“Meu querido amor”: como as cartas podem revelar costumes de uma sociedade?

Cena do filme Cartas para Julieta (2010)

“Minha querida e único amor,
Eu sei que está com medo, mas, acredite, nunca senti algo assim e garanto que nunca mais sentirei…

Apenas com essa saudação, a escolha de palavras e a maneira como o texto é organizado você já deve saber do que se trata:

Uma carta de amor! <3


Texto de:
Debora Pereira da Cruz
Jessica Moreira Siqueira
Nathálie Stephánnie Botelho Niero


Tudo bem, talvez você tenha pensado em um e-mail de amor. Mas se estivesse lendo em um papel molhado pelas lágrimas do destinatário apaixonado não haveria dúvidas: é uma carta de amor.

E se estivesse amarelado e marcado pela passagem do tempo?

Neste caso, você poderia estar diante da história sobre um amor antigo que talvez nunca tenha se concretizado? O fato é que as cartas despertam uma curiosidade sobre a vida daqueles que as escreveram:
– O que faziam?
– Quais eram seus sonhos?
– Como aquela história terminou?

No filme baseado na obra de Jojo Moyes, A última carta de amor (2021), cartas trocadas entre amantes, nos anos 60, instigam uma jornalista a encontrar o desfecho da história dos dois pombinhos. Mas na narrativa, as cartas não apenas fazem a ligação com um passado distante, como também restituem a memória e a identidade perdida de uma das personagens após um acidente de carro.

Em Cartas para Julieta (2010), outra produção cinematográfica, uma carta também motiva a busca pela retomada de uma antiga história de amor e interfere na trajetória das personagens no presente. Nesses dois exemplos, as cartas são os objetos centrais que movem as intenções das personagens e revelam suas histórias pessoais.

Cenas do filme A última carta de amor (2021)

Além do lado mais pessoal, as cartas também podem revelar uma memória coletiva e serem peças importantes na reconstituição da história de um grupo social.

Como relatos do campo íntimo e pessoal podem descrever e testemunhar algo do domínio público? E o que as cartas de amor podem confessar sobre uma sociedade?

O que é a carta?

Também chamada de missiva ou epístola (razão da denominação “gênero epistolar”), a carta é um texto escrito para comunicar uma mensagem a um receptor. Sua forma se relaciona não apenas aos atributos que se encontram no texto (o lugar de origem, destinatário, as saudações e as despedidas etc.) como, também, ao suporte material em que se insere.

A importância que se deu às cartas pode ser percebida no fato de que, no século XIX, os manuais de escrita epistolares se popularizaram. Essas obras determinavam as normas e boas condutas na produção das cartas, ensinavam métodos relacionados à escrita e indicavam os materiais que deveriam ser utilizados. Além das questões técnicas, os manuais também orientavam sobre as habilidades sociais, como se dirigir corretamente às diferentes classes e posições sociais, por exemplo.

Conhecer ou não esses códigos, assim como utilizar determinado tipo de papel e de tinta, eram marcadores sociais que denunciavam a origem social do emitente. Já dá para começar a entender a importância desse documento dentro da sociedade, determinado tanto pelo seu suporte material quanto por seu conteúdo e meio de circulação.

A importância da carta no retrato de uma sociedade

A carta surgiu há muito tempo, mas nos séculos XVI e XVII a prática da escrita de cartas se constituiu como um instrumento central de comunicação na sociedade.

No Brasil, por exemplo, a Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, é considerada o primeiro documento escrito na história do país. O texto destinado ao rei D. Manuel I, descrevia as primeiras impressões sobre a terra recém encontrada.

A carta de Caminha não era apenas um relato da Ilha de Vera Cruz: seu conteúdo revelou mais sobre a sociedade de Portugal e seus valores do que sobre aquilo que descrevia. Isso porque as cartas são projeções dos indivíduos que as escrevem, indivíduos que, por sua vez, fazem parte de um grupo social e, portanto, refletem seus valores.Desse modo, as cartas podem ser testemunhos importantes para o estudo das relações sociais, dos hábitos, das práticas e dos valores de uma sociedade em determinada época.

No período entre o final do século XIX e começo do século XX, o hábito da correspondência se espalhou, pois a sociedade se tornou mais grafocêntrica. Além disso, algumas medidas contribuíram para a popularização das cartas, como o barateamento do envio de cartas. Na Inglaterra, por exemplo, foi criado o sistema “Penny Post” que cobrava apenas um centavo por postagem, modelo adotado pelo Brasil em 1842. Assim, é possível encontrar nas cartas do século XIX diversos dados sobre a sociedade burguesa da época.

