A televisão no Brasil: 70 anos e muitos discursos depois…

por Silmara Dela Silva (UFF)[i]


Em setembro de 2020, a televisão completou 70 anos de sua primeira transmissão no Brasil. E você pode estar se perguntando: qual a relação entre esse fato histórico, aparentemente relacionado apenas ao campo da história das comunicações no país, e as questões linguísticas, que são temas desse blog? Temos que “a linguagem é um fato social”, como já afirmava Saussure ([1916] 2006, p. 14), no clássico Curso de Linguística Geral. Analisar o modo como acontecimentos se inscrevem na história, ao produzir sentidos que se marcam na língua, é uma maneira de se estudar a linguagem, buscando compreender, assim, o seu caráter discursivo. A televisão, ao ser trazida para o Brasil e inaugurada em 18 de setembro de 1950, produziu muita agitação na área das comunicações e, com o passar dos anos, promoveria novos hábitos e práticas sociais; e mesmo antes de efetivar suas transmissões, inicialmente restritas à cidade de São Paulo, ela já era assunto nas páginas da imprensa nacional.

Página inicial da reportagem “Televisão”,
publicada na revista O Cruzeiro,
15 de outubro de 1949

São esses muitos dizeres sobre a televisão, presentes em jornais e revistas com ampla circulação no país, antes e durante o início da década de 1950, que constituíram o corpus de minha tese de doutorado, que tem como título “O acontecimento discursivo da televisão no Brasil: a imprensa na constituição da TV como grande mídia” (DELA-SILVA, 2008).[ii]

Arquivo

Em um percurso por arquivos públicos do estado de São Paulo[iii], constitui o meu arquivo de pesquisa, composto por inúmeras reportagens, notas e propagandas encontradas na revista O Cruzeiro, uma publicação do grupo Diários e Emissoras Associados, responsável pela instalação das duas primeiras emissoras de televisão no país. Também coletamos textos publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo, um dos principais periódicos em circulação à época, e pela revista Manchete, concorrente direto de O Cruzeiro. Na leitura desse arquivo, percebi que os dizeres sobre a televisão na imprensa antecedem bastante a sua chegada propriamente na capital paulista. Desde 1948, dois anos antes da instalação da primeira emissora – a TV Tupi em São Paulo –, a televisão já era discursivizada pela imprensa, ganhando as páginas de jornais e revistas, e constituindo-se, assim, como um acontecimento jornalístico no Brasil.

Reprodução de anúncio que circulou no
jornal O Estado de S. Paulo,
em 28.07.1950.

Para entender o que estou chamando de acontecimento jornalístico da televisão no Brasil, faz-se necessário compreender antes o que é discurso. Conforme teorizado por Michel Pêcheux, o discurso é entendido como “efeitos de sentidos” que se dão a partir da língua em condições de produção determinadas (PÊCHEUX, [1969] 1997, p. 82). Quando se estuda o discurso, tomamos para análise o modo como um dizer constitui sentidos, levando em conta as relações de força e de sentidos que o determinam, ou seja, considerando suas condições de constituição, formulação e circulação (ORLANDI, 2001). Ao nos voltarmos aos dizeres na imprensa sobre a televisão buscamos, assim, analisar as condições de produção desses discursos, questionando-nos acerca do modo como a imprensa constitui sentidos ao dizer da televisão e alocá-la imaginariamente como uma presença no país.

Em suas pesquisas acerca do discurso sobre o Brasil e os brasileiros, Orlandi (2003, p. 12) afirma que há discursos que podem ser considerados fundadores, uma vez “que vão nos inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente e que nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo conhecido”. Embora o discurso sobre a televisão brasileira na imprensa não possa ser considerado um discurso fundador, já que ele se constitui retomando discursos outros, a partir de já-ditos sobre mídias conhecidas à época, tais como o rádio e cinema, por exemplo, ele também se vale da discursivização da TV como algo já dado e já sabido, para o qual se projeta um futuro necessário para a constituição dos futuros telespectadores: sujeitos consumidores dos aparelhos de televisão, que logo estariam à venda no mercado; e também consumidores de toda a produção televisiva que se vislumbrava iniciar.

Acontecimento jornalístico

Reprodução de anúncio que circulou
no jornal O Estado de S. Paulo,
em 28.07.1950.

É assim que a revista O Cruzeiro, fazendo circular um dizer institucional dos Diários e Emissoras Associados, diz da televisão desde 1948, como se ela estivesse sempre já no Brasil. São notícias em suas páginas o modo como funciona tecnicamente a televisão (em outubro de 1949); o momento em que a antena para transmissão televisiva é alocada no alto de um edifício na cidade de São Paulo (em julho de 1950); o início das transmissões televisivas que, embora tenham acontecido apenas em aparelhos expostos em espaços públicos na cidade de São Paulo, é discursivizado pela revista como a “televisão para milhões” (em outubro de 1950). Esse movimento de dizer sobre a televisão é seguido de perto por outros impressos, como o jornal O Estado de S. Paulo e a revista Manchete, que abrem em suas páginas espaço para as propagandas destinadas à venda de aparelhos de televisão e a críticas sobre os possíveis efeitos da TV e a exposição às suas telas.

