Pedra de Roseta: Bicentenário da decodificação dos hieróglifos egípcios

Fragment of a wall with hieroglyphs from the tomb of Seti I - https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hieroglyphs_from_the_tomb_of_Seti_I.jpg

Nós linguistas, costumamos dizer que as línguas mudam no tempo e no espaço.

Nesse sentido, podemos dizer que quanto mais distante no espaço-tempo estamos de uma população, mais diferente tende a ser a língua.

Talvez vocês tenham gostado do filme A Chegada que tem como protagonista uma linguista que tenta decifrar “As Línguas” dos alienígenas que foram batizados de heptápodes. Reparem que coloquei no plural. Se vocês leram o conto “História da sua Vida” de Ted Chiang, perceberá a diferença. O conto está muito mais próximo da descrição do trabalho de um linguista e me parece, realmente, genial. Nele, a personagem Louise Banks, protagonista da história, separa o Heptápode A, os ruídos equivalentes a nossa fala e que, se não for gravado, apenas as pessoas próximas poderão perceber, do Heptápode B, a impressão com aquela espécie de tinta preta e equivalente a nossa escrita.

Ok, acho que precisamos conversar sobre dois pontos aqui antes de falarmos do nosso tema principal, e que fará você compreender melhor o conto de Ted Chiang.

 

1. A Língua muda no Espaço e no Tempo

Bom, os heptápodes estão…. ou estavam antes de chegar à Terra, buscando ajuda, a muitos anos luz de distância, o que justificaria uma diferença linguística. Porém, a diferença aqui diz mais respeito a diferença de espécies (humanos x heptápodes). Um exemplo melhor de mudança no espaço são os sotaques. No Brasil, todos falamos Português. Mas quanto mais distantes o nosso território mais fácil percebermos uma diferença de sotaques, de palavras, de prosódia, etc.

Perfeito, agora falta explicar a mudança no tempo. Você já deve ter estudado, no Ensino Médio, as cantigas de amor e de amigo. São cantigas trovadorescas da Idade Média da qual a Cantiga da Ribeirinha (trecho abaixo) é considerada uma espécie de “certidão de nascimento” da língua portuguesa. Clique no link e repare que existem duas versões: a versão original e a versão em português atual. Você vai reparar que embora “seja a mesma língua”, nem sempre é simples compreender nossa língua como era usada há séculos atrás. 

Trecho da Cantiga da Ribeirinha:

E, mia senhor, des aquelha
me foi a mí mui mal di’ai!,
E vós, filha de don Paai
Moniz, e ben vos semelha
d’haver eu por vós guarvaia,
pois eu, mia senhor, d’alfaia
nunca de vós houve nen hei
valía dũa correa.

 

2. A fala é natural, a escrita é uma tecnologia, e seus usos são diferentes.

A fala e a escrita são diferentes formas de comunicação, e por isso a Louise Banks separou os Heptápodes A e B, bem como um linguista alienígena faria bem em separar a fala humana da escrita humana.

A fala consiste no fluxo da comunicação que acontece de maneira mais natural,

considerando que basta sermos humanos, sabermos uma língua e ter alguém com quem queremos nos comunicar que também saiba. Normalmente usamos nossas bocas e ouvidos, mas por vezes usamos assobios e diferentes tipos de sinais manuais e não manuais para nos comunicarmos. Se essa for sua língua nativa, provavelmente você nunca precisou estudar para começar a falar e compreender. Você começou a estudar o uso mais aceito dessa língua após começar a falar, senão não teria como você se comunicar com seu professor. A fala também acontece em tempo real, sem muito tempo para pensar e normalmente não tem registro, a não ser em situações especiais como o podcast que originou esse post lá no Portal Deviante.

Por outro lado, a escrita é uma tecnologia

inventada por diferentes culturas ao redor do mundo (egípcios, mesopotâmios, astecas e chineses) de modo que possibilitou a comunicação sem que a pessoa que escreveu esteja presente. O conteúdo provavelmente levou algum tempo para ser finalizado como esse post que foi iniciado no dia 08/10/2022, e você pode ler a qualquer momento posterior à data de publicação [11/10/2022], desde que esse post ainda esteja online ou impresso.

Assim, a escrita é uma ferramenta e não uma língua.

Por exemplo, boa parte do mundo ocidental alfabetizado usa o alfabeto latino. Porém, mesmo sabendo o alfabeto latino, eu não sei ler em alemão ou polonês. Mais do que isso, existem línguas que podem ser escritas em mais de um sistema de escrita como o Japonês que tem o hiragana, katakana e os kanjis.

