Fala de Criança: Extratos de um diário IV

Foto de cottonbro no Pexels
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Estamos de volta com extratos de diários parentais, esta rica fonte de dados da linguagem na infância. Desta feita, com episódios de Al, e também de J, duas meninas que foram acompanhadas pelas mães (linguistas) em seu percurso com a língua materna, o português1. Os dados que seguem à frente compreendem o intervalo entre 2;3 e 2,6 de idade, no caso de Al2 ; e 2;3 e 3;7 de idade, no caso de J.

Para começar reunimos duas peças, uma de cada criança, cujos diálogos com a mãe (= M), naquele contexto, encerram manifestações claras de um desejo de autonomia da criança frente a uma iniciativa por ela assumida. Vejamos primeiramente as falas de J dirigidas à sua mãe no episódio (1) abaixo.

O diálogo começa com o gesto decidido da garota em aprender a ler horas num relógio educativo: Eu vou ensinar eu (ver turno a). Na sequência, dentro do mesmo episódio, é outra a situação, o que leva o observador a reconhecer, no turno b, uma solicitação de ação conjunta. Em tela, os verbos ensinar e aprender, respectivamente: o primeiro surge numa construção em que a menina projeta uma ação comandada por ela mesma; o segundo aparece num apelo à interlocutora para que assuma o papel de ensiná-la. Neste turno, o verbo que aparece é aprender, numa estrutura gramatical tal que pode ser glosado por ensina eu3.

(1) (J pega um relógio, brinquedo educativo usado pela mãe para, movendo os ponteiros, ensinar a filha mais velha a ler as horas; J quer imitar a mãe; decidida, declara)

      J. Eu vou ensinar eu. (a)

(pouco depois, pedindo ajuda)

      J. Aprende eu! (b)                             ( 3;6.14)

A cena se passa aos 3;6.14 de idade de J. A menina muda de posição: assume sua independência num ato mas desiste depois. J não está sozinha em registro desta natureza. O diário de Al exibe um episódio que ilustra movimento semelhante ao de J. Veja-se a descrição precisa do contexto, feita pela mãe de Al, ao registrar a cena em que interage com a filha (2;3.24 de idade), cena na qual a menina protagoniza inicialmente um lance de independência, para depois ceder à ajuda de M. (na apresentação de (2) abaixo conservamos as notações convencionais originais, mantendo inclusive, depois do registro da idade da criança, o título dado pela mãe à pequena cena).

(2) Alice, depois de brigar comigo porque queria colocar o tênis sozinha (e depois de brigar com o tênis para ele entrar no pé dela), chega toda meiga perto de mim e diz: 

Al. Mamãe, põe pa mim, pufavô? rsrsrs. (2;3.24) “humildade também se aprende!”

Como abordar o episódio (1)? E o episódio (2)? As cenas, em cada caso, transcorrem em dois tempos.

Em (1), num primeiro tempo, a menina, que já presenciara M ensinar sua irmã mais velha a ler as horas num relógio educativo, quer fazer o mesmo que a irmã, e toma a iniciativa de uma ação que prescinde da ajuda da mãe: Eu vou ensinar eu. Um pouco adiante, porém, pede ajuda desta para usar o brinquedo: Aprende eu! Busca então obter o resultado desejado através de uma ação que solicita um coadjuvante: aquele que a ensinará a usar o brinquedo.

Em (2), entre a tentativa de colocar o tênis sozinha, momento inicial, e a busca por ajuda, é o insucesso no propósito inicial que faz a virada de posição. Tal como se lê na transcrição, isto se reflete na mudança de tom de que se reveste a fala de Al no segundo tempo, que passa a meigo, no momento de convocar ajuda da mãe: Mamãe, põe pá mim, pufavô? Vale valorizar o cuidado na anotação deste elemento da cena, cuja relevância para uma apreciação completa do diálogo contribui para expor as relações intersubjetivas daquele diálogo. 

