Esse povo imprica com quarquér coisa…

Por: @Guinanet - CC BY 2.0 DEED - Attribution 2.0 Generic; https://www.flickr.com/photos/guinanet/2192371421/in/album-72157603710977270/

Você sabia que essa “troca” é um fenômeno fonológico muito comum na história do português?

Os linguistas deram até um nome pra ele e mostraram que todo esse estigma é, na verdade, um tipo de preconceito linguístico.


Texto de:
Beatriz Sayuri Higuti
Viviane Carvalho
Alunas do curso de graduação em Linguística da Unicamp


Existem casos em que crianças em fase de aquisição de sua língua trocam sons durante muito tempo sem que esta seja uma característica do sotaque das pessoas que estão à sua volta. Porém, em alguns dialetos, é muito comum que os falantes “troquem” o L pelo R e pronunciem naturalmente, palavras como “crima” no lugar de “clima”, “sór” no lugar de “sol” e por aí vai.

E mesmo que essa troca seja comum em alguns dialetos, muitas pessoas (inclusive alguns professores de língua portuguesa) afirmam que esse modo de falar é “errado” e deve ser corrigido a todo custo – quase como se esse modo de falar fosse um indício de distúrbios articulatórios, mas este não é o caso aqui, como veremos a seguir.

O podcast SciKids responde uma pergunta mencionando o distúrbio articulatório: por que os balões em que o Cebolinha pensa estão com R e não com L?

POR QUE ESSA TROCA ACONTECE?

A fonologia é a área de estudos da Linguística que se interessa pelos fonemas, pelos sons (ou gestos no caso de línguas de sinais) presentes em uma língua.

Em português, por exemplo, temos, dentre vários outros, os fonemas L ou U (/l/ ou /w/) e R (/r/), que se diferenciam no sistema dessa língua. Desse modo, “calo” e “caro” são palavras diferentes, assim como /mal/ e /mar/, justamente porque, para nós, esses dois pares de fonemas são diferentes. 

O que acontece (e bastante!) na língua portuguesa é que, em alguns dialetos, tanto o fonema L (mais tecnicamente /l/) no meio da sílaba quanto o fonema U (/w/, oriundo de /l/) no final da sílaba são produzidos como o fonema R (/r/).

Os linguistas chamam esse fenômeno de rotacismo.
Vejamos alguns exemplos:

  • cli-en-te -> cri-en-te 
  • bi-ci-cle-ta -> bi-ci-cre-ta 
  • cal-do -> car-do
  • al-to -> ar-to

E O QUE A HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA TEM A NOS DIZER SOBRE ISSO?

A Linguística Histórica é a área que estuda a história das línguas: seu surgimento, suas mudanças e, em alguns casos, seu desaparecimento. Graças a essa área sabemos que o português é uma língua românica, ou seja, surgiu a partir do latim (mais especificamente, do latim popular). E desde esse surgimento, os falantes nativos de português já realizavam o rotacismo. São diversos os exemplos de palavras que, em latim, eram pronunciadas com L (/l/) no meio da sílaba e em português passaram a ser pronunciadas com R (/r/): 

  • blandu (latim) > brando (português)
  • clavicula (latim) > cravelha (português)
  • flaccu (latim) > fraco (português)
  • gluten (latim) > grude (português)
  • plancto (latim) > pranto (português)

Tão disseminado foi o processo que, em “Os Lusíadas” de Luís de Camões (em domínio público), é possível encontrar várias palavras que hoje são, de modo geral, pronunciadas com L (/l/) escritas com R (/r/). Este é um grande indício de que, no século XVI, de fato se falava assim:

“E não de agreste avena ou frauta ruda, 
Mas de tuba canora e belicosa” (Canto I) 
“Algüas, harpas e sonoras frautas; 
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam” (Canto IX) 
“O frecheiro que contra o Céu se atreve 
A recebê-la vem, ledo e contente” (Canto IX)

Muitos anos depois disso, no século XX, diversos linguistas e filólogos, como Amadeu Amaral, estudaram o dialeto caipira do estado de São Paulo. Nesse dialeto, formas como “fror (flor)” (conservada do português mais antigo), “mér (mel)” e tantas outras que ouvimos/produzimos até hoje já eram muito comuns.

Portanto, é certo afirmar que o rotacismo faz parte da própria história da língua portuguesa. 

ENTÃO POR QUE ESSE ESTIGMA?

