai p[r]a lá, seguido da fórmula por favor. A expressão “dá licença” daria conta, naquele contexto, de substituir todo o enunciado, com o efeito (desejável) de suavizar o pedido, evitando-se “sai”, que soa duro ou pesado. Isto é assim apenas para o adulto, pois a menina naquele contexto se limita a acrescentar-lhe o por favor, indiferente ao efeito que esta expressão ao lado de “sai” provoca na sua interlocutora.

É a ocasião de explorar questões afeitas à língua e ao discurso.

Diante das amostras aqui exibidas, eis algumas perguntas que me ocorrem: o que se corrige na fala da criança? Qual o efeito que a intervenção do adulto tem sobre o dito, ou sobre o dizer, no cenário das trocas verbais do dia-a-dia? (Notemos, entre parênteses, que M não corrige a filha em nenhuma de suas predicações em (2); já sobre o dizer, em (1) e em (3) há o que corrigir ou objetar). Outras indagações, igualmente relevantes são:  o que a criança percebe como erro ou como inadequação quando é corrigida? A correção, quando é pontual, será sempre efetiva?

Vejamos o que o episódio (4) tem a acrescentar a este respeito. Este foi recolhido em idade mais inicial, aos 2;3.6 de idade de Al, expondo uma cena entre ela e sua cachorrinha.

Arrependida pero no mucho

Imagem ilustrativa, retirada de akc.com

(4)

(Alice deu de colocar apelido em todo mundo e começou a chamar a cachorra de “feiosa” ontem. Disse pra ela parar com aquilo porque a Nina iria ficar triste. Ela se agachou na frente da cachorra e disse em tom arrependido)

“- Nina, di[s]cu[l]pa! é só b[r]incadeira, viu, feiosa!”

rsrsrs

(2;3.6)

 

Feiosa, endereçado à cachorrinha Nina, é alvo de leve censura feita pela mãe. De pronto Al se desculpa junto à parte “ofendida”, dirigindo-se à cachorrinha, com a fala Nina, di[s]cu[l]pa! é só b[r]incadeira, viu, feiosa! num pedido de desculpa. Desculpar-se é um ato que supõe um voltar atrás, numa reconsideração do que foi dito. Mas a designação “feiosa” não desaparece da fala da menina. Aliás, é com ela que Al arremata o pedido de desculpa – fato que, apreciado por M, a leva a intitular o episódio : “Arrependida pero no mucho” .

Ao leitor, fica o convite para enriquecer o painel acima com outros achados que contribuam para ampliar a discussão desse domínio de investigação. Neste universo, linguagem e experiência com o trato social transcorrem juntas, ambas em constituição; e, não raro, nos fazem sorrir com dados que são de graça. 7

 

NOTAS

1. É o caso da mãe de Alice, Daniela Marini-Iwamoto, de quem recebi um volume que perfaz 4 anos de registros. Meu  profundo agradecimento a ambas, Daniela e Alice. Na apresentação que faço dos dados, nesta e em outras edições do Blog, tenho conservado os critérios notacionais de Daniela, bem como os títulos atribuídos a cada episódio. Neles se faz presente a marca que a fala da criança produziu sobre a observadora e/ou sobre os circundantes.

2. Consulte-se o capítulo “Do things with language”, do livro First Language Acquisition, Eve Clark 2009, Cambridge University Press.

3. Os dados se inscrevem na temática “(in)flexibilidade pragmática”, que juntas desenvolvemos, Cecilia Rojas Nieto (Universidad Nacional Autónoma de México),  e eu (UNICAMP),  no interior de Proyecto 10 Estudio de la Adquisición del Lenguaje, no XVIII Congresso Internacional da ALFAL (julho de 2017, Colômbia).

4. Realçado com maiúsculas, o artigo OS chama a atenção do leitor: os atendentes do balcão eram homens.

5. No dito da criança um indício das forças que atuam no mecanismo linguístico, convocando as ideias de Saussure para explicar o movimento (até certo ponto imprevisível) da língua na fala da criança (Figueira 2015, “A Analogia: seu lugar na trajetória linguística de cada criança.” In Da Hora, Dermeval e alii, ALFAL 50 anos: contribuições para os estudos linguísticos e filológicos. João Pessoa: Ideia. 1773-1816). Tal dado vem se somar aos demais analisados dentro do projeto “Em torno da analogia: a contribuição de Saussure para a análise da fala da criança”, apoiado pelo CNPq (2014-2018), instituição à qual endereçamos nossos agradecimentos.

6. Agradeço a Melissa Alachev, que desenhou o quadrinho acima. Nele acrescentamos o diálogo entre M e Al.

7. Figueira 2007, “Humor and language acquisition: anecdotal data and their route in the history of language acquisition studies”, in: Guimarães, E. & Barros, D. P. (org.), History of Linguistics 2002. Benjamins Publishing Ed., 157-167.

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