No quadro de uma abordagem geral sobre a gramática dos modos de causação nas línguas naturais (uso adulto), Shibatani e Pardeshi (2002) reconhecem entre os tipos de “sociative construction” modalidades distribuídas em três tipos.  Os autores as ilustram com construções que representam relato de situações entre mãe e filho, em exemplos do japonês, traduzidos para o inglês. Numa delas, descrita como modalidade assistiva (ing. assistive), o evento concebido como assistencial envolve dois participantes (mãe e filho), ambos com potencial agentivo, o primeiro sendo o que presta ajuda. A sentença que expressa esta modalidade é exemplificada em japonês, recebendo a seguinte tradução para o inglês: “mother is making the child pee”.   

Movida pela contemplação do que acontece em nosso espaço específico de observação – a linguagem nas cenas do cotidiano infantil – e inspirada sobretudo nas particularidades de meu encontro com falas de J e de Al, de que (1) e (2) são exemplos de um desejo de autonomia, parece adequado considerar, na análise dos dados da interação criança-adulto, a natureza da ação em pauta naqueles contextos. Ou seja, como esta é considerada pela criança: passível de uma ação solitária ou dependente de ajuda? Quero crer que estes aspectos entram, em cada situação específica, como parcialmente determinantes da opção por um recorte sob o qual o evento se deixa apresentar ou representar na fala da criança. Revelam, aliás, a dose de confiança que a criança deposita sobre o sucesso de sua própria iniciativa.

Com a perspectiva aberta para considerar tais aspectos, acreditamos que o quadro, assim considerado, permite avaliar de que modo o contexto enunciativo, incluindo idas e vindas, interfere na dinâmica do diálogo, ao ponto de produzir enunciados que começam com o sujeito da enunciação – a criança – no comando do processo (prescindindo de ajuda), e adiante, numa espécie de volta-atrás, manifestando aceitação da ação conjunta de seu alocutário. Além dos aspectos discursivos, cabe notar que os episódios deixam ver outras questões, que afetam o léxico e a gramática, as quais importam na descrição do percurso da criança com sua língua materna, nosso objeto de estudo. Sirva de exemplo o episódio (3) abaixo, extraído do diário de J.

Aos 2;9 de idade, o diálogo mantido com a mãe, pede atenção sobre a maneira com a menina relata uma conquista que é dividida com outrem. Tal relato tem início quando, no seio da rotina familiar, surge uma novidade, esta recebida com admiração pela mãe e pela irmã de J.

(3) (M e A, a irmã de J, se surpreendem ao ver J cantar uma canção) 

M. Quem te ensinou?

J. A tia Licinha me aprendeu isso. (= ensinou)

(a mãe se admira; interpretando a surpresa da mãe como referente ao conteúdo do que dissera, J. confirma)

J. É sim. A tia Licinha me aprendeu.              (2;9.18)  [retomado de Figueira 2019: 122)

Analisemos (3) em detalhe4. Ao entoar uma canção, J causa surpresa à mãe e à irmã. Em resposta a M, que indaga: Quem te ensinou?  J declara: A tia Licinha me aprendeu isso. Desperta a atenção de M tanto o emprego causativo de aprender por ensinar (um fato relativo ao léxico e à sintaxe), quanto a novidade no repertório de canções conhecidas da filha. Quanto a J, esta reage à surpresa estampada no rosto da mãe, afastando a dúvida que ela supõe ter descoberto na expressão desta, uma dúvida relativamente à verdade do dictum. Ao que parece, J presume que a mãe duvida do que ela acaba de dizer.  Deste modo, seu turno de fala seguinte é iniciado por expressão de confirmação: É sim, seguido de: A tia Licinha me aprendeu.

Estamos diante de uma formulação em que a criança concede mérito pelo feito a Tia Licinha, que é apresentada como iniciadora (principal autora?) de uma novidade – novidade que é ali recebida, no contexto da família (mãe e irmã mais velha), com interesse e orgulho. Esta pessoa a quem J se refere atuou numa cadeia de acontecimentos em que não é esquecida, ou melhor, não é deixada fora de perspectiva, apagada do relato. Tia Licinha é apresentada, neste evento, como participante ativa (fase causadora, adotando-se a terminologia de Shibatani) do resultado alcançado (a fase causada)5. No ato de fala de J fica evidente o que a menina quis declarar, ou seja, que ela aprendeu a cantar a canção pela ação de outra pessoa, que a ensinou. Um feito exitoso. Como se nota, a questão de mencionar o coautor de um feito admirável, não foi, neste caso, objeto de hesitação ou dúvida, e colocou em cena o papel desempenhado pelo agente iniciador.

