Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho): uma breve apresentação

Você já ouviu falar em Dislexia, em Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou em outra patologia relacionada à aprendizagem? Conhece alguém que toma medicamentos por conta delas?

Pois a Professora Doutora Maria Irma Hadler Coudry, professora titular do Departamento de Linguística, do Instituto de Estudos da Linguagem (Unicamp), questiona a forma como essas patologias têm sido encaminhadas e banalizadas, ou seja, a forma como crianças e jovens diagnosticados com alguma(s) dessa(s) patologia(s) são tratados. Durante vários anos ela acompanhou e alfabetizou crianças que receberam o diagnóstico de patologias que não apresentam. Para lutar contra a patologização da aprendizagem e o excesso de medicalização, Coudry fundou, em 2004, o CCazinho: Centro de Convivência de Linguagens.

Este post pretende fazer uma breve apresentação desse centro que, apesar da grande repercussão que causa em todos que dele participam – sejam pesquisadores, alunos de graduação, professores, profissionais da área da saúde ou as crianças e jovens que já o frequentaram – ou que dele tomam conhecimento, é pouco conhecido pela própria comunidade acadêmica do Instituto de Estudos de Linguagem (IEL/Unicamp), no qual está sediado.

CCazinho: o que é e para o que serve?

Diante de um cenário de crescente aumento da patologização e medicalização do processo de aquisição da escrita e do efeito direto disso na aprendizagem; da marginalização daqueles que ainda não escrevem ortograficamente e comentem erros naturais, e até esperados, durante esse processo, e daqueles que se distanciam de um ideal de sujeito, a professora Maza (como Coudry é conhecida) e seus alunos de graduação e pós-graduação, na área de Neurolinguística, decidem interferir nessa realidade para tentar evitar que esse equívoco se propague sem um outro olhar que o questione. Munida dos princípios teórico-metodológicos da Neurolinguística Discursiva[1] (que abreviamos como ND), que considera a linguagem, o cérebro/mente e o sujeito como construtos humanos historicamente constituídos (COUDRY, 1986, p. 80), a referida professora fundou, em 2004, o Centro de Convivência de Linguagens (CCazinho).

Conforme Coudry,

[O CCazinho] É um lugar de pesquisa, formação extensão onde se desenvolve um trabalho com a linguagem, por meio de práticas de leitura e escrita com crianças e jovens que receberam diagnósticos neurológicos (Dificuldades de Aprendizagem, Dislexia, Alteração do Processamento Auditivo, Transtorno do Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade, Deficiência Mental) que produzem efeitos negativos em seu processo de escolarização e em sua vida. A atribuição de tais diagnósticos tem sido uma justificativa eficaz para o fracasso e a exclusão escolar – contra o que nos posicionamos – e desenvolvemos uma atitude e uma prática frente à fala, leitura e escrita que fortalece as crianças e suas famílias no enfrentamento da questão, o que tem possibilitado reverter tal condição. (2016, p. 4, grifo nosso)

O CCazinho é constituído por pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Neurolinguística Discursiva[2], por alunos que tenham cursado a disciplina AM-035 Ler e escrever: acompanhamento longitudinal de crianças e jovens, por crianças e jovens com dificuldades de leitura e escrita (avaliados pela professora Coudry e seus alunos, antes de começarem a frequentar o centro, para que sejam identificadas suas reais necessidades e dificuldades de leitura e escrita) e pelos pais e responsáveis por essas crianças e jovens.

As práticas realizadas no CCazinho, que ocorrem semanalmente, são organizadas em três momentos e espaços distintos: (i) o grupo de pais e responsáveis, (ii) as sessões de acompanhamento coletivo e (iii) as sessões de acompanhamento individual, a serem detalhados a seguir.

No grupo de pais e responsáveis (i), um ou mais pesquisadores ou alunos apresentam materiais (textos e vídeos) que buscam desconstruir o discurso de patologização da aprendizagem, veiculado pela mídia e pela fala de muitos profissionais da área da educação e da saúde, promovendo debates sobre o tema. Assim, aqueles que frequentam esse grupo têm a chance de refletir sobre o que muitos chamam de doença, patologias relacionadas ao processo de aprendizagem, sobre o diagnóstico dado às crianças ou jovens pelos quais são responsáveis, assumindo, então, um novo olhar para o processo de aprendizagem destes e adquirindo argumentos para lutarem contra o que, até então, era entendido como verdade inquestionável.

Enquanto o grupo de mães/pais/responsáveis tem suas atividades (i), ocorre a sessão coletiva (ii), que é composta por todas as crianças e jovens que frequentam o CCazinho, por pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Neurolinguística e por alunos da disciplina AM, citada anteriormente. Nas sessões coletivas, que têm duração de duas horas, são propostas atividades envolvendo a leitura e a escrita e que tenham relação com o uso real da linguagem, que possam ser identificadas pelos participantes como cenas do seu cotidiano e que, por isso, façam sentido para eles. Alguns exemplos dessas atividades são: relatar oralmente ou por escrito uma experiência vivida, por exemplo, uma exposição; escrever o roteiro para uma cena de casamento de festa junina; elaborar um folder com os principais pratos de um restaurante; fazer pesquisas na internet sobre lendas urbanas e lê-las em seguida; escrever uma história, na qual cada participante do grupo contribua com um personagem e com uma parte da história; caminhar pela universidade para conhecê-la por meio dos escritos encontrados (como panfletos, pichações, placas de carro), conforme mostrado na imagem a seguir:

Fonte: Banco de Dados em Neurolinguística (BDN: CNPq: 312522/2013-4).
Professora Maza (à direita) e participantes do CCazinho em atividade de leitura e escrita dos escritos pela universidade (IFCH/Unicamp, maio de 2018)

Cabe esclarecer que todas essas atividades são realizadas com o acompanhamento de um ou mais cuidadores (pesquisador ou aluno da disciplina AM), que fazem intervenções em relação à escrita e à leitura dos participantes e esclarecem dúvidas que possam surgir. Essas atividades distanciam-se do que muitas vezes as crianças vivenciam em suas escolas, com tarefas descontextualizadas realizadas em seus cadernos e sem sentido para elas, além de, frequentemente, limitarem-se à cópia de textos da lousa. Essas sessões em grupo são todas gravadas em vídeo e armazenadas no Banco de Dados em Neurolinguística[3], a fim de se tornarem temas de pesquisa de graduação e pós-graduação.

