Viés cognitivo: você é obtuso e nem sabia…
Well…
Também não é assim, de certo modo. O caso é que o mundo (e as coisas do mundo) é grande e complexo, cheio de situações novas nas quais temos que nos comportar de maneira adequada e inteligente, de maneira a produzir as consequências desejadas, mas geralmente sem experiência prévia. O que fazer nessas horas? Agir como costumamos agir em ocasiões similares, mas não iguais, e esperar que tudo dê certo parece uma boa estratégia. É justamente nessa situação inusitada que a gente costuma fazer julgamentos errados e, em algumas vezes, desastrados.
O problema é que, como na maioria das vezes a estratégia dá certo, tendemos a repetí-la sempre em situações similares (mas não iguais, lembre-se). É como se formássemos grandes categorias-guarda-chuva de respostas a determinadas situações, que são usadas para adequarmos o nosso comportamento rapidamente, quando a situação exige. Essas categorias são os tais dos “viéses cognitivos“, ou seja, padrões de comportamentos sob controle de determinadas generalizações de controle de estímulos. A linguagem parece que só torna a coisa mais complicada, mas é fácil… Veja:
O exemplo mais clássico de viés cognitivo é o comportamento preconceituoso. Algumas categorias de estímulos – por exemplo, mulheres bonitas e loiras – determinam algumas maneiras de nos comportarmos (lembrando que perceber, sentir e pensar também são comportamentos) – “ah, lá vem a loira-burra”, ou o comportamento de explicar uma coisa nos mínimos detalhes didáticos para uma mulher loira e bonita, só porque você “acha” que ela não irá entender o que você diz.
Há vários outros viéses cognitivos e, believe me, a gente se comporta de acordo com esses padrões com frequencia muito maior do que a gente mesmo poderia acreditar. O que, em si, já é um viés cognitivo… Enfim. Formas obtusas de pensamento, algumas vezes, são apenas falta de controle sobre as respostas generalizadas.
Bradley Wray, um professor americano, fez uma musiquinha descrevendo alguns dos viéses cognitivos mais comuns que é uma pérola… escutem (e leiam a legenda!) com atenção – e sem viés.
Letra da música, em inglês, of course my horse!
By Brad Wray
I’m biased because I knew it all along… hindsight bias… I knew it all along.
Hindsight bias… I knew it all along.
I’m biased because I put you in a category which yo may or may not belong…
Representativeness bias don’t stereotype this song.
I’m biased because of a small detail that throws off the big picture of the thing…
Anchoring bias: see the forest for the trees.
I’m biased toward the first example that comes to my mind…
Availability bias to the first thing that comes to mind.
Oh, oh… Bias! Don’t let bias into your mind!
Bias don’t try this…
It’ll influence you thinking
and memories, don’t mess with these
but you’re guilty of distorted thinking.
Cognitive bias…
Your mind becomes blinded
decisions and problems you’ve
been forced to solve them wrongly.
I’m biased because I’ll only listen to what I agree with…
Confirmation bias… your narrowminded if you are this.
I’m biased because I take credit for success but no blame for failure…
Self-serving bias… my success and your failure.
I’m biased when I remember things they way I would’ve expected them to be…
Expectancy bias, false memories are shaped by these.
I’m biased because I think my opinion now was my opinion then…
Self-consistency bias but you felt different way back when.
Oh, oh… Bias! Don’t let bias into your mind!
Bias don’t try this…
It’ll influence you thinking
and memories, don’t mess with these
but you’re guilty of distorted thinking.
Cognitive bias your mind becomes blinded;
Decisions and problems you’ve been forced to solve them wrongly!
Alguns limites. (Ou: como não explicar o massacre de Realengo.)
Dois dias ouvindo opiniões de psicólogos das mais diversas orientações, psiquiatras, psiquiatras forenses, representantes religiosos, profissionais de segurança, analistas diversos e opinadores-sobre-todos-os-assuntos. Além da óbvia indignação pela quantidade de bullshit dita na maioria dos telejornais, dos pseudo-noticiários e dos programas vespertinos… um monte de dúvidas.
Todo mundo quer uma explicação, um motivo, uma causa certa e determinante para o comportamento do atirador que entrou na escola de Realengo e matou 12 crianças, feriu mais uma dezena delas e depois cometeu suicídio quando confrontado com um policial. O que ninguém quer ouvir é um claro e sonoro “não sei”. Como se, a um dito “especialista”, fosse vetada qualquer expressão de dúvida, de limitação das teorias explicativas. Um “psi” (ou “AS” psi) tem que ter uma explicação e uma solução.