Sobre cartas de amor e manuais

Mencionamos anteriormente a popularidade dos manuais epistolares que apresentavam regras sobre a composição de cartas. Mas você sabia que existiam métodos específicos para a escrita de cartas de amor?

No Brasil, o manual O Secretario Portuguez, ou methodo de escrever cartas (1786) era direcionado para um público específico cujo ofício era a escrita de cartas. No entanto, o guia já apresentava algumas indicações sobre a escrita de cartas românticas. Mais tarde, com a popularização desses manuais, foram criadas obras específicas para os apaixonados: O Mensageiro dos Amantes: Carcaz de Fréchas Amatorias; Manual Epistolar Galante, por Damião Casamenteiro, publicado no século XIX, e o Secretario Completo dos Amantes, do início do século XX.

Esses manuais apresentavam modelos de cartas de amor e suas respostas, conselhos sobre a arte da conquista, dicas sobre o casamento etc., para ajudar os enamorados a escreverem suas declarações.

A análise de cartas e de manuais epistolares no Brasil do século XIX mostra que esses escritos apresentam traços da literatura do amor cortês. O objetivo é cortejar a mulher amada, representada de maneira idealizada. Além disso, as cartas descrevem as dificuldades e os sacrifícios a serem enfrentados em nome do amor. Bem parecido com a trajetória das personagens de A última carta de amor que passam por diferentes desencontros e várias décadas até se reencontrarem, não é mesmo?

Em Cartas para Julieta, cartas e desencontros também fazem parte do enredo. No filme, um grupo de mulheres leem e respondem cartas enviadas a Julieta, personagem de Shakespeare, para pedir conselhos e contar suas histórias de amor e desilusão. Quando a aspirante a escritora Sophie lê a carta enviada por Claire, há 50 anos, decide respondê-la, o que encoraja a personagem a sair em busca de seu grande amor do passado.

As cartas ainda têm a mesma importância hoje?

Qual foi a última vez que você mandou uma carta? Na sociedade atual, as cartas já não têm a mesma utilidade que tinham antigamente. Se antes eram muito usadas para relatar acontecimentos, transmitir informações ou declarar sentimentos, hoje em dia a tecnologia permite que tudo isso seja feito com maior rapidez, tornando o uso de cartas cada vez mais raro.

Convenções descritas nos manuais epistolares, como o tipo de papel a ser usado, e a impressão que se tem do outro de acordo com características do suporte material (como o estilo da escrita ou uma folha molhada pelas lágrimas de um apaixonado que sofre), são coisas que perderam o sentido em um mundo de fonte Arial, tamanho 12, espaçamento 1,5.

Cena do filme A última carta de amor (2021)

Porém não sejamos saudosistas, novas formas de comunicação oferecem novas maneiras de organização social que não devemos julgar como melhores ou piores, apenas diferentes.

A dúvida que fica é: como os relatos dessa nova organização social ficarão guardados na história? Em A última carta de amor, as cartas estão preservadas em um arquivo, empoeiradas e envelhecidas, mas teoricamente protegidas. Será que os servidores também conseguirão manter nossos e-mails e mensagens digitais “vivos” através dos tempos? Só o tempo dirá.

Quem sabe daqui a 50 anos, uma grande história de amor seja retomada porque alguém encontrou um velho notebook dos dias de hoje perdido por aí e, surpreendentemente, deu um jeito de fazê-lo funcionar.

Referências:

AZEVEDO, N. D. DE; FERREIRA JÚNIOR, J. T. Historicidade das cartas de amor: circulação de manuais epistolares portugueses no Brasil do século XIX. Revista da ABRALIN, v. 19, n. 3, p. 628-653, 17 dez. 2020. https://revista.abralin.org/index.php/abralin/article/view/1750

GASTAUD, Carla; COSTA, Bruna Frio. Apontamentos sobre cultura escrita e práticas epistolares. CEM – Cultura, Espaço & Memória, nº 8, p. 13-23, 2017. https://ojs.letras.up.pt/index.php/CITCEM/article/view/4657/4345

Cartas para Julieta. Direção: Gary Winick. Estados Unidos: Summit Entertainment, 2010 (105 min). Título original: Letters to Juliet.

A última carta de amor. Direção: Augustine Frizzell. Reino Unido: Netflix, 2021 (110 min). Título original: The Last Letter from Your Lover.

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