Pesquisa Mundial Sobre Cores: nomeação de cores revela “temas” universais e suas diversidades inter-linguísticas

Lindsey, D.T. & Brown, A.M. (2009). World Color Survey: color naming reveals universal motifs and their within-language diversity. Proceedings of the National Academy Of Sciences of the United States of America, 106, 19785-19790 DOI: _10.1073_pnas.0910981106

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Todo mundo já se pôs a pensar, pelo menos cinco minutos na vida, sobre a experiência visual alheia. Ou eu é que sou meio esquisita. Mas acho a pergunta “será que o amarelo que ele vê é o mesmo amarelo que eu vejo?” com certeza já foi feita muitas vezes, com pequenas modificações, por muita gente.

Não estou falando dos processos fisiológicos envolvidos: em condições normais, todo mundo tem um determinado conjunto de células especializadas nos olhos, que quando sensibilizadas por determinadas “faixas” do espectro luminoso, mandam sinais específicos para o córtex visual, que os decodifica e interpreta. Até aí, tudo bem, todo mundo passa por isso. Mas daí pra frente é que a porca torce o rabo, e o que seria do azul se todos gostassem do amarelo. Acontece que o que chamamos de “experiência visual” é algo difícil de determinar, justamente por sua natureza SUBJETIVA, isto é, porque o que cada um de nós percebe é única e exclusivamente acessível a sua própria consciência, de modo que eu só posso entender a sua experiência baseada no que aprendi com minhas experiências. Para fins de comunicação e entendimento entre as pessoas, vá lá que a coisa ainda funciona até certo nível, mas isso de modo algum significa que as experiências sejam as mesmas e que dois indivíduos têm a mesma percepção sobre o mesmo objeto. Como diz o filósofo Thomas Nagel no ensaio “What is like to be a bat?“, esse caráter subjetivo da experiência não pode ser capturado por nenhum instrumento conhecido de medição cerebral e nem pode ser reduzido à análise de estados mentais.

 

cores21.jpgCores. Intrigante, hum?!?!

Mas será invariável e determinadamente assim mesmo? Uma pesquisa mundial feita desde os anos 70 com pessoas falantes de idiomas não-escritos de culturas pré industriais (e por isso pouco afetadas pela cultura de massa) encontrou indícios fortes de que pode haver, pelo menos, 11 grandes “agrupamentos” universais usados por culturas diversas ao redor do mundo para classificar sistemas de cores. E o mais intrigante é que esses temas ocorrem em lugares diferentes, com pequenas variações individuais, em línguas completamente diferentes, indicando que os processos lingüísticos usados para nomear as cores devem ter evoluído de maneira similar em todas as línguas.

O World Color Survey compilou uma base de dados imensa sobre o tema, e os pequisadores Delwin T. Lindsey e Angela M. Brown publicaram esse artigo que eu estou resenhando, chamado “World Color Survey: color naming reveals universal motifs and their within-language diversity”, na PNAS de novembro do ano passado, comparando a formação histórica dos termos usados para nomear cores em mais de uma centena línguas ao redor do mundo. O objetivo dos pesquisadores era confirmar a hipótese de que existe um conjunto limitado de categorias universais do qual todas as linguagens derivam suas nomeações para cores e que, além disso, as linguagens “evoluem” adicionando nomes de cores em uma seqüência relativamente fixa.

A sacada dos caras está no método usado para a análise dessa montanha de dados: ao invés de examinar as palavras para nomeação de cores dentro de uma língua específica, os pesquisadores voltaram suas verificações para o nível das variações individuais, ou o que eles chamam de “idioletos”, que é a variedade pessoal de linguagem de um falante individual. Sim, por increça que parível cada um de nós tem seu próprio idioleto, sua maneira singular de falar que varia discretamente da linguagem usada por todas as outras pessoas falantes do mesmo idioma. Com essa estratégia metodológica, foram verificados os termos para nomeação de cores de 2616 indivíduos falantes das 110 línguas estudadas, em resposta a um conjunto standart de 330 cores, apresentados um por vez, numa ordem pseudorandômica fixa, para cada um dos participantes. Só de pensar na quantidade de tratamentos estatísticos, meu cérebro entra em parafuso.