Depois da sessão coletiva (ii) e após um intervalo para um lanche e um momento de convivência entre as crianças, os pais e os pesquisadores, iniciam-se os acompanhamentos individuais (iii). Nesse momento, cada pesquisador ou aluno de graduação faz o acompanhamento longitudinal de uma criança, orientado pela docente responsável pelo centro, no qual realiza atividades que focalizam suas dificuldades de escrita/leitura, com o objetivo de compartilhar de sua entrada para o mundo das letras, compreendendo e analisando seu ritmo e caminho de aprendizagem.

 

Considerações finais

Após essa breve explicação sobre o trabalho realizado no CCazinho, cabe destacar algumas considerações importantes sobre as práticas nele realizadas. Uma delas é a de que todas as atividades realizadas nesse espaço consideram a importância de se lidar com a criança como um ser de seu tempo e de se compreender do que gostam, além de expandir e criar novos interesses (COUDRY; BORDIN, 2017). Além disso, “erros” são entendidos como dificuldades que podem ser superadas e como partes naturais do processo de aquisição de leitura e escrita (ABAURRE; COUDRY, 2008).

Para concluir esta apresentação de um espaço que tanto tem contribuído com reflexões e práticas sobre o processo de aquisição de leitura e escrita de crianças e jovens, retomo o que já foi apresentado como o principal objetivo do CCazinho, que é o de despatologizar os processos normais de aprendizagem, que, muitas vezes, podem ser interpretados como indicadores de patologias por um desconhecimento do processo de aquisição da leitura e da escrita. Exemplo disso é a aquisição da representação da sílaba complexa (como pra, trem, sor, mon etc.) em que a criança hesita diante da posição das letras na sílaba, o que não tem nada de patológico; é um processo intermediário pelo qual a criança passa até chegar à forma ortográfica.

É preciso esclarecer que não se nega a existência de patologias que possam afetar a aprendizagem, mas não nessa proporção e nem diagnosticadas do modo como são. No CCazinho, busca-se considerar que cada criança tem um ritmo de entrada no mundo das letras e que a dificuldade para transpor algumas situações não deve ser encarada como patologia, mas sim como parte do processo de aprendizagem (COUDRY; BORDIN, 2017). Para isso, é preciso encarar o que a Linguística tem a dizer sobre o processo de aquisição de leitura e escrita.

Ressalto que descrevi sucintamente o que o CCazinho – e suas práticas – representam nas pesquisas neurolinguísticas. Apenas uma breve entrada. Para aprofundar o conhecimento sobre o CCazinho e as contribuições da ND para as questões aqui apresentadas, recomendo a leitura dos trabalhos já publicados na área e o vídeo indicado a seguir.

 

Para saber mais

Assista ao vídeo “Alfabetização e Linguística II”, uma entrevista que a TV Cultura Digital fez com a professora Maza, na qual ela fala sobre questões linguísticas do processo de alfabetização, consideradas pela Neurolinguística Discursiva e seus pesquisadores no CCazinho.

 

Fonte: <https://www.youtube.com/watch?v=TjUyPvHv7JY>. Acesso em: 20 maio 2018.

Referências bibliográficas

ABAURRE, M. B.; COUDRY, M. I. H. Em torno de sujeitos e olhares. In: Estudos da Língua(gem), v. 6, n. 2, 171-191, 2008.

COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso. Discurso e afasia: análise discursiva de interlocuções com afásicos. Tese de doutorado. Unicamp, Campinas, 1986.

COUDRY, M. I. H. et al. (Orgs.). Caminhos da Neurolinguística Discursiva: teorização e práticas com a linguagem. Campinas: Mercado de Letras, 2010.

COUDRY, M. I. H. Neurolinguística Discursiva: afasia e infância. Um encontro possível / inevitável. Bolsa de produtividade em pesquisa. Nova proposta [CNPq]. Campinas: Laboratório de Neurolinguística, Departamento de Linguística, Iel, Unicamp, 2016.

COUDRY, M. I. H.; BORDIN, S. M. S. Ambientes Discursivos na Afasia e na Infância. In: CONGRESSO IBERO-AMERICANO EM INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA, 6., 2017, Porto. Relatórios… Porto: CIAIQ, 2017.

TV CULTURA DIGITAL. Alfabetização e Linguística II. [entrevista concedida pela da Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry à TV Cultura, sobre suas pesquisas como as questões de linguística na alfabetização e a importância do professor neste processo]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=TjUyPvHv7JY>. Acesso em: 28 nov. 2017.

[1] Área da Linguística instituída por Coudry, com sua tese de Doutorado Diário de Narciso, [1986], 1988.

[2] CCA.

[3] Projeto Neurolinguística Discursiva: práticas com a linguagem e banco de dados, que recebeu o parecer CEP/UNICAMP: 326/2008.

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