A autoconsciência nos torna humanos?

Chimpanzé se reconhecendo no espelho
Chimpanzé se reconhecendo no espelho

Por: Karen Waldemarin Kalil
Mestranda em Linguística na Unicamp

Será que seu animal de estimação sabe que existe? Como você sabe que existe?  Você provavelmente não soube responder à primeira e, à segunda respondeu que sabe que existe porque você pensa ou porque tem consciência. Uma definição elementar de consciência seria saber da nossa existência enquanto seres individuais no mundo e chamaremos, nesse texto, de autoconsciência. Então, tentando provar que existe autoconsciência em animais não-humanos, foi proposto o teste do espelho de Gallup. Nesse teste eram feitas marcas de tinta em chimpanzés sedados e, ao serem reanimados, eram colocados em frente ao espelho a fim de observar se compreendiam que a mancha estava em seus próprios corpos e assim o fizeram. Segundo Gallup, isso indicava que os chimpanzés eram autoconscientes. O teste popularizou-se e foi feito com diversos animais. Os resultados mostraram que a maior parte das espécies não”passou” no teste, pois, ao invés de limpar a mancha, confrontam a sua própria imagem no espelho.  Desse modo, Gallup concluiu que esses animais enxergavam a própria imagem como um outro indivíduo e, portanto, não seriam autoconscientes.

Os animais que “passam” no teste (se reconhecem no espelho) são todos os grandes primatas (gorila, orangotango, bonobo, chimpanzé e humanos), golfinhos e elefantes. O teste do espelho começou a ter resultados heterogêneos entre uma mesma espécie e isso levou à críticas em relação à precisão do teste e a conclusão de que se um animal se reconhece, ele  limpa a mancha, afinal, é possível que se reconheçam no espelho, porém, não se preocupem com a mancha. Portanto, o teste não é preciso em medir a autoconsciência e claramente a nossa consciência não resume-se apenas ao autorreconhecimento. Logo, é mais produtivo pensar nas diferenças entre nós e as outras espécies para entendermos como funciona a nossa cognição. A comparação mais comum é entre seres humanos e outros primatas, principalmente o chipanzé, nosso parente mais próximo.

A primeira diferença que podemos pensar é na anatomia do cérebro. Os bebês chipanzés nascem com a maior parte de seu cérebro já formada, então, seus comportamentos serão, em sua maioria,  instintivos. Enquanto que os seres humanos nascem com um cérebro com plasticidade cerebral, ou seja, a maioria dos nossos comportamentos é aprendida ao longo da vida. Segundo Tomasello (2003), a distinção dos aprendizados humanos se divide em três tipos básicos: aprendizagem por imitação, por instrução e por colaboração. As últimas duas dependem da teoria da mente, definida como “única e muito especial forma de cognição social qual seja, a capacidade de cada organismo compreender os co-específicos como seres iguais a ele, com vidas mentais e intencionais iguais às dele. Essa compreensão permite aos indivíduos imaginarem-se “na pele mental” de outra pessoa, de modo que não só aprendem do outro mas também através do outro” (TOMASELLO, 2003, p. 7). Portanto, a teoria da mente é essencial para o aprendizado humano porque permite que o conhecimento seja transmitido culturalmente e isso é o que nos diferencia dos outros animais.

Os macacos, apesar de conseguirem inovar e criar soluções criativas, não possuem a teoria da mente a qual viabiliza uma transmissão social confiável para permitir a preservação de sua forma melhorada até que surja uma nova melhoria (TOMASELLO, 2003). Por exemplo, um chimpanzé pode criar uma ferramenta para caçar e isso evidencia a existência de um pensamento intencional, planejado. Além disso, algumas inovações tecnológicas são aprendidas por imitação. Entretanto, isso não garante uma transmissão cultural do conhecimento mais técnico da confecção e do uso, que permita evolução cultural-tecnológica no uso de ferramentas por causa do modo de aprendizagem dos macacos.