Pois essas análises revelaram oito agrupamentos estatisticamente significantes de padrões cromáticos X nomes de cores: vermelho, verde, azul, “grue” (aquela mistura meio indiscriminada entre verde e azul – do inglês, green e blue), amarelo-laranja, marrom, rosa e roxo. Mais três agrupamentos chamados “acromáticos” foram feitos reunindo as “pontas” da escala: preto (para os tons mais escuros), branco (para os tons mais claros) e cinza (para os tons intermediários que excluíam branco e preto). Os resultados levaram à interpretação de que, para cada grupamento, há, entre as línguas estudadas, uma variação pequena – de três a seis – de temas para nomear as cores, fortalecendo a hipótese de que há categorias universais para a nomeação de cores. Há agrupamentos com maior concordância (ou seja, menos temas) entre as nomeações, como os agrupamentos acromáticos e o grue. De modo geral, apenas sete idiomas (6,4% do total) mostraram temas únicos, e a média foi de três temas para cada agrupamento entre todos os idiomas.

 

figuracores1.jpgEm (A) é mostrada a tabela de cores usada pelo WCS e em (B) os 11 agrupamentos feitos à partir dos resultados encontrados na pesquisa. (Retirado de Linsey & Bronw, 2009)

 

Os autores concluem, disso tudo, que:

“Our analyses indicate that the color terms used by the WCS informants are drawn on a universal glossary of 11 color terms, and that the particular suite of color terms used by each informant is drawn on a set of about three to six universal color-naming systems, which we call motifs.”

Tradução: “Nossas análises indicam que os termos para cores usados pelos informantes da WCS estão restritos a um glossário universal de 11 termos para cores, e que esse conjunto particular de termos para cores usados por cada informante está restrito num conjunto de cerca de seis sistemas de nomeação universais, que nós chamamos de temas.”

Ou seja, embora provenientes de culturas e sistemas idiomáticos completamente diferentes, os participantes do WCS mostraram pouca variabilidade na nomeação das cores, o que seria o esperado numa amostragem tão grande. Por si só, essa descoberta já é fantástica e, nas palavras dos próprios autores, um tantinho “contra intuitiva”. Porém a outra hipótese colocada no início do artigo (de que a evolução dos termos de nomeação para cores seria relativamente fixa) ficou um pouco sumida na descrição dos resultados. Apenas na discussão geral, é mencionado que:

“Variations in within-language diversity across the WCS provide a way to examine color term evolution by using synchronic data. Our simplex analysis of these variations indicates that color lexicons change over time and do so in a reasonably orderly fashion.”

Tradução: “Variações na diversidade inter-linguística entre os participantes do WCS provêm um meio de examinar a evolução dos termos para cores pelo uso de dos sincrônicos. Nossas análises simplex dessas variações indicam que os léxicos para cores mudam ao longo do tempo e que isso ocorre de uma maneira razoavelmente ordenada.”

Sinceramente, não entendi isso dos resultados. Mas que o resto é bacanudo pra caramba, isso é… Né, não?

O que faz a arte ser bela? Apreciação estética e tecnologia nas pinturas de Vermeer

Hantula, D.A., Sudduth, M.M., & Clabaugh, A. (2009). Technological effects on aesthetics evaluation: Vermeer and the camera obscura The Psychological Record, 59, 323-334
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Este post inaugura a sessão de Resenhas de Artigo. O que vai explicado aqui é o seguinte: “Technological effects on aesthetics evaluation: Vermeer and the camera obscura“.

Os críticos e estudiosos de Arte entendem a apreciação estética como a “experiência do belo“, e os fenômenos que influenciam essa experiência ainda não foram claramente estudados pelas Ciências Sociais e nem pela Psicologia. Uma dessas possíveis variáveis que poderiam exercer influência sobre a apreciação da arte e do belo é a forma ou a tecnologia usada para a produção da arte. Com a disponibilidade e o aumento do uso de novas tecnologias para produzir criações artísticas, os apreciadores de arte têm se deparado constantemente com a pergunta: pode uma pessoa leiga detectar o uso de certas tecnologias que o artista usou para ajudá-lo? Ou ainda, em que grau o uso de tecnologias pode afetar o julgamento estético das pessoas sobre uma obra de arte?

Essas questões foram levantadas pelos pesquisadores Donald Hantula, Mary Margaret Sudduth e Alisson Clabaugh em um artigo publicado recentemente pelo Psychological Record:

With the ready availability of technology that can be used in aesthetic creation, such as a digital camera to take photographs, a computer program to create graphic art, or a synthesizer to compose music, the role of technology as a contextual factor in the evaluation of art deserves further scrutiny.

Tradução: “Com a pronta disponibilidade de tecnologias que podem ser usadas na criação estética, tais como câmeras digitais para tirar fotografias, programas de computador para criar artes gráficas ou sintetizadores para compor músicas, o papel da tecnologia como fator contextual para a avaliação da arte merece ser melhor estudado.”