Como uma espécie de hack, se você está aprendendo a língua e não conhece muito bem a escrita japonesa mas quer cantar as músicas de abertura de anime ou tokusatsu [denuncia a idade], provavelmente você procura a letra em Romaji, que é exatamente o alfabeto latino, a escrita de Roma, Roma-ji.

 

3. Mas afinal, como conseguimos ler os hieróglifos egípcios, um dos sistemas de escrita mais antigos que conhecemos e que estimamos ter se iniciado há cerca de 5200 anos atrás?

Acho que vocês conseguem entender que o trabalho de um filólogo/linguista que trabalha com história ou com línguas ágrafas pode ser bem árduo, tanto quanto o da Louise Banks no filme…. ou até mais considerando que a Louise tinha dois heptápodes para fazer perguntas depois de estabelecer o mínimo de comunicação. Exceto se uma múmia levantar da tumba, dificilmente teremos alguém para nos ensinar essa forma de escrita.

E para começarmos e responder essa pergunta, vamos nos utilizar dos poderes que a língua heptápode nos deu e fazer nossa consciência viajar no tempo, mais especificamente para o século XVIII e XIX.

Nosso protagonista: Jean François Champollion

Vamos conhecer o nosso Champs, ou melhor, Jean François Champollion. Ele é um francês muito conhecido por seu trabalho na egiptologia, uma área da história e da filologia que estava ganhando muito destaque na época devido a diferentes achados arqueológicos das expedições militares do Napoleão Bonaparte à região.

Nosso Champs vivia com seu Champollirmão mais velho, Jacques Joseph, que já se destacava na área por trabalhar com outro Joseph, o Fourier, esse mesmo, o matemático que também era egiptólogo e tinha participado de uma das expedições do Napoleão ao Egito. Todo esse contexto provavelmente influenciou o Champollinho Colorado a se aventurar pelo mundo do Cavaleiro da Lua. Acontece que ele se tornou um prodígio, sendo muito mais conhecido que o próprio irmão. Um de seus primeiros trabalhos foi a decodificação da escrita Demótica quando ele tinha por volta dos 17 anos.

Jean François Champollion – Leon Cogniet, Domínio Público

Demótico que dá origem ao Demo.. não, não o Demo que você está pensando, mas o Demo que significa povo, que passou pelos Gregos até chegar em palavras nossas como Democracia. Eu poderia dar mais detalhes sobre essa escrita mas, por ora e para efeitos desse post, vamos considerá-la uma simplificação mais recente e mais popular da escrita egípcia, que por ser mais do povo, mais democrática e popular, também poderia ser usada para escrever outras línguas dessa população que não o egípcio.

Bom, considerando que decodificamos a escrita demótica, talvez seja possível agora transcrever os hieróglifos, uma escrita ainda mais antiga dos egípcios e que estava sendo um enorme desafio para os pesquisadores da época. Por exemplo, os hieróglifos eram escritos usando vários “desenhos”. Mas esses desenhos deveriam ser compreendidos como logogramas, mais ou menos como nos kanjis, ou deveriam ser compreendidos como uma representação fonética/fonológica como no alfabeto latino?

Ó, e agora, quem poderá nos salvar!? 

Ainda não é o Champollinho! Mas será um outro garotinho.

Eis que numa dessas expedições do napoleão, em 1799, Pierre Bouchard encontrou uma placa de pedra, fabricada, de 114 altura por 72 de largura, 720kg com algumas inscrições. A placa estava quebrada mas com uma boa parte dela ainda intacta. Como foi encontrada na cidade de Rashid, que passamos a chamar de Rosetta, no norte do Egito, ela foi batizada de Pedra de Roseta.

A particularidade da Pedra de Rosetta é que ela foi escrita em três sistemas de escrita diferentes. E daí vamos voltar mais um pouquinho no tempo para explicar.

Rosetta Stone: a granodiorite stele with a decree written in Ancient Egyptian hieroglyphs, in Demotic and in Ancient Greek – Autor: Tulumnes https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Rosetta_Stone_with_Ancient_Egyptian_bilingual_text.jpg

 

Viajamos no tempo, agora para o século II

No século 2, depois da conquista de Alexandre o Grande, o Egito foi governado pela dinastia Ptolomaica durante uns 3 séculos antes da chegada dos Romanos. O quarto faraó, Ptolomeu IV e sua esposa morreram em uma situação aparentemente suspeita e, seu sucessor, Ptolomeu V, foi empossado com cerca de 5 anos de idade.