Além de permitir a transmissão cultural e o avanço tecnológico, a teoria da mente também nos permite prever situações bem como descrever estados mentais e isso se reflete na língua. Por exemplo, quando digo “Eu pensei que ele viesse”, o verbo “pensar”, assim como o uso do modo subjuntivo no verbo da oração subordinada remete a uma situação mental e nos leva à conclusão de que, na realidade, “ele não veio”. Portanto, a relação entre linguagem e teoria da mente ocorre logo no início da vida e, ambas se desenvolvem progressivamente. De acordo com De Villiers (2007), a intenção está relacionada à linguagem na medida em que a leitura de, por exemplo, um gesto intencional que aponte para um objeto, contribui para produzir diversos contextos de uso e relacioná-lo a um nome. Apenas a leitura da direção do olhar e de apontamentos intencionais ajudam a delimitar o possível significado de uma palavra assim como encaixá-la nas categorias sintáticas.

O reconhecimento do funcionamento da mente do outro.

Desse modo, com a linguagem é possível expressar intenções (Eu pretendo ser linguista), desejos (Eu quero ser linguista), crenças (Eu acredito na linguística) e falsas crenças (Ela acredita que entende de linguística, mas não entende). O teste mais conhecido para comprovar a existência da Teoria da Mente chama-se “teste de Sally e Anne” e é feito com crianças. No processo de teste, após a introdução de duas bonecas (Anne e Sally), começa-se a contar uma história em que Sally pega uma bolinha de gude e a esconde em uma cesta. A personagem Sally então deixa a sala e sai para uma caminhada. Enquanto ela está fora, Anne pega a bolinha da cesta de Sally e coloca em sua própria caixa. Sally é então reintroduzida e a criança é questionada sobre a questão-chave, a questão de crença: “Onde Sally procurará sua bolinha?”. Se a criança responder “na cesta”, isso mostra que ela entende uma falsa-crença, ou seja,  Sally acredita que a bolinha está na cesta pois foi onde ela a deixou,  essa crença é falsa pois a bolinha está na caixa. Esse teste mostra o desenvolvimento da teoria da mente, pois é preciso entrar na pele mental  da personagem da história para entender que quando a personagem não está no ambiante, ela não vê as mudanças e, portanto, vai procurar no último lugar em que viu a bolinha de gude.

Em suma, a teoria da mente  nos permite passar nossos conhecimentos culturalmente através, principalmente, da linguagem, que não serve apenas para comunicar, mas também para representar estados mentais (intenções, desejos e crenças) nossos e de nossos co-específicos. Portanto, autoconsciência humana não se resume à esfera individual (saber que existimos), pois está relacionada à esfera social (saber que temos uma vida mental assim como os seres da nossa espécie) e, desse modo, nos reconhecermos através do outro  e isso diferencia a nossa cognição da dos outros animais.

Para saber mais:

[1]  A reação de diversos animais ao espelho: https://www.youtube.com/watch?v=GaMylwohL14

[2] Teste do espelho em elefantes: https://www.youtube.com/watch?v=-EjukzL-bJc

[3] Documentário “teoria da mente” DA BBC: https://www.youtube.com/watch?v=LK6eep6GQFI&t=113s

Referências:

DE VILLIERS, J. The InterfaceS of Language and Theory of Mind. Lingua. International review of general linguistics. Revue internationale de linguistique generale, v. 117, n. 11, p. 1858–1878, nov. 2007.


DE VILLIERS, P. A. (2005). The Role of Language in Theory-of-Mind Development: What Deaf Children Tell Us. In J. W. Astington & J. A. Baird (Eds.), Why language matters for theory of mind (pp. 266-297). New York, NY, US: Oxford University Press.

O teste do espelho de Darwin tem algo a ver com a consciência? Disponível em: <https://hypescience.com/teste-do-espelho-pode-nao-ter-nada-a-ver-com-autoconsciencia/>. Acesso em: 16 abr. 2018.

TOMASELLO, M. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. [s.l.] Martins Fontes, 2003.

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