Quando sua língua deixa de fazer sentido

Da primeira edição do The Principles of Psychology de William James (1890), vol. I, page 56. - Scan disponibilizado no Wikimedia Commons [https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Principles_of_Psychology_(James)_v1_p56.png]

O paciente afetado pela Agnosia Verbal deixa de compreender a fala em sua própria língua, apesar de suas capacidades de produção linguística, leitura e identificação de sons ambientes permanecerem intactas.


Texto de:
Anna Carolina de Oliveira Almeida
Leo Vitor Navarro

Alunos do curso de Linguística da Unicamp


Imagine a seguinte situação: você entra em uma sala cheia de pessoas conversando, mas repara que não consegue entender absolutamente nada. Para qualquer lado que você se volta só escuta sons aleatórios. Você sai da sala — e repara que, sim!, você consegue ler a placa na porta — e checa se não entrou por engano em alguma conferência de fãs de Senhor dos Anéis falando em élfico ou então se não foi teletransportado para Essos e não entende nada de dothraki. Sim, você está na sala certa, mas então por que não faz a menor ideia do que está sendo dito?

Essa é mais ou menos a forma como se sente uma pessoa com Agnosia Verbal (conhecida em inglês como Pure Word Deafness, algo como Surdez para Palavras). Trata-se de um distúrbio neurológico raro que faz com que uma pessoa não consiga dar sentido aos sons da língua, que para ela não passam de ruído. Além disso, ela não consegue repetir palavras nem escrever a partir de ditados. O mais intrigante é que, apesar de tudo isso, ela ainda consegue falar, ler e reconhecer sons ambientes! A Agnosia Verbal é observada na maioria das vezes após a ocorrência de um AVC, mas também pode ser ocasionada por lesões cerebrais, demência ou convulsões.¹

Um estudo de caso

Um artigo² de médicos do hospital coreano Daegu Fatima publicado em 2018 foi o primeiro a documentar o caso de um paciente adulto que adquiriu Agnosia Verbal após ter sofrido traumatismo craniano. Um homem de 65 anos foi internado no departamento de neurocirurgia com o cérebro lesionado em decorrência de uma queda. Depois de passar por tomografia e ressonância magnética, ele foi diagnosticado com hemorragia em duas regiões do cérebro. 

Ainda assim, o quadro do paciente era estável, o que possibilitou que fosse tratado sem precisar passar por nenhum procedimento cirúrgico. Três semanas depois, quando transferido para o departamento de reabilitação, ele ainda tinha um pouco de dificuldade para andar e se equilibrar, o que não parecia nada demais. Mas ainda havia algo errado.

Acontece que o paciente não respondia a comandos orais e não conseguia repetir nem ditar palavras. A fala dele, por outro lado, permanecia intacta e ele continuava perfeitamente capaz de ler e interpretar sentenças escritas. Numa avaliação mais detalhada das funções auditivas do paciente, os médicos descobriram que ele havia sofrido uma pequena perda, inferior a 50 decibéis, mas ainda distinguia sons verbais de não-verbais e identificava estes últimos com precisão. Ele dizia que, quando alguém falava, o que ele ouvia era como um zumbido, um ruído incômodo. 

Na tentativa de entender o que estava acontecendo, os médicos começaram uma série de exames de cognição. Suas capacidades de produção linguística obtiveram resultados muito melhores que as capacidades de compreensão, como já era de se esperar, e a diferença dos resultados dos mesmos testes realizados oralmente ou na modalidade escrita era gigantesca. Mas o diagnóstico de Agnosia Verbal não foi o primeiro que ele recebeu. Na verdade, os médicos pensavam que ele tinha a chamada Afasia de Wernicke, um distúrbio neurológico que também afeta a fala; mas suas capacidades de nomeação, leitura, expressão e escrita não eram realmente as de alguém com essa afasia. Mais alguns testes auditivos foram realizados, até a equipe médica ter certeza de que esse paciente não apresentava grandes prejuízos cognitivos nem auditivos. Foi então que ele foi diagnosticado com Agnosia Verbal. 

Ao longo do tratamento, o paciente passou por terapia de fala e reabilitação cognitiva e treinava a compreensão verbal através de exercícios de escrita. Dois meses depois, suas capacidades de entendimento de fala apresentaram alguma melhora: ele já conseguia atribuir sentido a algumas palavras isoladas. Seis meses mais tarde, ele evoluiu para um estágio em que já se podia dizer que havia compreensão se alguém falasse bem devagar na altura dos seus olhos — contudo, ainda no nível das palavras, nunca de sentenças inteiras. 

Os médicos do Daegu alertam sobre a importância de se avaliar cuidadosamente as faculdades auditivas, cognitivas e especificamente linguísticas do paciente, já que a Agnosia Verbal pode ser facilmente confundida com outros distúrbios — deficiência auditiva, disfunção cognitiva e afasia sensorial são alguns deles —, casos em que o paciente não receberá o tratamento adequado.