Para estudar o efeito do uso de tecnologias na produção artística, Hantula, Sudduth e Clabaugh (2009) delinearam um experimento para verificar como pessoas leigas conceituariam obras feitas com o uso de recursos tecnológicos e se isso mudaria seu julgamento sobre elas. Para isso, os pesquisadores usaram obras do pintor holandês Vermeer, conhecido dos críticos e conhecedores de arte pela suspeita de ter usado, por um período de sua obra, um aparato chamado camera obscura. Esse objeto, precursor da moderna câmera fotográfica, tornaria o pintor capaz de produzir desenhos que seriam quase reproduções fotográficas de uma cena, embora ainda precisem ser desenhados e pintados sobre uma tela.

 

camera-obscura.jpg

Na camera obscura, um sistema de lentes parecido com aqueles usados em câmeras fotográficas não digitais é usado para que o artista visualize uma “imagem fotográfica” da cena que deseja pintar.

 

No primeiro experimento, os participantes (29 estudantes universitários interessados em Arte) foram apresentados a 20 reproduções das obras de Vermeer, sendo metade delas do período anterior ao suposto uso da camera obscura e a outra metade do período posterior, com provável uso do aparato.

 

n-girl-asleep-at-a-table.jpg“Girl Asleep at a Table”, pintura feita em 1657 sem o uso da camera obscura.

 

y-the-concert.jpeg

“The Concert”, pintada em 1665-1666 com o uso do aparato tecnológico.

 

As pinturas foram apresentadas em ordem randômica, uma por vez, e os participantes faziam apreciações de cada obra respondendo um questionário com escalas de cinco pontos, onde 1 = baixo e 5 = alto. Foram avaliadas pelos participantes cinco dimensões estéticas da obra: agradabilidade (pleasingness), gosto (liking), preferência (preferability), beleza (beauty) e interesse (interestingness).

Os resultados apontaram que as pituras feitas com o uso da camera obscura foram significantemente melhor avaliadas do que aquelas feitas sem o uso do aparato, reforçando a hipótese de que o uso da tecnologia aperfeiçoou a técnica do pintor, tornando as obras “mais belas” e melhorando o julgamento estético que as pessoas fazem sobre as pinturas de Vermeer.

 

imagem12.jpgA tabela mostra, para cada uma das 20 obras, se foi ou não usada a camera obscura, a média das avaliações de todas as dimensões estéticas feitas pelos participantes e a medida do desvio padrão das avaliações estéticas. Imagem retirada do artigo de Hantula e cols. (2009).

 

No segundo experimento, outros 90 participantes foram divididos em dois grupos: um grupo assistiu uma aula em que recebeu informações sobre a camera obscura e seu uso pelo pintor Vermeer, e o outro grupo assistiu apenas uma aula geral sobre a criação artística da escola realista holandesa. Depois da aula, foi pedido aos participantes que avaliassem quatro obras de Vermeer usando as mesmas dimensões estéticas e a mesma escala anterior de cinco pontos, acrescidas de uma nova dimensão – “gostaria de ver esta pintura novamente?” – a ser respondida com a escala de cinco pontos.

Os resultados mostraram que, embora as avaliações dos participantes na condição “sem informações sobre a camera obscura” fossem numericamente maiores do que as avaliações dos participantes na condição “com informações sobre a camera obscura”, essa diferença não era estatisticamente significante. Em conjunto, os resultados do estudo de Hantula, Sudduth e Clabaugh (2009) sugerem que o uso de tecnologias pode melhorar a apreciação estética de obras de arte, e que o conhecimento sobre essas tecnologias e sobre seu uso pelos artistas parece não afetar o julgamento que as pessoas fazem das obras de arte.

 

imagem2.jpgComparações das médias e desvios padrão dos julgamentos feitos para cada obra pelos dois grupos estudados.

 

Algumas críticas podem ser feitas ao estudo, como, por exemplo, o uso de participantes que tinham interesse e – provavelmente – interesse por Arte. Outra deficiência da pesquisa, que pode ter levado à falta de significância estatística nos resultados do segundo estudo, é a pequena amostra estudada. Os própiros pesquisadores apontaram esses defeitos na discusão do artigo:

Additional research in art and technology also should expand the participant pool to include art experts.
Using such a sample may eliminate some of the variation of art appreciation found in a student sample and also may provide more strongly pronounced contextual effects.

Tradução: “Outras pesquisas sobre arte e tecnologia também deveriam expandir a amostra estudada para incluir experts em arte. O uso de tal amostra pode eliminar as variações da apreciação artística encontrada na amostra de estudantes e também pode mostrar efeitos contextuais mais fortes.”

