Surdos fazem leitura labial? E outros mitos relacionados

Washington School for the Deaf (2014). As pessoas na imagem sinalizam na língua americana de sinais (ASL), "SCHOOL FOR T-H-E DEAF". Foto de daveynin https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Washington_School_for_the_Deaf,_2014_(01).jpg

Texto de:
Vinicius Antonio Scarton das Neves 


Dados, legislação e inclusão dos surdos

Segundo a Organização Mundial da Saúde, 466 milhões de pessoas no mundo possuem algum nível de deficiência auditiva. Em 2050, serão 900 milhões. No Brasil, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE, que trazia somente uma questão relacionada à audição, 9,7 milhões de brasileiros, 5% da população, podem ser classificados como deficientes auditivos. Desses, 2,2 milhões escutam muito pouco ou nada.

Apesar de a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência garantir às pessoas com deficiência auditiva acesso à cultura, à educação e ao mercado de trabalho, na prática, questões como a carência de sessões legendadas em cinemas, o despreparo do sistema educacional e a escassez de oportunidades de emprego fazem com que essa parcela da população muitas vezes tenha os seus direitos garantidos por lei negados.

Em casos leves, aparelhos auditivos e terapias de fala podem compensar a perda auditiva, tornado o indivíduo um surdo oralizado capaz de se comunicar oralmente. Porém, quando não há acesso a esses recursos ou a perda auditiva é severa, o deficiente auditivo se vê isolado do mundo, impossibilitado de entender e ser entendido por outros.

Nesses casos de exclusão, as línguas de sinais são alternativas para comunicação, desde que as pessoas ouvintes ao redor também as conheçam. Contudo, as línguas de sinais possuem baixa adesão, e existem vários mitos que contribuem para isso.

Leitura labial… mas feita por uma pessoa cega. US Library of Congress. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Helen_Keller5.jpg

O que é uma língua de sinais?

Muitos acreditam, por exemplo, que a língua de sinais é uma língua universal compartilhada por todos os surdos. Na verdade, cada comunidade surda possui a sua língua de sinais. No caso do Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é reconhecida desde 2002 pela Lei No 10.436. Ela possui uma estrutura complexa, não se trata de mímica do português e tem genealogia bastante diferente da nossa língua oral. Em Linguística, é equivalente às línguas orais em estudos sobre a aquisição da linguagem. O mesmo pode ser dito de outras línguas sinalizadas no território brasileiro, independente de seu reconhecimento oficial, como a Língua Gestual Cena, usada em Várzea Queimada no interior do Piauí, dentre outras que você consegue ver no seguinte mapa.


 

Isso porque, atualmente, defende-se que a capacidade de desenvolver uma língua nos seres humanos esteja relacionada a uma capacidade mental inata de desenvolver linguagem. Essa capacidade, chamada de faculdade da linguagem, precisa ser exposta a experiências linguísticas no começo vida para conseguir se desenvolver normalmente. Através dessas experiências, que podem ser de natureza auditivo-oral ou visual-espacial, as crianças inconscientemente entenderiam e absorveriam a estrutura daquela língua.

O que diz a ciência sobre isso tudo?

A literatura científica divide esse processo em cinco fases: a fase pré-linguística (de 0 a 1 ano), a fase de enunciados de uma só palavra (de 1 a 1,6 anos, a criança expressa uma sentença com uma só palavra), a fase das primeiras combinações de palavras (de 1,6 a 2 anos), a fase de sentenças simples e a fase de sentenças complexas, de forma que, aos cincos anos, a criança já seria capaz de formar qualquer frase daquela língua. Estudos comprovam que crianças surdas expostas a uma língua de sinais apresentam desenvolvimento análogo ao de crianças ouvintes. Ou seja, crianças surdas e ouvintes, desde que em contato com uma língua apropriada para as suas respectivas condições, são capazes de adquirir uma língua da mesma forma.

Todavia, na prática, o diagnóstico de surdez muitas vezes é tardio, e aproximadamente 90% das crianças surdas não têm contato com a língua de sinais desde o nascimento. Como consequência, a aquisição da linguagem não ocorre de maneira natural e o deficiente auditivo, incapaz de se comunicar com o mundo ao seu redor, é excluído da sociedade desde muito cedo.

Procurando justificar o desinteresse na língua de sinais, muitas pessoas também defendem que surdos são capazes de fazer leitura labial para entender o que lhes é dito e, portanto, elas não teriam motivo para aprender Libras. A leitura labial é uma estratégia usada muitas vezes inconscientemente para preencher lacunas quando o componente sonoro foi comprometido, porém esse fenômeno isolado dificilmente daria conta de uma conversa longa e complexa.

Um estudo comparou a habilidade de leitura labial entre deficientes auditivos de grau severo a profundo e ouvintes. Tanto indivíduos que nasceram com a deficiência quanto indivíduos que a adquiriram ao longo da vida estavam presentes. Os resultados revelaram que deficientes auditivos em geral realizam a leitura labial melhor que ouvintes, muito provavelmente graças à necessidade cotidiana. Porém, a habilidade não é realmente eficaz em todos os contextos: quando se depararam com perguntas pessoais simples, a porcentagem de acertos chegou a 90%, mas quando precisaram repetir uma história, a melhor taxa de acertou beirou 50%.