O que acontece no cérebro?

Mas o que exatamente houve no sistema neurológico desse paciente para que ele desenvolvesse essa agnosia? Para tentar compreender como esse distúrbio funciona, vamos partir do princípio e entender como os sons chegam ao cérebro. 

Afinal, o que são os sons? Nada mais que ondas que viajam pelo ar e chegam até nossos receptores auditivos. O caminho é este: as vibrações sonoras no ar são captadas pelo ouvido e, em seguida, atingem o tímpano. Esses pequenos tremores fazem com que a membrana timpânica vibre e um conjunto de três ossos pequenininhos atrelados a ela (chamados de martelo, bigorna e estribo) amplificam a vibração por meio de um sistema similar a “roldanas” e a transmitem para o canal da cóclea3, que tem o formato de um caracol e está cheio de um líquido único em nosso organismo. Todo aquele processo de estremecimentos faz com que esse líquido se movimente dentro da cóclea, que, por sua vez, é revestida de células ciliares (isto é, cheias de fiapinhos), as quais captam o movimento e o transformam em energia elétrica, que é, enfim, por meio dos nervos auditivos, transmitida ao cérebro, onde será “traduzida” em sons.4

Sistema auditivo humano 
(Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Auditory_system#/media/File:Ear-anatomy-text-portuguese.PNG)

Visto que uma pessoa com Agnosia Verbal ainda consegue diferenciar sons ambientes dos sons de uma língua, o problema deve estar depois do processo de detectar vibrações no ar e enviá-las para o cérebro. Vamos, portanto, tentar analisar como esse som é processado.

Após percorrer o sistema de nervos auditivos, os sons da língua (agora “traduzidos” para sinais neurais) atingem o córtex auditivo primário, uma fração do cérebro responsável por interpretá-los. Cabe ressaltar que, por ainda conseguir identificar a diferença entre um ruído qualquer e o som de uma voz, esse primeiro processamento auditivo deve estar ileso.5

O lado esquerdo do cérebro humano, responsável por processar a linguagem, pode ser dividido em duas regiões: uma posterior, responsável pela compreensão dos estímulos linguísticos (sejam eles orais, escritos ou sinalizados), e uma anterior, responsável pela produção linguística (seja ela, também, oral, escrita ou sinalizada). O tálamo6 é uma estrutura cerebral e uma de suas funções é transmitir informações sensoriais auditivas ao córtex cerebral. Nesse sentido, caso a rede de transmissões do tálamo para a parte posterior esquerda do cérebro — bem como os “cabos neurais” que transmitem informação sensorial auditiva do lado direito para o esquerdo — seja danificada, essa região da nossa massa cinzenta fica isolada e, por conseguinte, os sons são interpretados como ruídos sem sentido. 

Dado que o problema está na conexão com a parte posterior (responsável, vale repetir, pela compreensão), a produção (isto é, a fala) permanece intacta. Contudo, ao longo do tempo, a habilidade linguística de uma pessoa com Agnosia Verbal decai, uma vez que, por não compreender sua própria produção, ela se torna cada vez menos fluente. É interessante notar como seu cérebro, sendo incapaz de mandar informação sensorial auditiva para a região onde a linguagem é processada, faz com que o paciente não entenda a fala; a transmissão de informação visual, entretanto, continua em perfeito estado, possibilitando que ele ainda seja capaz de ler.7


Funções associadas a cada hemisfério do cérebro (Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Brain_Lateralization.svg)

Mas o que é Agnosia, afinal?

Em linhas gerais, a maneira como percebemos o mundo ao nosso redor decorre de dois processos que trabalham juntos: a sensação e a percepção. Sensação é toda informação externa, tal como imagens, sons, gostos, texturas e cheiros, que chega até nós por meio de nossos órgãos sensoriais. Percepção é o processo interpretativo dessas sensações, é o que o cérebro compreende a partir do estímulo que recebeu.

A agnosia é caracterizada pela interrupção de algum desses processos de percepção. Como são muitos os tipos de percepções desencadeados por diferentes sensações, existem diferentes tipos de agnosia. Por exemplo, ao passo que temos a Agnosia Verbal, que impede o reconhecimento da língua falada, temos também a Prosopagnosia, que interfere na capacidade de identificar rostos familiares, como os de membros da família ou amigos, e a Simultanagnosia, caracterizada pela incapacidade de perceber mais de um objeto (ou mais de um de seus componentes) simultaneamente.8 É interessante mencionar ainda a Amusia9, um tipo de agnosia auditiva que impede o paciente de perceber e reproduzir música — em Alucinações Musicais (título em português do livro Musicophilia10), o neurologista Oliver Sacks relata casos de pacientes que ouviam ruídos incômodos ao serem expostos a Mozart, por exemplo.

Existe cura?

Vimos que os tratamentos aplicados ao paciente que foi vítima de traumatismo craniano não o curaram de fato. O máximo que os médicos conseguiram com a terapia de fala, a reabilitação cognitiva e os treinos escritos de compreensão foi fazer com que o paciente gradativamente passasse a compreender mais e mais palavras isoladas.