Referência completa do artigo:

Hantula, D.A., Sudduth, M.M., & Clabaugh, A. (2009). Technological effects on aesthetics evaluation: Vermeer and the camera obscura. The Psychological Record, 59. 323-334.

Relações perigosas

A divulgação, pela imprensa, dos resultados de pesquisas científicas é a maneira mais expressiva e importante de manter o público informado das descobertas feitas pelos cientistas. Mas algumas vezes os jornalistas de Ciência – responsáveis por cobrir as notícias referentes ao assunto – pesam a mão na hora de fazer as manchetes, de narrar os experimentos e, principalmente, de inferir conclusões a partir dos resultados apresentados pelos cientistas.

Veja que coisa mais singela essa manchete da Folha Online:

Manchete

Pááára tudo!

As informações sobre os resultados da pesquisa estão corretamente descritos no texto do jornal. Mas, quando o jornalista tenta descrever O QUE SIGNIFICAM ESSES RESULTADOS, a porca torce o rabo. O estudo usa um método de análise que costumamos chamar de correlacional. O nome é mais ou menos auto-explicativo: por meio de um monte de contas complicadas que não vêm ao caso, um programa de computador cruza dois tipos de informação para verificar como se comportam em conjunto. Os testes estatísticos usados dizem tanto se há ou não relação entre as duas medidas, quanto qual a “direção” dessa relação – que pode ser positiva, quando as duas medidas crescem ou decrescem ao mesmo tempo; ou negativa, isto é, se uma medida sempre aumenta a outra diminui sempre.

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Correlação entre a média da temperatura global e o número de piratas. O
aquecimento global está causando o desaparecimento aparecimento de piratas? (Gráfico
reproduzido do Implicit None – clique para ir ao blog)

 

 

Mas, nem sempre o fato de duas coisas acontecerem AO MESMO TEMPO indica que uma delas CAUSOU a outra. E, principalmente, não indica quem causou quem. Só podemos predizer com algum grau de certeza que, quando a coisa “A” acontece, a coisa “B” também irá acontecer, ou vice-versa. Esta é a pegada que constantemente atormenta os jornalistas de Ciência. Dizer que duas coisas estão correlacionadas não implica em que estas duas coisas sejam uma causa da outra. É uma falácia (um argumento que parece verdade mas é inválido) conhecida dos filósofos e cientistas, enunciada pela máxima “cum hoc ergo propter hoc“, que em latim quer dizer “com isto, portanto causa disto”.

O consumo excessivo de doces pode causar cáries, e a Ciência descobriu que é porque o açúcar dos doces serve de alimento para as bactérias presentes na boca, e a digestão delas gera produtos que fazem com que o esmalte dos dentes se enfraqueça, deixando o caminho livre para a corrosão dos tecidos. O consumo de açúcar pode causar obesidade infantil, porque o excesso de calorias que não são utilizadas pelas atividades do organismo se acumula em forma de gordura corporal, e o açúcar é um alimento muito calórico. E assim por diante. Quando dizemos que o excesso de doces consumidos pela criança CAUSA aumento de agressividade quando essa criança crescer, somos obrigados a mostrar evidências de COMO esse fenômeno ocorre. E não foi o caso da pesquisa em questão. Aliás, não era nem o foco da pesquisa em questão.

Estudos com metodologia correlacional são importantes para indicar possíveis fenômenos que, ocorrendo conjuntamente, podem ser usados um para predizer a presença do outro. E claro, para eleger possíveis candidatos a causas, mas nunca para determinar se um fenômeno é ou não causa de outro. Ao deparar-se com dois fenômenos correlacionados, os cientistas podem enxergar uma direção a seguir para verificar as causas de alguma coisa, e para isso levantam hipóteses a serem confirmadas ou refutadas por outras metodologias de pesquisa.

Os próprios autores da pesquisa levantaram essas hipóteses alegando que as crianças podem ter consumido mais doces porque suas mães usavam esse tipo de recompensa para aplacar suas birras, transformado-as em adultos que não sabiam lidar com atrasos na gratificação. Pessoas que não sabem lidar com frustração tendem a agir impulsivamente e isso leva muitas vezes a comportamento agressivo. Eles só esqueceram-se da hipótese contrária: crianças que já eram impulsivas consumiam mais doces porque suas mães não sabiam lidar com a constância das birras e reclamações violentas.

E aí? Quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?

Referência do artigo sobre doces e agressividade:

Moore, S.C., Carter, L.M., & van Goosen, S.H.M. (2009). Confectionery consumption in childhood and adult violence. The British Journal of Psychiatry, 195. 366-367. 10.1192/bjp.bp.108.061820

Agradecimentos: ao Luiz Bento do Discutindo Ecologia que baixou o artigo pra eu poder escrever o post.

