Humor? Léo Lins: personagem ou não, isto faz parte de um movimento político maior

Bandeira vermelha, com o texto "Humor e Piadas racistas, misóginas e capacitistas podem ser analisadas de forma isolada?" Texto de Cesar Augusto Gomes

Piadas racistas e capacitistas atravessam a infância e a adolescência como lâminas, deixando marcas profundas que moldam a autoestima, o pertencimento e a forma como passamos a nos ver no mundo

Nesse sentido, muito tem se comentado nos últimos dias sobre os limites do humor e da liberdade de expressão, sobre censura à arte e muitas outras discussões. No entanto, queria me ater a uma que ainda não apareceu, mas que me parece a origem de todas as discussões: o movimento Politicamente Incorreto, do qual, conscientemente ou não, Lins faz parte.

Como emerge o Politicamente Incorreto

Imagem 01: Captura de tela do artigo publicado por Michael Minnicino em 1992. Fonte: Schiller Institute

Em 1992, nos Estados Unidos (EUA), um artigo polêmico começou a circular entre grupos conservadores e ganhou força nos debates sobre cultura e política da época. Escrito por Michael Minnicino – pesquisador ligado ao movimento de Lyndon LaRouche – o texto intitulado “New Dark Age: Frankfurt School and ‘Political Correctness’” (algo como “Nova Era das Trevas: Escola de Frankfurt e o ‘politicamente correto’”), foi publicado na revista Fidelio, do Schiller Institute

No artigo, Minnicino culpa a Escola de Frankfurt – um grupo de pensadores associados ao marxismo – por enfraquecer os valores tradicionais do Ocidente. Segundo ele, ao invés de trabalhadores, a nova “vanguarda revolucionária” estaria composta por estudantes, negros, feministas e homossexuais. Essa suposta mudança de foco seria parte de um plano maior: a instauração do comunismo por meio de uma revolução cultural. 

Para Minnicino, o “politicamente correto” não é apenas uma forma de promover respeito e inclusão, mas uma estratégia para subverter a cultura ocidental a partir das universidades, atacando pilares como a família, a religião e a autoridade acadêmica, conforme demonstra um trecho a seguir de seu artigo:

Nossas universidades, o berço do nosso futuro tecnológico e intelectual, foram sobrecarregadas pelo “Politicamente Correto” da Nova Era no estilo da  Internacional  Comunista. Com o colapso da União Soviética, nossos campi agora representam a maior concentração de dogma marxista do mundo (Minnicino, 1992, p. 01).

Essa leitura, apesar de não ter base factual sólida, ajudou a alimentar a teoria da conspiração conhecida como “marxismo cultural” — uma ideia que ainda hoje é usada por certos grupos para atacar movimentos sociais e instituições de ensino.

Como o Politicamente Incorreto se tornou pauta política

O discurso contra o “politicamente correto” não ficou restrito aos círculos acadêmicos ou intelectuais conservadores. Ele voltou com força em 1999, ainda nos EUA, pelas mãos de Paul M. Weyrich (1942-2008) — uma figura de destaque da Nova Direita estadunidense, conhecido por sua atuação como político, comentarista e líder religioso.

Foto oficial de Paul Weyrich, político conservador americano e comentarista associado à Nova Direita
Imagem 02: Foto oficial de Paul Weyrich, político conservador americano e comentarista associado à Nova Direita. Fonte: Wikipedia. 

Na época, Weyrich escreveu uma carta aberta a eleitores conservadores, na qual denunciava o avanço do que chamou de “politicamente correto” na sociedade estadunidense. Para ele, ideias e valores conservadores estavam sendo sistematicamente perseguidos e silenciados, especialmente nos meios culturais e educacionais. Leia um trecho a seguir:

Não vou entrar em toda a história da Escola de Frankfurt e Herbert Marcuse e as outras pessoas responsáveis ​​por isso. Basta dizer que os Estados Unidos estão muito perto de se tornar um estado totalmente dominado por uma ideologia alienígena, uma ideologia amargamente hostil à cultura ocidental. Mesmo agora, pela primeira vez em suas vidas, as pessoas têm que ter medo do que dizem. Isso nunca foi verdade na história do nosso país.

No entanto, hoje, se você disser a “coisa errada”, de repente você tem problemas legais, problemas políticos, você pode até perder seu emprego ou ser expulso da faculdade. Certos tópicos são proibidos. Você não pode abordar a verdade sobre muitos assuntos diferentes. Se você o fizer, será imediatamente rotulado como “racista”, “sexista”, “homofóbico”, “insensível” ou “crítico” (Weyrich, 1999).

Essa carta foi amplamente divulgada e republicada pelo National Center for Public Policy Research, um influente think tank conservador nos EUA, ajudando a consolidar a ideia de que ser “politicamente incorreto” passou a representar uma forma de “resistência” ideológica no campo da política.

O humor politicamente incorreto e sua escalada nas redes

Conscientemente ou não, o humor entrou de cabeça na disputa em torno do politicamente correto. E não foi por acaso. Desde os anos 1990, principalmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, comediantes começaram a explorar – ou satirizar – temas como identidade, minorias e correção política, muitas vezes se colocando como os “últimos defensores” da liberdade de expressão. E se orgulham disso

Esse movimento cresceu de forma acelerada com a chegada da internet e, depois, das redes sociais. Plataformas como YouTube, Twitter e TikTok deram visibilidade a um tipo de comédia que dificilmente encontraria espaço em canais de TV tradicionais. Com isso, o humor politicamente incorreto se transformou em nicho de mercado — e um nicho lucrativo.