Analisados lado a lado, os episódios (1), (2) e (3) põem à mostra as vicissitudes6 de cada ato de fala em diálogos sobre um feito envolvendo a criança e um adulto. No caso de (1) e (2) estão ambos presentes na cena enunciativa, a qual culmina com ação compartilhada. No caso de (3), um terceiro participante (ausente da cena), é evocado como desempenhando um papel no resultado de uma conquista cuja autoria está em questão. Os modos de dar expressão a esses acontecimentos constroem-se no uso da linguagem, a partir das situações interpessoais da criança, vivenciadas no que chamo de nichos domésticos, conforme se vê em (1) a (3). Elas brotam de cada instância discursiva, e podem atestar ora uma conquista dividida em mérito, ora uma meta ou conquista que pretende apresentar-se, tanto quanto possível, como autossuficiente.

Estes exemplos conferem importância a um aspecto da agentividade implicada em modos ou matizes de causação, aptos a relevar fatores intersubjetivos (Figueira 2019), os quais inseridos na análise, tornam possível apreender em que ponto de um discurso algo do contexto situacional torna-se determinante da opção por um recorte, na nossa terminologia, “compartilhado” ou “dividido”7.

Esta breve exposição poderia encerrar neste ponto. Mas há um episódio a ser considerado junto a (2). Revendo o episódio (2), lá encontramos Al teimando em colocar o tênis sozinha, rendendo-se depois à ajuda de M para fazê-lo: põe pá mim, pufavô? Segue-se agora outro lance do dia-a-dia da menina, o qual convida-nos a conhecer não só um feito do discurso, mas também de língua

(4) (Alice no colo, com sono, pede) 

Al. Mamãe, do[r]me eu, pufavô? (= faz eu dormir)     (2;5.26)

No uso corrente adulto, o verbo dormir ocorre numa estrutura em que o sujeito gramatical é a sede do processo. No pedido de Al, dormir – um verbo de mudança de estado – é promovido a valor causativo: mamãe, do[r]me eu, pufavô? Para dar conta da caracterização sintático-semântica dessa instanciação de Al aos 2.5.26 de idade, pode-se recorrer a Benveniste (1976), trazendo alguns pontos levantados pelo autor sobre a conversão da voz média à voz ativa, assunto do capítulo “Ativo e médio no verbo”, no livro Problemas de Linguística Geral.

A explicação de Benveniste põe em tela exemplos do grego, onde constata o autor a presença de um jogo de oposições de “extraordinária flexibilidade”8. Ora, a documentação em aquisição do português nos pôs diante não só de (4), mas de grande número de exemplos semelhantes, feitos marcantes do percurso da criança com a língua, já discutidos em pesquisa precedente (Figueira 1984, entre outros) 9. A instanciação (4) é apenas mais um exemplo que ilustra o movimento pelo qual nos corpora infantis um verbo tipicamente médio como dormir vem a ser dotado de voz ativa, produzindo como resultado nova relação gramatical via transitividade. No caso do pedido feito por Al, o “eu” que aparece no enunciado integra uma ação solicitada a um outro actante, e nesta formulação torna-se o objeto desta ação; ou se melhor, a entidade afetada por esta ação. Tal flexibilização – empresto o termo a Benveniste – altera a construção do verbo dormir, normalmente de diátese média, o qual surge, na fala da criança, em diátese ativa-causativa, num apelo que, em (4), começa com o vocativo mamãe, sinalizando uma ação cujo papel, iniciador, é conferido à mãe pela parte interessada, a criança. Assim é que, no nosso exemplo, dormir torna-se interpretável (parafraseável) por fazer dormir ou fazer adormecer. Quanto ao discurso, resta concluir, o pedido surge endereçado à sua alocutária, a mãe, aquela que, naquela interação, detém tal papel, no mais íntimo (e aconchegante!) dos contextos do aqui-agora doméstico, de que os apontamentos diários são a melhor expressão10.

Referências bibliográficas

Benveniste, Émile. 1976. Problemas de linguística geral. São Paulo, Companhia Editora Nacional.

De Lemos, Claudia Thereza Guimarães. 2002. Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação, Cadernos de Estudos Linguísticos, 43: 41-69.