É de pequenino que se torce o pepino: um pouco sobre períodos críticos

Genie é o “codinome” de Susan M. Wiley, adotado pelos profissionais que encontraram a menina de quase catorze anos em abril de 1970. Ela é um caso contemporâneo de criança selvagem – juntamente com outros clássicos como Vítor de Aveyron, Kaspar Hauser, Mogli (oi?!) e, mais recentemente, a Menina Cambojana da Floresta. Genie foi privada quase totalmente do contato social desde o nascimento, criada em um quarto escuro, com restrição de movimentos e completa negligência de contato afetivo, segundo o relatório da assistente social que a encontrou na casa dos pais em Arcadia, na Califórnia.

 Victor_of_Aveyron

Vítor, o menino selvagem de Aveyron, encontrado num bosque da França em 1797, e educado por Jean Marc Gaspard Itard.

Kaspar_hauser

Kaspar Hauser, encontrado vagando nas ruas de Nuremberg em 1828. Ninguém
sabe muito bem qual era a dele. As vezes falava, as vezes desenhava, as
vezes dava uma de selvagem. Segundo consta, ele provavelmente não era
uma criança selvagem.

Mogli

Mogli, o menino lobo, da história de Kipling. Vivia na Índia na
companhia do urso Balú (“necessário, somente o necessário…”) e da
cobra Cazzzzca. Foi posteriormente estudado por Walt Disney.

A história de Genie é longa, triste, cheia de reviravoltas e de personagens malvados: sua primeira instrutora, no Hospital Infantil de Los Angeles, mantinha um especial interesse em se tornar “a próxima Ann Sullivan“, e ficar famosa à custa da menina. A equipe de profissionais de saúde e pesquisadores encarregados de cuidar dela vivia em constante pé de guerra, cada um reclamando para si a “preferência” e o afeto da criança, com prováveis intenções de se tornarem tutores e, conseqüentemente, terem direitos exclusivos de estudar seu caso. Depois de quatro anos sob os cuidados do casal Marilyn e David Rigler (que conseguiram a maior parte dos progressos em linguagem e comportamento social da menina), de ter os fundos para seus cuidados e para as pesquisas sobre sua condição cortados pelo National Institute of Mental Health por “conduta não-profissional e falta de dados científicos seguros“, de uma tentativa fracassada de voltar aos cuidados de sua mãe, e de passar por outros seis lares adotivos onde foi negligenciada e abusada, Genie vive hoje em um abrigo para deficientes mentais, no sul da Califórnia.

Mas o que nos interessa aqui é a história de como os pesquisadores tentaram ensinar linguagem a Genie, e o que eles descobriram no caminho. Desde o início do tratamento, depois com a publicação do livro de Susan Curtiss em 1977 (Genie: A Psycholinguistic Study of a Modern-Day “Wild Child”, Academic Press) e de outros vários livros e artigos científicos, diversas questões sobre o desenvolvimento da linguagem e sobre os períodos críticos de sua aquisição foram levantadas a partir das observações e estudos feitos com Genie. Por “período crítico” entende-se a janela de tempo em que determinada habilidade ou competência se desenvolve e se torna parte do repertório comportamental de um indivíduo. É esperado que, depois de passado este período, a habilidade não seja mais desenvolvida. Segundo Johnson e Newport (1989), “… em alguns domínios, tem sido sugerido que a aquisição de competências não aumenta monotonicamente acompanhando o desenvolvimento, mas antes atinge um pico durante um período crítico, que pode ser relativamente cedo na vida, e então declina depois que este período estiver terminado.”

 

Genie

Genie, aos dezesseis anos, já sob a tutela do casal Rigler.

 

Num estudo feito por Fromkin, Krashen, Curtiss, Rigler e Rigler (1974), os pesquisadores submeteram Genie a uma bateria de testes para identificar seu grau de compreensão lingüística. Foram construídos testes em que não eram requeridas respostas verbais, já que a intenção não era verificar suas habilidades de produção ativa de fala. As respostas exigidas eram principalmente respostas de apontar para figuras que representavam o que os pesquisadores diziam, e o início dos testes se deu quando Genie já estava há 11 meses sob os cuidados do Hospital. Durante este período, a menina já havia demonstrado entendimento e produção de alguns nomes, mas estas habilidades em si não revelavam muito sobre sua competência verbal. Os resultados de 17 diferentes testes de compreensão, administrados semanalmente durante dois anos de estudo, demonstraram que Genie estava aprendendo habilidades lingüísticas tais como contraste entre singular e plural, distinção entre sentenças afirmativas e negativas, construções possessivas, modificações, algumas preposições e conjunções, e algumas formas comparativas e superlativas de adjetivos.

