Por que acentuamos as palavras?

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Texto de: Lídia Vitória da Costa Faustino dos Santos

Não é raro nós, professores de língua portuguesa, ou nós, falantes do português brasileiro, ouvirmos algum comentário sobre o uso dos acentos em nossa língua materna. Afinal, a vida não seria mais fácil se todos falássemos inglês, uma língua simples, direta e, o mais importante, sem acentos? Esse, quiçá, seja o sonho de todo brasileiro (e também dos Estados Unidos, mas não vamos entrar nisso…hoje).

Vamos a alguns fatos sobre os acentos na língua portuguesa. Temos no português brasileiro 4 acentos :

  • o acento agudo (´);
  • o circunflexo (^);
  • o acento grave (`) e
  • o til (~),

Vale ressaltar que, para alguns autores, o til não é considerado um acento, mas uma marca de som nasal. Diremos aqui que ele é, sim, um acento, considerando seus efeitos nos casos que aqui serão explorados.

A função dos acentos, não somente, mas principalmente, é sinalizar a sílaba tônica da palavra, indicando sua pronúncia e entonação. Fato curioso, no entanto, é que essa função dos acentos vem com um bônus: o surgimento de palavras homógrafas. Palavras homógrafas são palavras que são ortograficamente iguais, porém, têm significados distintos graças à sua acentuação e, consequentemente, sua pronúncia (ex. colher [talher] e colher [apanhar]; sábia [sabedora] e sabia (verbo saber]). Quando um acento altera o significado de palavras que são escritas iguais, o denominamos diacrítico.

Dessa forma, reconhecendo esses fatos, podemos refletir: se há palavras que são escritas iguais, mas têm sua tonicidade e pronúncia distintas devido à acentuação, o que ocorre com seus efeitos de sentido na fala e na escrita quando há falta de acentuação?

Bem, na fala essa falta pouco ocorre, uma vez que todo falante de português sabe que maiô se trata de uma vestimenta, e maio de um mês, ainda que não tenha conhecimento da ortografia das palavras, em que o primeiro exemplo leva um circunflexo na última sílaba – sua tônica, e o segundo não leva acento nenhum, com a tonicidade na primeira sílaba. 

No entanto, quando pensamos sobre a falta de acentuação na escrita e, consequentemente, na leitura, podemos dizer que os impactos são grandes. A falta de acentuação e, por consequência, a pronúncia/leitura e sentido incorretos podem levar a muitas confusões. Por exemplo, na frase “meu maio é pequeno demais”, não é possível saber se a pessoa está falando do mês de maio, ou só não acentuou a palavra maiô, uma vez que faria mais sentido dizer que uma vestimenta é pequena. Essas duas palavras, homógrafas, são um claro exemplo da função diacrítica do acento circunflexo.

Nas frases “eu acabei com o forro” e “eu acabei com o forró” (inclusive, acho que vale ressaltar que o corretor ortográfico do google docs não reconhece a palavra forro, tentando alterá-la para forró, há, aparentemente, graus de importância quase invisíveis entre as palavras homógrafas), enfim, de qualquer forma, é possível separar e compreender os efeitos de sentido distintos de ambas as frases, o acento agudo, nesse caso, atua como um diacrítico. No entanto, se lemos um livro em que uma personagem acaba de voltar de um baile de forró, e afirma “eu acabei com o forro”, não sem razão nós, enquanto leitores, ficaríamos muito confusos com a quebra contextual ali presente, e, certamente, suporíamos que se trata da falta de acentuação na palavra forró. Há, portanto, uma relação intrínseca e inerente entre acentuação e sentido.

Bem, depois de entendermos essa questão por meio desses dois exemplos, por que consideramos, aqui, o til (~) também um acento, e não apenas uma marca de nasalização? Quando pensamos na palavra Roma, podemos também pensar em sua homógrafa romã. Assim, se as duas são palavras homógrafas, que têm seus sentidos distintos devido unicamente à presença do til, por que não considerá-lo um acento, aqui diacrítico? (Pelo visto, não só há uma hierarquia entre as palavras homógrafas, mas também entre os acentos que podem ou não fazer delas homógrafas, ou seja, serem qualificados como diacríticos, ou, no caso do til, até como acentos propriamente dizendo.)

Mas e o acento grave? Qual o papel dele em toda essa história? Primeiro, vamos à explicação do que é o acento grave e sua relação com o que chamamos de crase. Denominamos crase a fusão de duas vogais iguais em uma só, por exemplo na frase “ela cheira à rosa” (com sentido de que a pessoa em questão tem odor de rosa), esse “à” sinaliza a fusão da preposição a com o artigo definido feminino a. O resultado dessa fusão é o que chamamos de acento grave. Portanto, o acento sinaliza que ali houve uma crase.

Agora vamos refletir sobre como esse acento atua quanto a palavras homógrafas e sua particularidade na pronúncia: quando falamos “bebe” (do verbo beber)  e “bebê” (substantivo – criança) há uma diferença clara aí, tanto na escrita, a presença do acento, como na pronúncia, o fato de que no primeiro exemplo a primeira sílaba, tônica, é pronunciada aberta [bébe] e no segundo ambas as sílabas são fechadas [bebe], com a tonicidade na última. Quando falamos sobre o acento grave, essa diferença só se faz evidente na escrita, na fala, sem o aparato contextual da conversa e interação não é possível captar as diferenças de sentidos.

Vamos tomar como exemplo duas frases: Ela cheira a rosa (ação de sentir o aroma da flor) x Ela cheira à rosa (pessoa que tem odor de rosa). A diferença entre o a no primeiro exemplo, cumprindo função de artigo definido feminino, e o à no segundo exemplo, craseado sinalizando a junção da preposição com o artigo feminino é perceptível devido ao fato de ambos estarem escritos, ainda assim, uma pessoa que desconhece a função da crase, muito provavelmente não compreende, pela leitura, a diferença de sentidos entre as duas frases. No entanto, quando falamos as duas frases, se não compreendemos o seu contexto de produção e a função da preposição, dificilmente vamos compreender qual dos dois sentidos está sendo denotado, uma vez que a pronúncia da preposição + artigo (à) é igual à pronúncia apenas do artigo (a), talvez por isso seja muito mais fácil dizer “ela tem aroma de rosa”. Se isso não é a magia da linguagem, o que seria? Há, de certa forma, uma beleza nos acentos, uma beleza confusa, muitas vezes causa de risos e mal entendidos, mas quantas são as línguas que podem fazer humor de si mesmas?

Saiba mais:

Cristófaro Silva, Almeida e Marra (2020) Fonologia, acentuação gráfica e ensino.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/veredas/article/view/31853

Alessandra Macon (2020) Um acento muda tudo, Jornal do Noroeste.
https://jornalnoroeste.com/pagina/colunas/um-acento-muda-tudo-#:~:text=O%20acento%20modifica%20o%20significado,tenha%20muitos%20compromissos%20esse%20m%C3%AAs

1 Comentário

  1. De fato, em "Ela cheira a rosa" e "Ela cheira à rosa", o acento é diacrítico, e não crase. Não há o artigo feminino em "Ela cheira à rosa".
    Em "Ela cheira a rosa", o [a] é artigo, enquanto em "Ela cheira à rosa" o [a] é preposição. Aí, criaram um modo de distinguir o artigo feminino da preposição [a] nos casos em que, superficialmente, estão no mesmo contexto linguístico, prevendo que o falante-leitor poderia confundir-se. É um ato bem-intencionado, mas contraproducente, pois que o fenômeno da homonímia é uma desgraça em toda língua natural, está em todo lugar possível e imaginável.

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