Coerção Aspectual: Uma abordagem linguística da Percepção do Tempo

Prêmio CAPES de Tese 2016

Escrevi este post para tentar explicar, de forma simplificada, o conteúdo de minha tese de doutorado defendida em 2015 na UFRJ e outorgada com menção honrosa no Prêmio Capes de Tese em 2016. Infelizmente será difícil escapar dos principais termos técnicos, mas todos eles estão devidamente explicados no Glossário do #Linguística.


Percepção do Tempo

As pesquisas sobre a percepção do tempo surgiram na psicologia com o objetivo de compreender os mecanismos envolvidos em três vertentes do controle temporal que conhecemos hoje:

(1) A Cronobiologia (Tempo Circadiano) estuda os ciclos metabólicos e comportamentais das espécies;
(2) A estimação do tempo subjetivo (Tempo dos Intervalos) que busca compreender como conseguimos monitorar subjetivamente o tempo e como acontecem ilusões temporais como o fato de 1 minuto da comida esquentando no microondas demorar mais quando estamos com fome do que quando estamos realizando outras atividades;
(3) A coordenação motora (Tempo automático), como o exímio controle dos músculos da boca quando falamos, das pernas quando andamos, das mãos quando digitamos, etc.

Coerção Aspectual

A interface da linguagem com a percepção do tempo geralmente é realizada nesta última vertente (3), de ordem mais objetiva, através do campo da percepção da fala. Mas também existem alguns fenômenos mais subjetivos de ordem temporal que poderiam ser alternativamente explicados através dos modelos de Percepção do Tempo, como a chamada coerção aspectual.

Grosso modo, a coerção aspectual ocorre quando temos uma incompatibilidade no contorno temporal entre um evento e seu contexto temporal. Considere as sentenças (4) e (5) abaixo:

(4) João correu por 10 minutos
(5) João pulou por 10 minutos

As duas sentenças possuem a mesma construção e as mesmas características sintáticas. Mas ao observarmos sua semântica, veremos que em (4) se trata de um evento único e em (5) de um evento iterativo (que se repete). A razão para tal diferença é que um pulo não pode durar por dois minutos, logo, nossa mente realiza uma operação extra na interpretação, transformando [pular] em uma série de eventos. Poderíamos dizer que esta operação é apenas uma hipótese subjetiva criada por teóricos, mas psicolinguistas e neurocientistas da linguagem evidenciaram que a leitura de (4) e de (5) são diferentes através de diversos testes de tempo de leitura, de rastreamento ocular, EEG e MEG.

A razão deste nome

E de onde vem o nome “coerção aspectual”? No geral, vamos dizer que aspecto é um termo correspondente a diversas características ligadas ao contorno temporal dos eventos como continuidade, existência de um ponto final inerente etc. Tradicionalmente, a Psicolinguística explica o fenômeno através de características aspectuais dos eventos, em especial o fato de [correr] ser um evento durativo e [pular] ser considerado um evento [pontual]. Desta forma, o evento em (4) é compatível com seu contexto, ao contrário de (5). Os testes realizados nos últimos 20 anos corroboram esta hipótese. Por outro lado, nenhum destes testes buscou verificar a elasticidade dos eventos de acordo com diferentes contextos temporais. É este ponto crucial que guiou minha tese.

Hipótese

Se a coerção for um fenômeno aspectual, será impossível causar coerção em eventos durativos, independente da elasticidade do contexto. Mas se a coerção for um fenômeno guiado pelo nosso conhecimento sobre a duração subjetiva de um evento, cuja aquisição é explicada pela percepção do tempo, eventos que possuem uma determinada duração serão mais difíceis de processar se os inserirmos em contextos maiores ou menores. E os métodos e evidências encontradas deverão ser semelhantes aos encontrados nos testes realizados até então.

O experimento psicolinguístico

Para verificar estas hipóteses, alguns participantes da pesquisa classificaram diversos eventos conforme a primeira  duração que lhes viesse a mente entre [pontual], [segundos], [minutos] e [horas]). Para o teste principal, selecionamos aqueles eventos que duram por [minutos] e os inserimos em quatro contextos temporais distintos, como exemplificado abaixo.

(6) Durante alguns segundos Beto cantou a música no palco do teatro (contexto menor que o evento)
(7) Durante alguns minutos Beto cantou a música no palco do teatro (contexto igual ao evento)
(8) Durante algumas horas Beto cantou a música no palco do teatro (contexto maior que o evento)
(9) Durante alguns dias Beto cantou a música no palco do teatro (contexto cíclico)

O método utilizado foi o de leitura auto monitorada, na qual os participantes leem as frases parte por parte e pressionam uma tecla para seguir para a próxima. Enquanto isso, o computador monitora o tempo necessário para ler cada uma das partes da frase. Os resultados podem ser observados na imagem abaixo.

Considerações Finais

Podemos observar que, de fato, a leitura dos eventos com duração de minutos em contextos diferentes (segundos, horas e dias) leva mais tempo que o necessário para ler a sentença com contexto igual ao do evento, indicando que o efeito de coerção não é de ordem aspectual, mas sim um fenômeno relacionado a Psicologia da Percepção do Tempo. Ainda assim, outros testes precisam ser realizados, incluindo testes com rastreamento ocular e neurofisiológicos de forma a coletar evidências tão robustas quanto as apresentadas até hoje na literatura sobre Coerção Aspectual.

 

Referências:

SAMPAIO, Thiago; FRANÇA, Aniela; MAIA, Marcus. Does Time Perception Influence Language Processing? Self-Paced Reading Evidence of Aspectual Coercion in Durative Events. In: CHRUSZCZEWSKI, Piotr (Org.). Languages in Contact: Ways to Protolanguage 3. Wroclaw: Wyższa Szkoła Filologiczna we Wrocławiu & Polska Akademia Nauk, 2014. p. 139-156.

SAMPAIO, Thiago; FRANÇA, Aniela; MAIA, Marcus. Linguística, Psicologia e Neurociência: A união inescapável destas três disciplinas, Revista Linguística (UFRJ), v. 11, n. 1, p. 230-251, 2015.

SAMPAIO, Thiago. Coerção Aspectual: uma abordagem linguística da Percepção do Tempo. 2015. 398f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*