Por conta da dificuldade de fala, o acesso às competências de linguagem produtiva de Genie apenas pelas vocalizações era dificultado. Apesar disso, Fromkin e cols. (1974) descrevem um aumento importante nas habilidades vocais e na produção de fala. As primeiras palavras ditas por ela foram palavras simples, com sílabas do tipo consoante-vogal (como as de qualquer criança que começa a falar), e ao longo do estudo Genie aprendeu a falar palavras de duas ou mais sílabas e a usar todas as consoantes do alfabeto inglês, embora houvesse deleção das consoantes finais na maioria das palavras e de algumas consoantes iniciais em palavras com “clusters consonantais” (como em SPike, STay ou SKate). Em testes de imitação, Genie era capaz de reproduzir qualquer som da língua inglesa, mesmo que tais sons não estivessem presentes nas palavras de sua produção vocal espontânea, o que foi interpretado pelos pesquisadores como a evidência de limitadores fonológicos, mais do que a presença de dificuldades de articulação dos sons da fala. Depois algumas semanas no Hospital, Genie começou a usar imitativamente palavras e nomes que ela ouvia dos cuidadores e, cinco meses após o início do treinamento, já era capaz de falar espontaneamente algumas palavras. Cerca de oito meses depois de sua internação, a menina começou a produzir sentenças de duas palavras dos tipos nome+nome ou nome+modificador (“more soup“, “Genie purse“), e dois meses depois disso passou a usar verbos em suas construções (“want milk“). Em novembro de 1971 (pouco mais de um ano após sua internação), ela passou a produzir sentenças de três e quatro palavras com estrutura sujeito+verbo+objeto (“Genie love Marilyn“). Em fevereiro de 1972 foram registradas as primeiras sentenças negativas, embora os testes de compreensão tivessem demonstrado que ela era capaz de compreender sentenças negativas muitos meses antes disso. A crescente habilidade de combinar palavras em sentenças e de aumentar ou recombinar sentenças já conhecidas levou os pesquisadores a concluir que Genie havia adquirido os elementos essenciais da linguagem que permitem a geração de infinitos conjuntos de sentenças.

Em muitos aspectos, o desenvolvimento da linguagem de Genie aconteceu na mesma seqüência em que acontece o desenvolvimento da linguagem em crianças sob condições normais, mas havia diferenças expressivas entre a emergência de linguagem em Genie: seu vocabulário era muito maior do que o de crianças “normais” no mesmo estágio de desenvolvimento lingüístico e ela era capaz de lembrar de listas de palavras relativamente grandes. Para Fromkin e cols. (1974), isso ilustraria definitivamente o fato de que a linguagem é muito mais do que apenas o armazenamento infinito de palavras. Em outros pontos, as habilidades de linguagem de Genie ficavam muito aquém das esperadas, por exemplo, ela nunca foi capaz de construir sentenças no modo passivo e as habilidades gramaticais eram análogas as de uma criança de dois ou dois anos e meio. De modo geral, seu progresso na aprendizagem de linguagem foi muito mais lento do que o normal, e algumas habilidades não foram adquiridas de modo algum, como o uso de palavras indicativas de interrogação (qual, onde, por que), de marcadores sintáticos (pontuações e vírgulas), de palavras demonstrativas (isto, este, aquilo) e principalmente de regras transformacionais (que permitem a transformação de sentenças mudando-se a ordem das palavras como, por exemplo, transformar uma sentença na voz ativa em outra na voz passiva, sem perder seu significado específico). Ao fim de muitos anos de estudo, Genie, uma mulher adulta, chegou ao nível máximo de capacidade lingüística análogo ao de uma criança de quatro anos de idade.

O estudo do desenvolvimento da linguagem de Genie foi a primeira tentativa direta de se testar a hipótese do período crítico para a aquisição da linguagem. Ainda hoje, sabemos pouco sobre as habilidades que têm períodos críticos e sobre os mecanismos neurais que controlam o “fechamento” das janelas de aprendizagem de determinadas habilidades. No caso da linguagem, o que se pode dizer com alguma certeza é que há uma necessidade de inputs (estímulos provenientes do ambiente, das pessoas com quem se mantém relações, etc…) durante um longo período, e desde muito cedo na vida dos indivíduos. Mais do que isso, as estimulações sociais e as interações com diversas pessoas competentes no uso da linguagem parecem ser muito mais importantes do que estimulações programadas e complexas. E, mais importante de tudo, toda essa estimulação deve ser o mais precoce possível.