Figueira, Rosa Attié. 1984. On the development of the expression of causativity: a syntactic hypothesis, Journal of Child Language, 11, Cambridge, Cambridge University Press, 109-127.

_________, Rosa Attié. (inédito). Causatividade: um estudo longitudinal de suas principais manifestações no processo de aquisição do português por uma criança, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas, acessível online (teses IEL/UNICAMP).

_________, Rosa Attié. (2019). Inovações na expressão de agentividade: episódios marcantes da trajetória linguística da criança, Lingüística, vol. 35-2, 105-127. ISSN 2079-312X en línea 90020.

Saussure, Ferdinand de. ([1916] 1971). Curso de linguística geral, São Paulo, Cultrix.

Shibatani, Masayoshi. 1976. Syntax and semantics, vol IV: The Grammar of causative constructions, New York, Academic Press.

_____, Masayoshi e Prashant Pardeshi. 2002. The causative continuum, em The Grammar of causation and interpersonal manipulation, Amsterdan/Philadelphia, John Benjamin.

Notas

1 Extratos de um diário IV foi escrito na vigência da bolsa de produtividade em pesquisa/CNPq (pr. 307008/2017-7), no interior do projeto intitulado “Empiria e teoria na Aquisição de Linguagem: alguns domínios em perspectiva”. Endereçamos nossos agradecimentos ao CNPq pelo apoio à pesquisa. A autora é vice-líder do Grupo de Pesquisa em Aquisição de Linguagem/GPAL, grupo cadastrado no CNPq.

2 Nossos agradecimentos a Daniela Marini-Iwamoto por ter cedido o material do diário de Al. Agradecimentos extensivos a Al.

3 Documentamos em mais de um corpus o verbo aprender empregado por ensinar, registrando-se também o inverso: ensinar por aprender (ver Figueira, tese inédita, e também outros escritos). Um exemplo deste último emprego pode ser encontrado no diário de J, três dias após o registro do episódio (1). Veja-se abaixo:

(J censura o pai que fala um palavrão)

J. Não fala XX X XX que o rei não gosta.  (turno a).  

M (interessando-se). Quem te ensinou isto?

J. Eu que ensinei sozinha (turno b).                                      (3;6.17)

A flutuação no emprego de tais verbos é um espaço de observação adequado para trazer Saussure à investigação dos fenômenos afeitos ao léxico em vias de organização na fala da criança. Aprender e ensinar guardam entre si um elo semanticamente pertinente, e sua maneira de aparecer nos diálogos fica evidente em contextos de enunciação intimamente relacionados à marcha do discurso em que se inscrevem: aquele que vem a saber algo geralmente é interpelado acerca de quem o fez saber ou ensinou – como se lê no diálogo acima (e também em (3) supra). A relevância para uma abordagem do léxico da criança, via relações associativas, ainda nos faz atentar para outra relação, implícita no turno (a) acima: o rei de quem fala J não seria Deus ?

4 Retomado de publicação recente (Figueira 2019), este diálogo, aqui incluído, tem sua análise ampliada.

5 Usamos a terminologia de Shibatani (1976).

6 Empresto de De Lemos (2002) a palavra vicissitudes, por caber bem para o material em exame.

7 Esta e outras questões desse pequeno escrito serão retomadas, numa ampliação da análise (trabalho em andamento).

8 Uso a expressão aplicada ao grego pelo autor (1976: 189), transpondo-a livremente para o dado que tomo em consideração, ao exemplificar um fato que comparece no percurso da criança com a língua.

9 Ver, para tal, Figueira, tese de doutorado (inédita) e/ou Figueira (1984).

10 Do corpus de J, veja-se o episódio documentado no diário da menina, por volta dos 2;4 de idade.

(a mãe se encaminha com a criança em direção ao quarto)

A. Cê vai naná eu?   ( 2;3.22)

Afora o uso causativo do verbo nanar (um fato gramatical), a pergunta da menina cê vai naná eu? reflete o papel desempenhado rotineiramente por quem a põe para dormir ou por quem a faz dormir. Não muito diferente do que se vê no episódio (4) de Al, a cena expõe a língua(gem), enquanto sede de relações intersubjetivas.

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