Além disso, a eficácia da leitura labial também está associada ao quanto alguém é capaz de ouvir, como demonstra outro estudo que analisou o fenômeno em indivíduos com e sem aparelho auditivo. Em todos os envolvidos, os melhores resultados foram sempre atingidos com o uso do aparelho. Dessa forma, a leitura labial funciona como um complemento durante a comunicação, e nunca como um substituto da audição. Ressalta-se também que aparelhos auditivos são caros, logo indivíduos profundamente surdos ou sem as condições econômicas necessárias estarão constantemente em desvantagem.

Procurando justificar o desinteresse na língua de sinais, muitas pessoas também defendem que surdos são capazes de fazer leitura labial para entender o que lhes é dito e, portanto, elas não teriam motivo para aprender Libras. A leitura labial é uma estratégia usada muitas vezes inconscientemente para preencher lacunas quando o componente sonoro foi comprometido, porém esse fenômeno isolado dificilmente daria conta de uma conversa longa e complexa.

Um estudo comparou a habilidade de leitura labial entre deficientes auditivos de grau severo a profundo e ouvintes. Tanto indivíduos que nasceram com a deficiência quanto indivíduos que a adquiriram ao longo da vida estavam presentes. Os resultados revelaram que deficientes auditivos em geral realizam a leitura labial melhor que ouvintes, muito provavelmente graças à necessidade cotidiana. Porém, a habilidade não é realmente eficaz em todos os contextos: quando se depararam com perguntas pessoais simples, a porcentagem de acertos chegou a 90%, mas quando precisaram repetir uma história, a melhor taxa de acertou beirou 50%.

Além disso, a eficácia da leitura labial também está associada ao quanto alguém é capaz de ouvir, como demonstra outro estudo que analisou o fenômeno em indivíduos com e sem aparelho auditivo. Em todos os envolvidos, os melhores resultados foram sempre atingidos com o uso do aparelho. Dessa forma, a leitura labial funciona como um complemento durante a comunicação, e nunca como um substituto da audição. Ressalta-se também que aparelhos auditivos são caros, logo indivíduos profundamente surdos ou sem as condições econômicas necessárias estarão constantemente em desvantagem.

Considerações Finais

A melhor maneira de incluir deficientes auditivos no mundo continua sendo a difusão da Língua Brasileira de Sinais para pessoas ouvintes ou não, o diagnóstico da condição o mais rápido possível para garantir uma etapa de aquisição da linguagem apropriada e a adoção de medidas inclusivas em todos os ambientes, como a adição de legendas em conteúdos audiovisuais, a divulgação de informações sobre surdez na mídia e o desenvolvimento de aparelhos auditivos mais baratos. Quanto à habilidade de ler os lábios, a propagação dessa crença apenas diminui a importância do ensino e aprendizado da Língua Brasileira de Sinais na sociedade. Deficientes auditivos dos mais diversos níveis podem se beneficiar da prática e aperfeiçoá-la com aparelhos auditivos, mas é necessário considerar que, além dos contextos comunicativos, o desempenho da leitura labial também está relacionado ao grau da surdez e, indiretamente, à condição socioeconômica do deficiente e, portanto, essa prática não pode ser vista como uma possibilidade para todas as pessoas surdas em todas as situações.

Referências

BRASIL, Câmara dos Deputados. Lei no 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, p. 43, 2015.

BRASIL, Lei de Diretrizes. Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais-Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, 2002.

DELL’ARINGA, Ana Helena Bannwart; ADACHI, Elisabeth Satico; DELL’ARINGA, Alfredo Rafael. Lip reading role in the hearing aid fitting process. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, v. 73, n. 1, p. 101-105, 2007. 

FEDERAL, SENADO. Agência Senado. Baixo alcance da língua de sinais leva surdos ao isolamento. Disponível em:< https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/especial- cidadania/baixo-alcance-da-lingua-de-sinais-leva-surdos-ao-isolamento>. Acesso em: 03 de ago. de 2020.

LORANDI, Aline; CRUZ, Carina Rebello; SCHERER, Ana Paula Rigatti. Aquisição da linguagem. Verba Volant, v. 2, no 1, p. 144-166. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária da UFPel, 2011.

OLIVEIRA, Letícia Neves de; SOARES, Alexandra Dezani; CHIARI, Brasilia Maria. Leitura da fala como mediadora da comunicação. In: CoDAS, v.26, no 1, p. 53- 60, Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, 2014.

PORTAL, MEC. Dia Nacional da Libras é celebrado com novidades na aprendizagem para surdos, 2017. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/34366>. Acesso em 03 de ago. de 2020.

WORLD HEALTH ORGANIZATION et al. Deafness and hearing loss, World Health Organization, Geneva, 01 de mar. de 2020. Disponível em: <https://www.who.int/news- room/fact-sheets/detail/deafness-and-hearing-loss>. Acesso em: 03 de ago. de 2020.

Outros Materiais

Fantástico (20/02/2022): Nova língua de sinais é criada por comunidade de surdos no sertão do Piauí

Podcast Isso é Fantástico (20/02/2022): Uma nova língua de sinais no sertão do Piauí

Scicast sobre Língua de Sinais

Revista Roseta: LIBRAS: Que língua é essa?

1 Comentário

  1. essa,informação, traz muitos conteúdos, na área, para os deficientes auditivos, e surdos e mudos,uma vez que dão caminhos,para a procura de ajuda e,o profissional.

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