Como as crianças aprendem a falar – Fonética e Fonologia

Foto de Robert Broadie (Wikimedia Commons)
[Texto de Mariana Hungria, mestranda em Linguística na Unicamp]

Sobre a aquisição de linguagem

A aquisição da linguagem sempre foi uma das áreas mais atraentes e estudadas da Linguística. Desde o início da sua fundação como ciência, a origem e os mecanismos que governam essa habilidade, tem fascinado não só profissionais da área como pessoas comuns. Talvez seja porque é a habilidade que nos distingue de todos os outros animais, ou até mesmo porque pais e mães de todo o mundo sempre esperaram ansiosamente pelos primeiros sons de seus filhos, balbucios aparentemente aleatórios aos quais se procura dar sentido. É comum os pais esperarem ansiosamente para ouvir o primeiro “papai” ou “mamãe” que a criança irá enunciar, seja em qual língua for.

O linguista Roman Jakobson chegou a publicar um artigo seminal em 1962, que abordava o assunto intitulado “Why mama and papa?” ou “Por que mamãe e papai?” em português. No artigo, Jakobson discute as possíveis causas que levariam os bebês a elegeram certas palavras como suas primeiras durante o desenvolvimento da fala.

Nas décadas que sucederam os estudos de Jakobson, estudos nas mais diversas línguas voltaram suas atenções à aquisição da linguagem. Algumas áreas como a sintaxe foram bastante prolíficas nesse tema, sobretudo os trabalhos de inspiração Gerativista, proposição teórica fundada e propagada pelo linguista Noam Chomsky na década de 50 e de importante destaque até os dias de hoje. Porém, talvez a área da Linguística que tenha mais se debruçado sobre o tema tenha sido a área de Fonética e Fonologia.

Fonética e Fonologia

A grosso modo, a fonética é a área da linguística que se dedica a estudar os sons da fala no que diz respeito à suas características acústicas e físicas e a fonologia privilegia o estudo da organização dos sons nas diferentes línguas. Historicamente, essas duas faces da mesma “moeda” têm sido consideradas como áreas distintas ou indissociáveis, dependendo da proposição teórica assumida.

No contexto da aquisição da linguagem, a fonologia tem feito muitas contribuições importantes para desvendar as origens e, principalmente, o processo de aquisição da fonologia pelos bebês.

O padrão Consoante-Vogal

Um dos temas estudados pelos fonólogos é o fenômeno da co-ocorrência de consoantes e vogais (CV). O fato dos bebês apresentarem a preferência de combinar consoantes e vogais, formando a sílaba canônica CV1, na maioria das línguas do mundo é quase um universal linguístico.

A co-ocorrência CV pode ser explicada pela influência do ambiente linguístico ou por fatores biomecânicos enraizados na evolução da espécie humana.

Teorias de orientação biodinâmicas tem prevalência no debate: as que se ocupam do trato vocal superior, mais destacadamente a Teoria Molde/Conteúdo de Davis e MacNeilage (1995) e a Fonologia Articulatória de Browman e Goldstein (1992); e a Teoria do Modelo Constritor Laríngeo proposta por Esling (2012), que se ocupa do trato vocal inferior.

Enquanto a Teoria Molde/Conteúdo procura explicar as preferências CV por fatores puramente biomecânicos através de mecanismos relacionados à nutrição e mastigação do bebê, a Fonologia Articulatória oferece uma explicação alternativa que concebe os movimentos da mandíbula e língua como gestos interiorizados. Segundo essa teoria, a co-ocorrência CV pode estar ligada à sinergia entre os gestos chamados consonantais e os vocálicos, que possuem durações diferentes.

Já a teoria MCL, que se ocupa do trato vocal inferior, propõe que a origem da fala está na laringe. De acordo com essa teoria, os primeiros sons, independentemente do ambiente linguístico no qual a criança está inserida, são produzidos nessa região do trato vocal. Segundo Esling, o trato vocal inferior da criança é mais adequado para combinações envolvendo consoantes laríngeas. A medida que o bebê se desenvolve, a fala vai se tornando cada vez mais bucalizada, ou seja, as vocalizações passam a se originar também das regiões mais superiores do trato vocal.

No caso do português brasileiro, um estudo recente de Hungria e Albano (2016), buscou, através do estudo de caso de três crianças brasileiras entre seis e vinte meses de idade, analisar a aquisição da fonologia observando e coletando dados da interação espontânea entre as crianças e seus cuidadores

Esse estudo buscou integrar as três proposições teóricas mencionadas além do ambiente linguístico, a fim de explorar o processo de bucalização e as preferências CV no português brasileiro.

Os resultados não refutam nem confirmam as proposições teóricas mencionadas, mas sugerem que esse processo pode depender de características individuais de cada criança e apontam para a necessidade de mais estudos que investiguem não só o papel da influência do ambiente, como também a interação entre criança e adulto durante o processo de aquisição.

De qualquer forma, o tema da aquisição da linguagem continua sendo não somente fascinante como fundamental para compreendermos o que nos faz humanos – a linguagem.

Nota

1 Há evidências de línguas cuja sílaba canônica é VC, porém elas são raras.

[Texto de Mariana Hungria, mestranda em Linguística na Unicamp]

 

REFERÊNCIAS

Browman, C.; Goldstein, L. (1992). Articulatory phonology: an overview. In: Phonetica 49.3–4, pp. 155–180.

Davis, B., Macneilage, P., (1995). The articulatory basis for babbling. Journal of Speech and Hearing Research, 38(6), pp.1199-1211.

Esling, J., (2012). The Articulatory Function of the Larynx and the Origins of Speech. Proceedings of the Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society 38.

Hungria, M., Albano, E. C., (2016). CV co-occurrence and articulatory control in three Brazilian children from 0:06 to 1:07. In: Gradus – Revista Brasileira de Fonologia de Laboratório v.1 n.1. pp. 67-95.

Jakobson, R. (1962). “Why ’mama’ and ’papa’?” In: Selected Writings. Vol. I. The Hague: Mouton, pp. 538–545.

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