Sinto informar: NÃO SEI. E digo mais: NÃO SABEMOS. E afirmo categoricamente: NINGUÉM SABE. Não mesmo. Nem os especialistas do Jornal Nacional, da Discovery, do Datena, e nem ninguém sabe, realmente, as razões que levaram à tragédia no Rio de Janeiro. Temos, no máximo, um levantamento de hipóteses explicativas, algumas mais palusíveis do que outras e diversas delas excludentes entre si.
Vejam, o assassino está morto. Ninguém mais pode examiná-lo, entrevistá-lo, observar seus comportamentos, avaliar suas funções cognitivas e sua saúde mental. Não há mais como levantar hipóteses funcionais testáveis para seu repertório comportamental, a não ser aquelas baseadas em relatos de outras pessoas, agora todos enviesados pelas informações da imprensa e pelas regras morais e religiosas de cada pessoa que foi, um dia, testemunha do comportamento do atirador.
Isso não quer dizer que a gente não deve procurar as possíveis causas do acontecido. Mas é um alerta para que não compremos qualquer discurso sobre o fato como verdadeiro, único, definitivo. Por exemplo, a explicação causal da “doença mental” do atirador. Sim, dado que seja confirmada a informação de que a mãe biológica sofria de esquizofrenia, há uma grande PROBABILIDADE de que ele também fosse portador desse transtorno. Quando um parente em primeiro grau (pais ou irmãos) apresenta o diagnóstico da doença, a probabilidade de que o indivíduo também seja suscetível à doença é cerca de 10% maior do que a probabilidade de uma pessoa sem histórico familiar ser suscetível à esquizofrenia (Kendler & Walsh, 1995).
Mas não há (pelo visto, nunca houve) o diagnóstico da doença. E ela não pode ser tomada como EXPLICAÇÃO do comportamento violento. A taxa de prevalência da esquizofrenia entre a população mundial é de 0,92% para homens e 0,9% para mulheres, segundo a OMS. (A prevalência é a medida da proporção de indivíduos que apresentam um determinado transtorno no momento da avaliação). E a incidência desta doença, ou seja, o número de novos casos que se verificam anualmente, oscila entre 7 e 14 em cada 100 mil habitantes, com idades compreendidas entre os 15 e os 54 anos (Mari & Leitão, 2000). Entre os sintomas marcantes da doença estão delírios de grandeza, delírios persecutórios e alucinações, além de retraimento social e o tal do “afeto embotado”, ou seja, a incapacidade de sentir afeto, ou seu oposto, a exacerbação dos sentimentos de afeto por uma ou algumas pessoas. Mas o que deve ser especialmente destacado é que, entre pessoas com doença mental como esquizofrenia, transtorno bipolar e outras psicoses, apenas 6,4% pode se tornar violenta e cometer crimes, principalmente quando a doença é associada ao uso de álcool e de drogas. Os outro 93% não se comportarão agressivamente. Só para ter uma comparação, entre as pessoas que fazem “apenas” uso abusivo de álcool, o nível de violência e agressividade é de 10% (Hodgins, Mednick & Brennan, 1996).
Além disso, o conteúdo das alucinações e delírios do doente será diferente em cada caso, a depender das experiências de vida, do ambiente em que a pessoa vive, da presença ou ausência de tratamento, de inúmeras variáveis que não estão mais ao alcance do conhecimento daqueles que se arvoram a “analisar” o criminoso. A história de interações do atirador com seu ambiente físico e social é mais determinante de seu comportamento do que o fato dele ser ou não doente mental, porque é dessa experiência que ele tira o repertório para constituir o delírio e as alucinações.
Então, ao invés de continuar procurando “motivos” na doença mental, que tal começar a verificar quais as condições de vida dessa pessoa? Como foi sua interação familiar? O que ele viveu quando estava na escola? Qual a rede de suporte social que estava presente durante sua vida? Havia uma rede de suporte social para esse indivíduo?
É, minha gente, o buraco é BEM mais embaixo.
Referências:
Mari, J.J.; & Leitão, R.J. (2000). A epidemiologia da esquizofrenia. Rev. Bras. Psiquiatr., 22 (1). ISSN 1516-4446.
Kendler, K.S.; & Walsh, D. (1995). Gender and Schizofrenia: Results of an epidemiological-based family study. The British journal of Psychiatry, 167, 184-192.
Hodgins, S.; Mednick, S.A.; Brennan, P.A. (1996). Mental disorder and crime. Evidence from a Danish birth cohort. Arch Gen Psychiatry 53, 489-496.