Ao dizer sobre a televisão, a imprensa constitui, desse modo, o acontecimento jornalístico da TV no Brasil, aqui entendido como “uma construção do jornalismo, enquanto uma prática discursiva da/na mídia”, que “não se confunde com a existência empírica dos acontecimentos, quaisquer que sejam eles” (DELA-SILVA, 2015, p. 222). A imprensa produz para a televisão efeitos de sentidos de uma presença no país, por meio da retomada de uma memória acerca de mídias já conhecidas, e constitui, ao mesmo tempo, a posição sujeito telespectador, o consumidor. É, assim, o acontecimento jornalístico da televisão no Brasil que primeiro faz da TV uma grande mídia, ou seja, uma mídia “que possui condições privilegiadas de circulação e, consequentemente, ampla representatividade em nossa formação social, por decorrência de seu poderio político-econômico” (DELA-SILVA, 2018, p. 276), o que já se projeta discursivamente, mesmo antes de sua efetiva existência no país.

Ao longo desses 70 anos de transmissões no Brasil, a televisão ganhou ampla relevância, tornou-se presença “na paisagem urbana e rural, nas páginas de revista, na profusão de aparelhos nos interiores das casas, nas mansões de alto luxo, nos barracos das favelas das cidades grandes, nas casas modestas e nas praças públicas de cidades pequenas”, como afirma Esther Hamburger (1998, p. 440), na epígrafe com a qual inicio a tese. Discursivamente, no entanto, o mais interessante é perceber como discursos que deram sustentação à constituição da TV como um acontecimento jornalístico na imprensa, antes mesmo do início de sua instalação no país, continuam ressoando em dizeres sobre a televisão, que ainda hoje circulam na mídia.

Um exemplo está nas muitas propagandas destinadas à venda de Smart TVs, que associam a televisão à vida em família, à interação, à modernidade (DELA-SILVA, 2019)… e que mostram que, como afirma Orlandi (2001a, p. 15), o discurso está sempre em curso, é “palavra em movimento, prática de linguagem”.

REFERÊNCIAS

DELA-SILVA, Silmara. (Re)significando a TV: apontamentos sobre a memória no discurso midiático. In: SCHERER, Amanda; SOUSA, Lucília; MEDEIROS, Vanise; PETRI, Verli. (Org.). Efeitos da língua em discurso. 1ed.São Carlos-SP: Pedro & João Editores, 2019, v. 1, p. 51-64.

DELA-SILVA, Silmara. Da resistência aos discursos da/na mídia: sobre eventos e páginas no Facebook. In: SOUSA, L.M.A. et al. (Org.). Resistirmos, a que será que se destina? São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. p. 273-295.

DELA-SILVA, Silmara. (Des)Construindo o acontecimento jornalístico: por uma análise discursiva dos dizeres sobre o sujeito na mídia. In: FLORES, G.B.; NECKEL, N.R.M.; GALLO, S.M.L. (Org.). Análise de discurso em rede: cultura e mídia. Campinas-SP: Pontes Editores, 2015. p. 213-232.

DELA-SILVA, Silmara. O acontecimento discursivo da televisão no Brasil: a imprensa na constituição da TV como grande mídia. 2008. 225 p. Tese (Doutorado) Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2008.

HAMBURGER, Esther. Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In: NOVAIS, F.A. (Coord.). SCHWARCZ, L.M. (Org.). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 439-487.

ORLANDI, Eni. Vão surgindo os sentidos. In: ORLANDI, Eni. (Org.). Discurso fundador. 3 ed. Campinas: Pontes, 2003. p.11-25. 

ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 3 ed. Campinas: Pontes Editores, 2001a.

PÊCHEUX, Michel. [1969]. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997. p. 61-162.

SAUSSURE, Ferdinand. [1916]. Curso de Linguística Geral.27 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.  


[i] Professora Associada do Departamento de Ciências da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF). Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ (2018-2021). É jornalista e doutora em Linguística (Unicamp, 2008). E-mail: silmaradela@gmail.com. Autora desta postagem.

[ii]Sob orientação da professora Mónica Zoppi Fontana, a tese foi defendida em dezembro de 2008, no Programa de Pós-Graduação em Linguística, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, na área de Análise do Discurso.

[ii] Dentre os arquivos visitados para a pesquisa estão: Arquivo Público do Estado de S. Paulo, Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp e Hemeroteca Municipal de São José do Rio Preto.

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