Referências bacanas:

Fromkin, V., Krashen, S., Curtiss, S., Rigler, D., & Rigler, M. (1974). The development of language in Genie: a case of language acquisition beyond the critical period. Brain an Language, 1. 81-107. Reprinted in M. Lahey (Ed.), Readings in childhood language disorders, 1978. New York: John Wiley. pp 112-133.

Sobre “períodos críticos” recomendo: Johnson, J.S. & Newport, E.L. (1989). Critical period effects in second language learning: the influence of maturational state on the acquisition os english as a second language. Cognitive Psychology, 21. 60-99.

Almanaque de curiosidades: um trabalho sobre o filme “O Menino Selvagem” do Truffaut – quem não viu e tem paciência pra assistir Truffaut, veja… – que tem como Anexo o relatório completo de Itard sobre os desenvolvimentos de Vítor. Começa na página 76.

Macacos falantes (e escreventes!)

Eu “devia” estar preparando um aula, mas estava dando uma procrastinadinha básica no Twitter quando o @LeoBMarques mandou o link para a apresentação da Susan Savage-Rumbaugh no TED. E como cientista (pasmem!) também é gente, e como toda a gente é besta, tô emocionada com os macacos bonobos até agora.

criações

Susan Savage-Rumbaugh é uma primatologista famosa por seus trabalhos com as macacas bonobos (Pan paniscus) Kanzi e Panbanisha. Seus estudos tentam desvendar a aprendizagem e o uso de linguagem nessa espécie de primatas e ela tem publicado artigos interessantes e intrigantes, pra dizer o mínimo!

Apesar de receber críticas de todos os lados – sacomé, humanos não curtem muito essa história de serem parecidíssimos com outras espécies, principalmente no que diz respeito à linguagem – até mesmo do famosérrimo Steven Pinker, Savage-Rumbaugh lidera um laboratório chamado Great Ape Trust of Iowa. Lá, ela, agora aposentada de funções administrativas, faz um monte de pesquisas sobre o comportamento simbólico dos macacos.

E mais não falo, porque assitir ao vídeo é uma AULA:

 

Referências boas:

Savage-Rumbaugh, E.S. (1986). Ape Language: From Conditioned Response to Symbol. New York: Columbia University Press. ASIN B000OQ1WIY

Savage-Rumbaugh, E.S., & Lewin, R. (1996). Kanzi: The Ape at the Brink of the Human Mind. Wiley. ISBN 047115959X

Savage-Rumbaugh, E.S., Shanker, S.G., & Talbot, J.T. (2001). Apes, Language, and the Human Mind. Oxford. ISBN 019514712X

Começando a falar de linguagem

Pra quem praticamente nasceu falando, parece muito fácil. Mas se fosse mesmo, a linguagem provavelmente seria um atributo distribuído com mais justiça entre os membros do reino animal. Há estudiosos do tema que acham que justamente a capacidade de simbolizar, de produzir nomes para as coisas e de concatenar os nomes das coisas em frases que façam sentido é o que diferencia a espécie humana das outras. Embora algumas teorias linguísticas sugiram que a espécie humana tem um complexo sistema neural que de algum modo vem pré-fabricado, pronto para aprender a falar, essa teoria de que nasceríamos com um “órgão da fala” nunca obteve nenhum suporte experimental para comprová-la. (Perdeu, Chomsky!)

Graças a Darwin, hoje em dia temos uma visão um tiquinho menos antropo-ego-cêntrica da natureza, e as teorias modernas sobre o desenvolvimento da linguagem tendem a explicar seu surgimento na espécie humana baseadas no argumento do aumento de complexidade ao longo da linha evolutiva. Sabemos que a maioria dos animais sociais, até mesmo os mais simples (como formigas e abelhas) desenvolveram sistemas de comunicação para manter a organização de suas colônias. Mamíferos superiores – os primatas, por exemplo – chegam a ensinar às gerações mais novas alguns truques específicos daquele grupo, como por exemplo, lavar batatas para tirar a terra e melhorar seu gosto. Seu, da batata, não da terra. Um tipo de cultura rudimentar passada de geração em geração por meio de sinais comunicativos. Assim, sistemas simples de comunicação foram evoluindo de acordo com a necessidade que as espécies teriam de transmitir informações entre seus membros, e conforme a capacidade orgânica disponível naquele organismo (desenvolvimento cerebral, capacidade vocal, etc).