Muitos humoristas perceberam que adotar essa postura rende mais do que apenas risadas: atrai seguidores, engaja audiências e movimenta dinheiro. O discurso contra a “cultura do cancelamento”, por exemplo, virou bandeira de “resistência” para parte desses artistas, que se apresentam como vozes dissonantes em um cenário dominado pela “ditadura do politicamente correto”.

Imagem 03: O humorista Danilo Gentili, histórico defensor do humor sem limites, produziu DVDs, shows e séries em plataformas de streaming normalizando o termo “politicamente incorreto”, embora seu conteúdo tenha uma conotação mais de crítica a políticos do que de ofensa a minorias historicamente aviltadas.

Mas, por trás da provocação e das piadas afiadas, há também uma estratégia de posicionamento político e comercial. Ao escolher esse caminho, esses comediantes não apenas moldam debates culturais, mas também lucram com uma audiência sedenta por vozes que desafiem o consenso progressista. O riso, nesse contexto, vira arma e produto — e o palco, um campo de batalha simbólica.

Movimento “Politicamente Incorreto” quer criar um Regime de Verdade

Por trás do barulho que gira em torno do “politicamente correto / incorreto” – que vai de piadas controversas até críticas ferozes a universidades, à mídia ou ao ativismo social – existe algo mais profundo em disputa: o controle sobre o que pode ser considerado verdadeiro. Mais do que provocar ou “dizer o que ninguém tem coragem”, esse movimento disputa o próprio regime de verdade da sociedade contemporânea.

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) – que se destacou por sua análise crítica do poder, do conhecimento e da história – explica, no livro Microfísica do Poder, que a verdade não é algo fixo ou absoluto. Ela é construída historicamente por meio de discursos, instituições e práticas que se tornam dominantes em determinado contexto.

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault 1998, p.12).

Em outras palavras: o que entendemos como verdade depende de quem tem o poder de dizê-la e fazê-la circular como legítima. É nesse ponto que o movimento “politicamente incorreto” se insere. Longe de ser apenas uma postura cômica ou provocadora (argumento usado pela defesa do humorista condenado), trata-se de uma reação organizada – e muitas vezes articulada com interesses políticos e econômicos – contra os regimes de verdade que se consolidaram nas últimas décadas, especialmente em temas como igualdade racial, gênero, diversidade e direitos humanos. 

O que se busca é desmontar essas referências e instaurar outras: pautadas na “liberdade de expressão” irrestrita, no revisionismo histórico e numa retórica que desafia consensos acadêmicos e científicos. Através de podcasts, documentários, perfis em redes sociais e até de humoristas que se apresentam como “cancelados”, esse movimento tenta apresentar sua narrativa como mais honesta, corajosa ou “sem filtros”. 

Mas como nos ensinou Foucault, toda narrativa está ligada a relações de poder. Por isso, é fundamental perguntar: quando o politicamente incorreto propõe “dizer a verdade”, que verdade é essa? Quem ganha e quem perde com ela?

No fim das contas, o politicamente incorreto não está apenas combatendo a “censura” ou a “lacração”. Ele está tentando construir um novo regime de verdade. E essa é uma disputa que vai muito além das palavras: ela envolve a forma como organizamos a vida em comum, quem pode falar, o que pode ser ensinado e, sobretudo, o que é considerado real.

O humor que dói: quando a piada vira cicatriz

Imagem 04: Cena do humorístico Os Trapalhões (1973-1995) em que os personagens negros eram alcoólatras, desdentados e constantemente humilhados pelos demais, coincidentemente, brancos. Esse roteiro causa saudade nos atuais comediantes de stand-up do movimento Politicamente Incorreto.

Quem é negro, pessoa com deficiência e estudou na educação básica dos anos 1980 sabe bem: o que alguns chamam de “humor ácido” ou “personagens polêmicos” muitas vezes se traduz, na prática, em piadas racistas e capacitistas que atravessam a infância como lâminas. Essas piadas não ficam só nos programas de TV — elas chegam à sala de aula, ganham a boca dos colegas e ferem de verdade.

O impacto? Vai muito além do riso. São marcas profundas, quase invisíveis, mas persistentes. Marcas que moldam a autoestima, o pertencimento e a forma como essas crianças — muitas vezes já em situação de vulnerabilidade — passam a se ver no mundo. E não é exagero: há quem, aos 50 anos, ainda esteja tentando curar essas feridas deixadas lá atrás, na infância.

O humor pode ser uma ferramenta poderosa de crítica social, mas também pode ser um instrumento de exclusão e violência simbólica. O desafio é pensar: a quem essa piada serve? Quem ela machuca? E, mais importante, por que alguns ainda defendem e acham normal rir disso?

Para Saber Mais

FOUCAULT, M (1998) Microfísica do Poder. Organização e tradução Roberto Machado. 13ª Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal.

MINNICINO, M (1992) The Frankfurt School and ‘Political Correctness’. Fidelio Magazine, v1, n1, p4-27, 1992.

WEYRICH, PM (1999) Letter to Conservatives. National Center for Public Policy Research. 16 fev. 1999.

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