O garoto tinha o apoio da classe sacerdotal, que era a única parte da população que ainda sabia ler e escrever em hieróglifos. Por outro lado, ele tinha ainda muita resistência da população de origem grega que eram alfabetizados em grego antigo, além de também escrever a língua grega através da…. escrita do povo, a escrita demótica!

De maneira a tentar acalmar os ânimos, o pequeno faraó escreveu (ou provavelmente pediu para um escriba ou sacerdote fazer isso), um decreto nas três formas de escrita: Grego, Demótico e Hieróglifo.

Estamos fechando nossas viagens no tempo. Voltamos pro sćulo XIX.

Os europeus do século XIX já sabiam ler em grego antigo. Somado ao crescimento da egiptologia e o trabalho do Champollinho, os europeus da época já sabiam ler em demótico. Curiosamente a pedra de Rosetta tinha esses dois sistemas e escrita MAIS os hieróglifos que era o grande objetivo dos pesquisadores. 

Eis que ainda não temos alguém para perguntar, mas temos uma pedra com as respostas. A Pedra de Roseta continua uma versão do mesmo texto em hieróglifo nas escritas que já conhecemos em assim, mesmo com as partes que se perderam por danos físicos na pedra, nosso Jean Champollion, junto com Thomas Young do Reino Unido, conseguiu relacionar os símbolos hieróglifos às letras do nosso alfabeto. Essa relação foi a grande chave para que pudéssemos finalmente decifrar a escrita egípcia antiga. Mais do que isso, foi possível perceber que, por vezes, os símbolos eram usados também como logogramas, bastando tentar identificar a situação em que elas estão sendo usadas.

Resumindo a nossa linha do tempo:

  • Em 1799 a Pedra de Roseta foi descoberta.
  • Em 27 de setembro de 1822 conseguimos decodificar
  • Mas apenas em 1828 os egiptólogos conseguiam ler um texto inteiro em hieróglifos.
 

Voltando ao século XXI

Não fosse a Pedra de Rosetta, provavelmente não saberíamos metade do que sabemos hoje sobre o Egito Antigo, que é uma parte bastante importante da história da civilização e, também, da história da escrita.

Também, acho que não é muito difícil adivinhar que a Pedra de Rosetta está em Londres, no British Museum. Então, quem porventura estiver próximo e poderá ver de perto esse ícone da nossa história que só conseguimos decodificar há 200 anos atrás.

Olimpíada de Linguística

Se algum de vocês quiser ter uma palhinha da experiência de tentar decodificar uma língua ou tipo de escrita de forma semelhante ao que o Jean Champollion e o Thomas Young fizeram a partir da pedra de roseta, a Olimpíada Brasileira de Linguística tem os problemas do tipo Roseta. A ideia é ter parte da informação em diferentes tipos de escrita e, a partir de lógica, a gente decifrar as informações. A única diferença é que, de antemão, a gente tem certeza de que todas as informações necessárias para resolver o problema estão na questão. Daí vocês podem procurar pelas provas anteriores ou visitar a aba “problemas” do site obling.org, em que vocês vão encontrar alguns exemplos como o dos nomes dos países em georgiano.

 

Para saber mais: 

British Museum: Everything you ever wanted to know about the Rosetta Stone
https://www.britishmuseum.org/blog/everything-you-ever-wanted-know-about-rosetta-stone#:~:text=The%20Rosetta%20Stone%20is%20thus,in%20the%203rd%20century%20BC

Archive.org: Rosetta Stone transcription and translation
https://archive.org/details/RosettaStone-Boshevski-Tentov

France24: France marks bicentenary of deciphering of Rosetta Stone hieroglyphics
https://www.france24.com/en/tv-shows/france-in-focus/20220902-france-marks-bicentenary-of-deciphering-of-egyptian-hieroglyphics-by-champollion

Olimpíada Brasileira de Linguística:
https://obling.org/problemas.html

Spin de Notícias #984: Bicentenário da decodificação dos hieróglifos egípcios
https://www.deviante.com.br/podcasts/spin/spin-de-noticias-1793/

Spin de Notícias #984: Como a escrita evoluiu?
https://www.deviante.com.br/podcasts/spin/spin-de-noticias-984/

Contrafactual #69: E se todos falássemos a mesma língua? https://www.deviante.com.br/destaque/contrafactual-69/

 

 

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*