japmac2.jpg

Nessa linha de raciocínio, se quisermos começar a entender como a linguagem se desenvolve, do que ela é feita, como podemos melhorar a linguagem de pessoas que têm problemas com ela, podemos usar como objeto de pesquisa animais com um sistema mais simples do que o sistema simbólico (ou seja, a linguagem) humano. Pra começo de conversa – trocadilho mode on – há que se saber quais dessas outras espécies poderiam apresentar algumas das pecinhas que formam o imenso e confuso quebra-cabeças da linguagem. Temos algumas pistas evolutivas de que primatas superiores (orangotangos, gorilas e chimpanzés) provavelmente estejam mais próximos de nós nesse quesito do que outros animais como gatos ou periquitos. Há um vasto campo de pesquisas sobre a linguagem de mamíferos aquáticos como baleias e golfinhos indicando que eles também são bem espertos, chegando a dar nomes próprios aos companheiros de grupo.

Parece que esse é um ponto importante para o surgimento da linguagem: que haja algum grau de relacionamento social entre os membros da espécie, de modo que um possa entender a informação que o outro tenta transmitir. Para que um sistema de sinais seja compreendido, de alguma forma o animal deve ter companheirinhos que o compreendam. Parece óbvio, mas não é, é preciso que cada membro do grupo possa distinguir um cara de outro, dentro do grupo, além de saber quando outro animal não faz parte de seu grupo. Algo do tipo “João é anão e José não tem pé! Mas esse cara não é da minha turma!”. Não deve ser tarefa fácil para abelhas operárias, capivaras, macacos ruivos ou bebês chineses, pois todos os membros do grupo são muito parecidos entre si!

Também é preciso que o sinal comunicativo – um grito, uma expressão facial, um gesto, determinada posição corporal, etc – de alguma forma “signifique” aquilo que o cidadão quer comunicar. Essa parte é fácil de entender: quando seu cachorro arrasta a vasilha de comida pela casa, você compreende que ele quer que você coloque comida dentro dela. Mas tanto o cão quanto você devem saber que o “sinal” não é a comida, apesar dele “significar” comida. Traduzindo: quando o arrastar de tigela é seguido repetidamente pelo aparecimento da comida dentro da tigela, o cão aprende que o “significado” de arrastar a tigela é “aparecer comida”. E você aprende que seu cãozinho só vai parar de aporrinhar com a maldita tigela se você colocar comida dentro dela.

“Comida de cachorro” e “arrastar a tigela” não compartilham muitas propriedades físicas, não são nem de perto parecidos, mas estão na mesma categoria, ou seja, na presença do dono, arrastar a tigela vai fazer aparecer comida. O cachorro aprende que se o dono não estiver em casa, não adianta fazer barulho. Ele aprende a distinguir o “dono que dá comida” dos demais membros da família, e provavelmente não vai arrastar a tigela pra quem nunca o alimenta. O dono aprende que se o cachorro não arrasta a tigela, ele não quer que a comida apareça nela. Há vários tipos de categorias, algumas mais complexas do que outras. Podemos pensar em uma categoria de “cachorros” que englobaria poodles, pit bulls, chiuauas, boxers, filas e pugs. Todos são diferentes entre si, mas todos são cachorros. Podemos fazer hierarquias dentro dessa categoria de cachorros, teríamos “cachorros pentelhos” incluindo chiuauas, poodles e pittbuls, e “cachorros babões”, com filas, boxers e pugs. Também poderíamos ter uma categoria de “sinais que produzem comida”, onde um cão facilmente incluiria “arrastar a tigela”, “fazer cara de coitado”, “ganir”, “abanar a patinha” e “babar debaixo da mesa”. Essa categoria só funcionaria quando o dono que dá comida ao cão está presente, então podemos relacionar os “sinais que produzem comida” a um estímulo que faz a categoria funcionar.

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A habilidade de formar categorias é a base para o desenvolvimento de algum tipo de comunicação entre indivíduos. As relações entre os membros dentro de uma categoria e entre os membros de uma categoria e outros estímulos pode ser tão complexa quanto o necessário para a complexidade da linguagem. Aqui está a pegada técnica de estudar a formação de categorias em animais não-humanos: espera-se que as categorias sejam mais simples quanto mais simples o sistema de sinais e de comunicação desses animais. Dessa forma, podemos começar a entender o quê, realmente, torna a linguagem humana tão especial em sua complexidade. Mas para entender algo complexo, precisamos partir de coisas menos complexas. Ora, direis, por que raios alguém que quer entender de linguagem vai estudar leões marinhos? Começamos a vislumbrar algo interessante…