Entender o funcionamento do cérebro e como suas diversas regiões se relacionam é um passo essencial para desenvolver um método efetivo na cura desse distúrbio. Em 2013, por exemplo, uma mulher que o desenvolveu após lesionar uma área do cérebro denominada Área de Wernicke teve sua capacidade de compreender linguagem restaurada após a cura de sua lesão.5 Há fortes indícios de que essa área, ou seus arredores, esteja envolvida com a Agnosia Verbal, pois a maioria dos indivíduos portadores do distúrbio sofreu danos nessa região.

Tentativas de recobrar a habilidade de compreensão linguística dos pacientes, em geral, têm sido quase infrutíferas. A terapia de discriminação fonêmica, que consiste em ajudar o paciente a discriminar fonemas (isto é, sons semelhantes cuja pequena diferença sonora resulta na distinção de significado entre palavras, como “p” e “b” em “pato” e “bato”), obteve alguns resultados, mas os falantes apresentaram enorme dificuldade em distinguir as sequências sonoras /ba/, /da/ e /la/, dado que as consoantes [b], [d] e [l] se diferenciam em apenas milisegundos de informação acústica. Mesmo que os pacientes fossem capazes de distinguir segmentos sonoros, a informação semântica continuava comprometida (isto é, eles seguiam incapazes de atribuir sentido aos sons). A forma mais eficaz até o momento de se lidar com o problema é unindo produções orais a representações visuais de movimentos labiais.5 

PARA FINALIZAR

De volta à experiência inusitada com que iniciamos o texto: não, a questão não é as pessoas estarem falando em élfico ou dothraki e você não as entender, mas sim que certas regiões do seu cérebro estão falando em élfico enquanto outras estão falando em dothraki e elas não conseguem se comunicar. Podemos compreender o funcionamento das diversas regiões do cérebro como um quebra-cabeças: qualquer pecinha que não se encaixe perfeitamente ao longo do processamento auditivo pode resultar em um caos sem sentido algum para o falante. 

REFERÊNCIAS:

[1] KRIVAL, K. Pure Word Deafness. In: Kreutzer J.S., DeLuca J., Caplan B. (eds). Encyclopedia of Clinical Neuropsychology. Springer, New York, 2011. Disponível em: <https://link.springer.com/referenceworkentry/10.1007/978-0-387-79948-3_918>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[2] KIM J.M.; WOO S.B.; LEE Z.; HEO S.J., PARK D. Verbal auditory agnosia in a patient with traumatic brain injury: A case report. Medicine, Baltimore, vol. 97, n. 11, mar. 2018. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5882388/#:~:text=Verbal%

20auditory%20agnosia%20is%20the,ability%20to%20identify%20nonverbal%20sounds>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[3] ANATOMIA da cóclea. eauriz, Guia da Audição de A a Z, [s.d.]. Disponível em:  <https://www.eauriz.com.br/anatomia-da-coclea/>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[4] COMO escutamos. Surdez, [s.d.]. Disponível em: <http://surdez.org.br/como_escutamos.asp>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[5] CAO, C. For those with pure word deafness, actions always speak louder than words. Wu Tsai. Neurosciences Institute. Stanford University, 2017. Disponível em: <https://neuroscience.stanford.edu/news/those-pure-word-deafness-actions-always-

speak-louder-words>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[6] PEREA-BARTOLOMÉ, M.V., LADERA-FERNÁNDEZ, V. El tálamo: aspectos neurofuncionales [Neurofunctional aspects of the thalamus]. Rev Neurol, [S.I.], vol. 38, n. 7, pp. 687-693, abr. 2004. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/15098193/>. Acesso em: 27 mar. 2023. 

[7] GRIESAR, B. Pure word deafness. YouTube, jan. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YTHSV0VEW6Q&t=10s>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[8] HUANG, J. Agnosia. Manual MSD. Versão para profissionais de saúde, 2021. Disponível em: <https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/dist%C3%BArbios-neurol%C3%B3g

icos/fun%C3%A7%C3%A3o-e-disfun%C3%A7%C3%A3o-dos-lobos-cerebrais/agnosia>. Acesso em: 27 mar. 2023.

[9] LANA, A. M. A. Amusia como distúrbio auditivo central na esclerose múltipla: projeto de investigação sobre a sua ocorrência em pacientes com transtornos cognitivos. 2011. 47 p. Monografia de Especialização (Especialização em Neurociências e suas Fronteiras) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. 

[10] SACKS, O. Musicophilia: Tales of Music and the Brain. New York: Alfred A. Knopf, 2007. 

Saiba mais:

Agnosia (em inglês)

Prof Gabriele Miceli – Anatomofunctional mechanisms underlying pure word deafness

Cognition Lecture 7 4 Brain and Language (Agnosia Verbal em 5:35)

Pure Word Deafness

Vídeo sobre como a audição funciona

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