Em qualquer sociedade, os grupos sociais se distinguem pela forma como falam, ou seja, têm uma norma linguística própria, que faz os falantes se identificarem uns com os outros e se sentirem pertencentes ao grupo (Faraco, 2002)

Na escola, o objetivo dos professores de português é ensinar a norma padrão, porque a padronização é importante (principalmente para um país de tamanho continental como o nosso). É preciso que os alunos saibam seus direitos e deveres como cidadãos e consigam se posicionar diante de injustiças sociais.

Mas o problema surge quando as pessoas afirmam que apenas a norma padrão deve ser utilizada e criticam qualquer coisa que não pertença a essa norma, como o rotacismo no dialeto caipira. Esse modo de pensar é, na verdade, preconceituoso, porque, como mostramos neste post, não tem fundamento no sistema próprio da língua. 

Portanto, para combater esse e outros tipos de preconceito linguístico é preciso uma mudança de atitude: respeitar o conhecimento linguístico de todo e qualquer falante, valorizando o que ele já sabe, e reconhecer na língua que ele fala a sua própria identidade como ser humano. 

SAIBA MAIS 

AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Iba Mendes, 2019 [1920]. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2007 [1999]. 

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora?: sociolingüística & educação. Parábola, 2005. 

ESPÍRITO SANTO, Júlia Maria França. Entre o campo e a cidade: rotacismo em São Miguel Arcanjo. Dissertação (Mestrado em em Linguística) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. p. 116. 2019.

FARACO, Carlos Alberto. Norma-padrão brasileira: desembaraçando alguns nós. In: BAGNO, Marcos (org.). Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002. p. 37-61.

2 Comentários

  1. Penso (mas só penso, não estou aqui querendo impor nada), que o termo mais adequado para a análise do significante da linguagem gestual é GESTOLOGIA, e não FONOLOGIA. Adotar FONOLOGIA para o caso é metáfora bem forçada!... mas...
    Agora, vamos ao caso do preconceito linguístico. Ora, não há como despir a linguagem do seu invólucro ideológico, dos valores socioculturais que permeiam a sociedade e se incrustam, inevitavelmente, no interior da linguagem. Esta seria a única possibilidade de neutralizar o "preconceito" que se amalgama com a linguagem, mas isto é duro de acontecer na Realidade. Vamos dizer: as palavras ferem, suavizam, comprometem, constrangem etc. etc., para além de sua envergadura propriamente linguística. Numa discussão calorosa, por exemplo, um dos sujeitos chama o outro da [ladrão], e isto já é suficiente para um processo criminal, não pelo significado em si, mas pelo caráter agressivo de que se reveste o termo [ladrão]. Este eventual processo criminal resulta de um preconceito, porque, de fato, emana de um valor ideológico atribuído a quem subtrai o que é dos outros.
    Ou o valor ideológico revela-nos apenas um preconceito, e, portanto, não caberia um suposto processo criminal; ou o valor ideológico deve ser levado em conta, e, portanto, o processo é legítimo.
    E o ratacismo? O rotacismo, aparentemente, está na mesma linha de tiro do termo [ladrão]: se o corpo social julgar, na atualidade, que o rotacismo derivaria de defeito de linguagem a ser evitado, será preconceito apenas se os valores ideológicos incrustados na linguagem não valessem a pena ser considerados, o que nos daria, de imediato, a absolvição do réu acusado de injúria por ter chamado seu desafeto de [ladrão].

  2. A teoria do preconceito linguístico é tão linda! Eu também acho: bondosa, igualitária, humana...
    Mas - é bom que se diga - essa teoria esconde-se da sua incoerência. Tenta "colocar a norma padrão" em seu devido lugar. Mas com que fundamento isto ocorre? Por que este preconceito com relação à norma padrão, que não pode se estender a todos os indivíduos, senão com as "devidas ressalvas"? O que tem a língua padrão de tão errado assim?
    Ah, mas é porque a norma padrão é das elites! (É a velha estória das elites como os demônios na face da Terra, que precisam ser destronados a qualquer custo!)
    É... mas se um membro da elite quiser dominar a norma padrão (que seria deles por natureza... Que coisa, não?), vai ter que ralar à frente de professores, gramáticas e dicionários, também!
    A norma padrão não é de ninguém. Resulta de um penoso aprendizado que se estende pela vida toda, e não faz distinção de raça, sexualidade, poder econômico e o que mais possa valer.
    Conta-se nos dedos quem sabe escrever um texto razoável em norma padrão... Imagine, então, falar em norma padrão!
    Apenas meia dúzia de pessoas sabe usar o "cujo" com correção...
    A razão da existência do professor de português está no ensino da norma padrão. Retire-se a exigência de norma padrão, e, ato contínuo, se acabe com a profissão de professor de português, porque não servirá mais pra nada de verdadeiramente relevante.

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